sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Do caos se produz a reflexão


Do caos se produz a reflexão

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Os recentes acontecimentos globais me fazem reavaliar certos entendimentos sobre a dinâmica das guerras. Ao contrário do que muitos estudiosos no assunto pensavam a respeito, e nos quais eu me baseei para construir meus pontos de vista, as guerras nos seus moldes tradicionais, por disputa de poder e de território, não foram superadas pelo confronto na seara de dominação tecnológica. O que se põe claro, no momento atual, é que ambas as concepções seguem sem alteração.

Aliás, a impressão que tenho é que as questões territoriais tendem a se acirrar ainda mais, em virtude de outros componentes além da geopolítica. Não é preciso ser nenhum expert em assuntos diplomáticos para perceber que limites e fronteiras são demasiadamente subjetivos e frágeis. No papel tudo parece caber e se ajustar. Mas, na prática, a situação é bem outra. Não só pelas diferenças socioculturais ou político-econômicas; mas, por questões geográficas.

Os eventos extremos do clima estão acontecendo em todo o planeta. O que significa que os espaços geográficos habitáveis estão diminuindo a olhos vistos. Portanto, as áreas agricultáveis para a produção de alimentos, também. Do mesmo modo os recursos hídricos. Biomas estão sendo devastados para tentar repor essas perdas; mas, na verdade, estão apenas retroalimentando os efeitos negativos desses eventos extremos. Sim, porque a ruptura com o equilíbrio dos ecossistemas intensifica esses impactos.

E sem que se trace uma relação a respeito desses acontecimentos com o aumento exponencial dos deslocamentos humanos sobre a Terra, a verdade é que ela existe. De modo que toda essa dinâmica não passa despercebida pelas autoridades governamentais, atentas aos mínimos detalhes que cercam sua governança. Nos jogos políticos, ainda que implicitamente, eles estão presentes na base de cálculo.

A perspectiva é a seguinte, em primeiro lugar, é preciso desconstruir a ideia homogeneizada da população. Nenhuma nação é uma massa igual. De perto, todas elas são fragmentadas e recortadas por diferenças oriundas da religião, da política, da diversidade identitária sociocultural, enfim. Mas, geralmente um grupo se apresenta como protagonista para exercer a apropriação territorial daquele espaço.

Diante disso, com menos espaço geográfico disponível para atender às demandas sociais coletivas, o nível de tensão entre os recortes sociais se eleva, ocasionando uma beligerância tão extrema que os movimentos diaspóricos começam a acontecer. Quase sempre quem é expulso daquele território é o mais frágil, o mais vulnerável, sob diferentes aspectos.

O que mostra como o deslocamento populacional e os inúmeros conflitos internos das nações estão intimamente relacionados com as desigualdades socioeconômicas. Aquele que dispõe de mais recursos não mede esforços para lutar, com unhas e dentes, contra qualquer tipo de perda. Segundo o ditado popular, “Farinha pouca, meu pirão primeiro”.

No entanto, o que chama ainda mais atenção nas recentes tragicidades contemporâneas é o modo como o mundo se comporta diante da desigualdade. Naqueles em há, pelo menos uma das partes envolvidas, com notório poder político e/ou capital, percebe-se a nítida atenção do planeta. Caso contrário, os acontecimentos passam à margem.

Haja vista que certas notícias, tais como, “Novo terremoto de magnitude 6,3 atinge o Afeganistão após desastre de sábado. Região já havia registrado abalos sísmicos com mais de 2,5 mil mortos no final de semana” 1 ou “Nagorno-Karabakh. Milhares de refugiados fogem da região disputada para a Arménia. 120 mil arménios querem sair da região devido ao ‘perigo de limpeza étnica’, escassez de alimentos e combustível” 2, estão longe da nossa discussão atual.

Infelizmente, a empatia do mundo está condicionada ao velho princípio do “vale quanto pesa”. Há uma relativização explícita quanto à solidariedade, à fraternidade, ao instinto de sobrevivência humano. Enquanto a humanidade estava diante do conflito entre a Ucrânia e a Rússia, por exemplo, reminiscências da Guerra Fria criavam um ambiente propício para trazer os acontecimentos à luz do mundo sob um franco enviesamento ideológico.

Agora, no caso entre o ataque do HAMAS sobre Israel e a resposta israelense sobre os palestinos, as análises também se enviesaram, porém, dentro de um recorte fragmentado de uma história de desigualdade que se arrasta por mais de sete décadas.

O ser humano é realmente cruel. Afinal de contas, é ele quem estabelece as importâncias e as desimportâncias no mundo. Por mais indigesto que seja dizer, mas o mundo; sobretudo, o contemporâneo, se nutre cada vez mais da necropolítica, ou seja, “Entre o poder de ‘fazer viver e deixar morrer’, o racismo de Estado determinaria as condições de aceitabilidade para quem vive e morre” 3.

Daí o fato de que nas guerras não há vencedores e vencidos. Há somente perdedores. Porque todo o conflito é uma trama ardilosamente construída dentro dos parâmetros necropolíticos, a partir de crimes dolosos. Já dizia George Bernard Shaw, “O pior crime para com nossos semelhantes não é odiá-los, mas demonstrar-lhes indiferença: é a essência da desumanidade”. Na verdade, não uma indiferença genuína; mas, uma que não se importa em criar todas as piores condições para que o outro não tenha êxito sequer de sobreviver.

Mas, olhando fixamente para a conjuntura atual, a pergunta a se fazer é: quem irá sobreviver? Nem ricos, nem pobres, nem bons, nem maus, nenhum ser humano sobre a face da Terra pode garantir, com total solidez, que irá sobreviver aos infortúnios que se desenham no horizonte. Não, não são os poderes e nem os bens capitais os detentores dessa certeza.

A certeza está no trabalho ininterrupto voltado para a direção contrária do que se tem feito até aqui. Nada de guerras. Nada de desigualdade. Nada de necropolítica. Nada de destruição socioambiental. Nada que venha vestido pela pele da desumanidade. Simples assim. Apenas uma questão de consciência e de escolha.