terça-feira, 17 de outubro de 2023

Sob ameaças reais e imediatas


Sob ameaças reais e imediatas

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Concordo, que diante de duas guerras em curso, as atenções acabem se voltando, inevitavelmente, para elas. Acontece que o mundo não parou de girar, por conta delas.

A humanidade trava dezenas de milhares de pequenas guerras todos os dias, sem que ao menos, se dê conta disso, na maioria do tempo.

É importante lembrar de que a vida humana está sob ameaça o tempo todo e por razões diversas. Não faz muito tempo, que a vida foi parada por conta de um diminuto vírus desconhecido.

Aliás, embora não se possa cravar com a devida exatidão o número de óbitos que ele causou ao redor do planeta, estima-se em torno de 15 milhões de vidas perdidas.

Bem, um vírus, uma bactéria, um fungo, são agentes, até certo ponto, oriundos do imponderável. A nossa maior ameaça somos nós mesmos, os seres dotados de inteligência, o topo da cadeia alimentar.

Seres humanos matam sem motivo, sem razão, ou criam elementos e situações capazes de levar à morte os seus pares. E o pior é que, na maioria das vezes, ele sequer se constrange ou se arrepende disso.  

Acompanhando pelos veículos de informação e comunicação as notícias sobre a seca na Amazônia 1, por exemplo, entende-se claramente os efeitos antrópicos, os quais historicamente incidem  sobre o clima no planeta.

A Amazônia é só um caso, dentre milhares de outros, a exemplificar os riscos iminentes que corre a espécie humana, mediante os eventos climáticos extremos.

Vira daqui mexe dali o papel humano na destruição da sua própria espécie faz emergir palavras comuns aos eventos. Desigualdade. Ódio. Ganância. Corrupção. Necropolítica. ... são apenas alguns exemplos que compõem a construção discursiva, na qual orbitam as relações entre seres humanos e o meio ambiente. E isso não é uma coincidência ou uma obra do acaso.

Tanto que, na década de 40, do século passado, quando Charles Chaplin lançou o filme O Grande Ditador, no discurso final a personagem interpretada por ele já afirmava que “[...] O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens ... levantou no mundo as muralhas do ódio ... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que máquinas precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido[...]” 2.

Pois é, um parágrafo que diz tudo. Que diz o óbvio. Mas, ainda que emoldurada dentro de uma ficção tecida com base na comédia dramática e na sátira crítica, essas palavras não perdem o sentido, a significância, no mundo real do século passado, deste ou de qualquer outro século.

Porque falam diretamente sobre a humanidade que nos habita e que vai muito além das aparências, das superficialidades, que os indivíduos se permitem vestir e carregar diariamente.

No entanto, o mundo contemporâneo tem me convencido, a cada dia, que não devemos mais analisar o ser humano pela sua linguagem oralizada, com seus discursos e narrativas, dada a extrema volatilidade e inconstância que marca a essência dos indivíduos.

Ao contrário de palavras pensadas, refletidas, ponderadas, o que se têm é uma verborragia incontida que as faz fluir sob o calor das paixões e das más intenções mundanas.

Por isso, penso que seria melhor analisá-lo pela sua linguagem não verbal. Gestos, expressões, movimentos, ... Já dizia Friedrich Nietzsche, “É verdade que se mente com a boca; mas a careta que se faz ao mesmo tempo, diz, apesar de tudo, a verdade” (Para além do Bem e do Mal).

Porque a voz do corpo é a voz do inconsciente. Sobre ela não reside o peso dos crivos da consciência, nem das arbitrariedades sociais. De modo que no seu silêncio, a linguagem não verbal é sempre, muito mais, eloquente e impactante.

Pena, que o frenesi do mundo contemporâneo tenda a fazer desvirtuar a nossa atenção sobre ela. Se puséssemos o devido reparo, certamente, ficaríamos estarrecidos com o resultado. As omissões, as negligências, os pecados, os crimes, tudo aquilo que de mais inconfessável carrega o ser humano na alma está na superfície da sua imagem, no espelho da sua figura.

Por isso, volto a dizer que, melhor do que ler ou ouvir os discursos, é observar quem os proclama. Ali estão todas as respostas, todas as intenções. É das palavras não ditas que extraímos o fel das atitudes maléficas, as quais resultam na paleta infindável das ameaças que nos sondam e nos rondam, nessa realidade contemporânea.

Sendo assim, lembremo-nos do que disse Albert Einstein: “O mundo não está ameaçado pelas pessoas más, e sim por aquelas que permitem a maldade”. Acontece que, desse pequeno detalhe, nos deparamos indubitavelmente com o fato de que “A inumanidade que se causa um ao outro destrói a humanidade em mim” (Immanuel Kant).