Os riscos
que corre um país sob o manto da permissividade odiosa
Por Alessandra
Leles Rocha
Uma coisa que não cabe definitivamente,
a nenhum cidadão brasileiro, após o 8 de janeiro, é colocar no rol da
fanfarronice os discursos e os comportamentos do extremismo nacional.
Primeiro, porque não há
aleatoriedade despretensiosa neles. Tudo tem método. Segundo, porque eles já
apresentaram o seu cartão de visitas. Já sabemos do que são capazes e até onde
se permitem ir para alcançar seus propósitos.
Então, qual a surpresa diante das
informações obtidas do celular do ex-Ministro da Justiça 1?
O problema não está no achado pela Polícia Federal. Na bizarrice repugnante e
odiosa das mensagens ali armazenadas.
O problema é pensar que, assim
como ele, em torno de 25% do eleitorado brasileiro comunga dos mesmos
pensamentos, sentimentos, ideais do ex-Ministro. Portanto, ele não está só. Na verdade,
nunca esteve só.
A representação materializada dessa
fúria foi o que nutriu as mídias sociais na web e na deep web durante os
últimos quatro anos, fortalecendo e fomentando todas as expressões anticidadãs e
antidemocráticas que o país e o mundo puderam presenciar.
Então, imagine se todos os
celulares e demais equipamentos tecnológicos utilizados pela população fossem
periciados?! Talvez, os números e as informações pudessem ser ainda mais
chocantes e escandalosos, dado o tempo em que esse movimento veio sendo
fermentado na sociedade brasileira.
E esse é o ponto que merece total
atenção. Quando há uma ruptura com os limites da ética e da moral, o país é
lançado em uma verdadeira arena de vale-tudo. Afinal, passa-se a tolerar e a
institucionalizar quaisquer condutas que desvirtuem, deteriorem, ou
desconsiderem, por completo, os parâmetros sociais estabelecidos. Basta que os indivíduos
se considerem amparados e protegidos por certos poderes, certas distinções, certas
importâncias sociais.
Mas, se engana quem pensa que esse
extrapolar ético e moral está restrito às fronteiras político-partidárias. Não.
A desfaçatez parece já ter alcançado as graças da legitimidade de um padrão contemporâneo
de existência altamente permissivo.
Na última semana, por exemplo, durante
os primeiros julgamentos dos réus dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro,
pelo Supremo Tribunal Federal (STF), os advogados de defesa transformaram a
tribuna em um espetáculo de escárnio, desrespeito e afronta à Corte, desvirtuando-se
do exercício da advocacia para uma exposição, deplorável, nas redes sociais.
No entanto, não para por aí.
Novas manchetes chegam para construir uma rede de repulsa e reflexão ainda mais
consistente. “Prefeito de cidade no RJ defende ‘castrar’ mulheres: ‘É muito
filho, cara’” 2. “Alunos de medicina
ficam pelados e simulam masturbação durante jogo de vôlei feminino em
campeonato universitário em SP” 3.
Se você se sentiu desconfortável
diante dessas notícias, saiba que já é um bom começo! Porque não há nada de
normal, de banal, de trivial nesses acontecimentos. O ódio que pulsa no Brasil
não é um ódio qualquer. Ele não é genuíno da política partidária, como alguns
querem fazer parecer. Ele é uma mistura complexa das heranças coloniais mais
nefastas com o egoísmo individualista e narcísico presente na contemporaneidade
e sustentado pelo poder capital.
Infelizmente, há mais de 500 anos
o poder capital funciona no país como o passaporte que legitima todas as permissividades
sociais. De modo que o modelo de organização social, desde os tempos coloniais,
se mantém o mesmo e reafirma as suas práxis mais abjetas na tentativa de manter
tudo como sempre foi, ou seja, na base do vale quanto pesa.
E como se percebe nos casos
citados acima, em maior ou em menor escala, há uma resistência corporativista,
ou institucional, que transforma a gravidade dos acontecimentos em episódios pontuais,
para evitar uma possível reverberação das discussões a respeito e uma mobilização
transformadora de velhos paradigmas.
As próprias punições ou
responsabilizações que venham a ser aplicadas, já chegam com cara de mera satisfação
a ser dada à sociedade; mas, sem o compromisso efetivo com a desconstrução
daquele ato inicial. Então, não há mudanças, não há avanços, para o coletivo
social.
Por isso a importância de
refletir sobre o que está acontecendo bem debaixo do nosso nariz. O país
respira em sobressalto sobre quando será a próxima vez. Porque todos os fatos
levam a crer que ela vai acontecer sim. O ódio social está sendo fermentado sob
diferentes formas, como é possível perceber.
Nas linhas e nas entrelinhas há o
ódio político. Mas, há também o ódio misógino. O ódio racista. O ódio aporofóbico.
O ódio transfóbico. ... O ódio que nasceu de uma construção necropolítica, nos
tempos em que essa nomenclatura ainda nem existia. Mas, é importante entender
que ele só resistiu até aqui, porque se transformou em bem de consumo.
Sim, o ódio que é disseminado pelas
mídias sociais, em alta concentração, é mercadoria que nutre a insatisfação, o
fastio, da sociedade de consumo que busca novidades para entreter e encobrir as
suas neuroses, carências e frustrações. O ódio a mantém alerta, engajada, pertencente,
e assim, ela não percebe a sua solidão, a sua incompletude, a sua insignificância
no mundo.
Daí a necessidade de enxergar a
situação com mais seriedade, com mais responsabilidade. Não basta conter o ódio,
se nada for feito para transmutá-lo e retirá-lo dessa condição. É preciso
reconhecer que a sociedade contemporânea está doente, no que diz respeito aos
seus valores, crenças, princípios, convicções.
Então, sem olhar para o ser
humano nesse contexto, sem inverter a sua posição com o ódio na escala de importância,
nada do que se fizer vai prosperar. Ao contrário, vai fazer do ódio algo maior,
mais beligerante, mais ameaçador do que tem sido até aqui. Já passou da hora de
entender quais são os riscos que corre um país sob o manto da permissividade
odiosa.
2 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/09/16/prefeito-de-cidade-no-rj-defende-castrar-mulheres-e-muito-filho-cara.htm