Do caos se
produz a reflexão
Por Alessandra
Leles Rocha
Os recentes acontecimentos
globais me fazem reavaliar certos entendimentos sobre a dinâmica das guerras. Ao
contrário do que muitos estudiosos no assunto pensavam a respeito, e nos quais
eu me baseei para construir meus pontos de vista, as guerras nos seus moldes
tradicionais, por disputa de poder e de território, não foram superadas pelo confronto
na seara de dominação tecnológica. O que se põe claro, no momento atual, é que
ambas as concepções seguem sem alteração.
Aliás, a impressão que tenho é
que as questões territoriais tendem a se acirrar ainda mais, em virtude de
outros componentes além da geopolítica. Não é preciso ser nenhum expert em assuntos
diplomáticos para perceber que limites e fronteiras são demasiadamente subjetivos
e frágeis. No papel tudo parece caber e se ajustar. Mas, na prática, a situação
é bem outra. Não só pelas diferenças socioculturais ou político-econômicas;
mas, por questões geográficas.
Os eventos extremos do clima
estão acontecendo em todo o planeta. O que significa que os espaços geográficos
habitáveis estão diminuindo a olhos vistos. Portanto, as áreas agricultáveis
para a produção de alimentos, também. Do mesmo modo os recursos hídricos. Biomas
estão sendo devastados para tentar repor essas perdas; mas, na verdade, estão
apenas retroalimentando os efeitos negativos desses eventos extremos. Sim, porque
a ruptura com o equilíbrio dos ecossistemas intensifica esses impactos.
E sem que se trace uma relação a
respeito desses acontecimentos com o aumento exponencial dos deslocamentos
humanos sobre a Terra, a verdade é que ela existe. De modo que toda essa dinâmica
não passa despercebida pelas autoridades governamentais, atentas aos mínimos
detalhes que cercam sua governança. Nos jogos políticos, ainda que implicitamente,
eles estão presentes na base de cálculo.
A perspectiva é a seguinte, em primeiro
lugar, é preciso desconstruir a ideia homogeneizada da população. Nenhuma nação
é uma massa igual. De perto, todas elas são fragmentadas e recortadas por diferenças
oriundas da religião, da política, da diversidade identitária sociocultural,
enfim. Mas, geralmente um grupo se apresenta como protagonista para exercer a apropriação
territorial daquele espaço.
Diante disso, com menos espaço geográfico
disponível para atender às demandas sociais coletivas, o nível de tensão entre
os recortes sociais se eleva, ocasionando uma beligerância tão extrema que os
movimentos diaspóricos começam a acontecer. Quase sempre quem é expulso daquele
território é o mais frágil, o mais vulnerável, sob diferentes aspectos.
O que mostra como o deslocamento
populacional e os inúmeros conflitos internos das nações estão intimamente
relacionados com as desigualdades socioeconômicas. Aquele que dispõe de mais
recursos não mede esforços para lutar, com unhas e dentes, contra qualquer tipo
de perda. Segundo o ditado popular, “Farinha pouca, meu pirão primeiro”.
No entanto, o que chama ainda
mais atenção nas recentes tragicidades contemporâneas é o modo como o mundo se
comporta diante da desigualdade. Naqueles em há, pelo menos uma das partes
envolvidas, com notório poder político e/ou capital, percebe-se a nítida atenção
do planeta. Caso contrário, os acontecimentos passam à margem.
Haja vista que certas notícias,
tais como, “Novo terremoto de magnitude 6,3 atinge o Afeganistão após
desastre de sábado. Região já havia registrado abalos sísmicos com mais de 2,5
mil mortos no final de semana” 1 ou “Nagorno-Karabakh.
Milhares de refugiados fogem da região disputada para a Arménia. 120 mil
arménios querem sair da região devido ao ‘perigo de limpeza étnica’, escassez
de alimentos e combustível” 2, estão
longe da nossa discussão atual.
Infelizmente, a empatia do mundo está
condicionada ao velho princípio do “vale quanto pesa”. Há uma relativização
explícita quanto à solidariedade, à fraternidade, ao instinto de sobrevivência humano.
Enquanto a humanidade estava diante do conflito entre a Ucrânia e a Rússia, por
exemplo, reminiscências da Guerra Fria criavam um ambiente propício para trazer
os acontecimentos à luz do mundo sob um franco enviesamento ideológico.
Agora, no caso entre o ataque do
HAMAS sobre Israel e a resposta israelense sobre os palestinos, as análises
também se enviesaram, porém, dentro de um recorte fragmentado de uma história
de desigualdade que se arrasta por mais de sete décadas.
O ser humano é realmente cruel. Afinal
de contas, é ele quem estabelece as importâncias e as desimportâncias no mundo.
Por mais indigesto que seja dizer, mas o mundo; sobretudo, o contemporâneo, se
nutre cada vez mais da necropolítica, ou seja, “Entre o poder de ‘fazer
viver e deixar morrer’, o racismo de Estado determinaria as condições de
aceitabilidade para quem vive e morre” 3.
Daí o fato de que nas guerras não
há vencedores e vencidos. Há somente perdedores. Porque todo o conflito é uma
trama ardilosamente construída dentro dos parâmetros necropolíticos, a partir
de crimes dolosos. Já dizia George Bernard Shaw, “O pior crime para com nossos
semelhantes não é odiá-los, mas demonstrar-lhes indiferença: é a essência da
desumanidade”. Na verdade, não uma indiferença genuína; mas, uma que não se
importa em criar todas as piores condições para que o outro não tenha êxito sequer
de sobreviver.
Mas, olhando fixamente para a
conjuntura atual, a pergunta a se fazer é: quem irá sobreviver? Nem ricos, nem
pobres, nem bons, nem maus, nenhum ser humano sobre a face da Terra pode garantir,
com total solidez, que irá sobreviver aos infortúnios que se desenham no
horizonte. Não, não são os poderes e nem os bens capitais os detentores dessa certeza.
A certeza está no trabalho ininterrupto voltado para a direção contrária do que se tem feito até aqui. Nada de guerras. Nada de desigualdade. Nada de necropolítica. Nada de destruição socioambiental. Nada que venha vestido pela pele da desumanidade. Simples assim. Apenas uma questão de consciência e de escolha.
1 https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/mundo/novo-terremoto-de-magnitude-6-3-atinge-afeganist%C3%A3o-ap%C3%B3s-desastre-de-s%C3%A1bado-1.1400564#tbl-em-lnopo6ia4fdqozvxvsr