terça-feira, 19 de setembro de 2023

Os riscos que corre um país sob o manto da permissividade odiosa


Os riscos que corre um país sob o manto da permissividade odiosa

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Uma coisa que não cabe definitivamente, a nenhum cidadão brasileiro, após o 8 de janeiro, é colocar no rol da fanfarronice os discursos e os comportamentos do extremismo nacional.

Primeiro, porque não há aleatoriedade despretensiosa neles. Tudo tem método. Segundo, porque eles já apresentaram o seu cartão de visitas. Já sabemos do que são capazes e até onde se permitem ir para alcançar seus propósitos.

Então, qual a surpresa diante das informações obtidas do celular do ex-Ministro da Justiça 1? O problema não está no achado pela Polícia Federal. Na bizarrice repugnante e odiosa das mensagens ali armazenadas.

O problema é pensar que, assim como ele, em torno de 25% do eleitorado brasileiro comunga dos mesmos pensamentos, sentimentos, ideais do ex-Ministro. Portanto, ele não está só. Na verdade, nunca esteve só.

A representação materializada dessa fúria foi o que nutriu as mídias sociais na web e na deep web durante os últimos quatro anos, fortalecendo e fomentando todas as expressões anticidadãs e antidemocráticas que o país e o mundo puderam presenciar.

Então, imagine se todos os celulares e demais equipamentos tecnológicos utilizados pela população fossem periciados?! Talvez, os números e as informações pudessem ser ainda mais chocantes e escandalosos, dado o tempo em que esse movimento veio sendo fermentado na sociedade brasileira.   

E esse é o ponto que merece total atenção. Quando há uma ruptura com os limites da ética e da moral, o país é lançado em uma verdadeira arena de vale-tudo. Afinal, passa-se a tolerar e a institucionalizar quaisquer condutas que desvirtuem, deteriorem, ou desconsiderem, por completo, os parâmetros sociais estabelecidos. Basta que os indivíduos se considerem amparados e protegidos por certos poderes, certas distinções, certas importâncias sociais.

Mas, se engana quem pensa que esse extrapolar ético e moral está restrito às fronteiras político-partidárias. Não. A desfaçatez parece já ter alcançado as graças da legitimidade de um padrão contemporâneo de existência altamente permissivo.

Na última semana, por exemplo, durante os primeiros julgamentos dos réus dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), os advogados de defesa transformaram a tribuna em um espetáculo de escárnio, desrespeito e afronta à Corte, desvirtuando-se do exercício da advocacia para uma exposição, deplorável, nas redes sociais.

No entanto, não para por aí. Novas manchetes chegam para construir uma rede de repulsa e reflexão ainda mais consistente. “Prefeito de cidade no RJ defende ‘castrar’ mulheres: ‘É muito filho, cara’” 2. “Alunos de medicina ficam pelados e simulam masturbação durante jogo de vôlei feminino em campeonato universitário em SP” 3.

Se você se sentiu desconfortável diante dessas notícias, saiba que já é um bom começo! Porque não há nada de normal, de banal, de trivial nesses acontecimentos. O ódio que pulsa no Brasil não é um ódio qualquer. Ele não é genuíno da política partidária, como alguns querem fazer parecer. Ele é uma mistura complexa das heranças coloniais mais nefastas com o egoísmo individualista e narcísico presente na contemporaneidade e sustentado pelo poder capital.

Infelizmente, há mais de 500 anos o poder capital funciona no país como o passaporte que legitima todas as permissividades sociais. De modo que o modelo de organização social, desde os tempos coloniais, se mantém o mesmo e reafirma as suas práxis mais abjetas na tentativa de manter tudo como sempre foi, ou seja, na base do vale quanto pesa.

E como se percebe nos casos citados acima, em maior ou em menor escala, há uma resistência corporativista, ou institucional, que transforma a gravidade dos acontecimentos em episódios pontuais, para evitar uma possível reverberação das discussões a respeito e uma mobilização transformadora de velhos paradigmas.

As próprias punições ou responsabilizações que venham a ser aplicadas, já chegam com cara de mera satisfação a ser dada à sociedade; mas, sem o compromisso efetivo com a desconstrução daquele ato inicial. Então, não há mudanças, não há avanços, para o coletivo social.

Por isso a importância de refletir sobre o que está acontecendo bem debaixo do nosso nariz. O país respira em sobressalto sobre quando será a próxima vez. Porque todos os fatos levam a crer que ela vai acontecer sim. O ódio social está sendo fermentado sob diferentes formas, como é possível perceber.

Nas linhas e nas entrelinhas há o ódio político. Mas, há também o ódio misógino. O ódio racista. O ódio aporofóbico. O ódio transfóbico. ... O ódio que nasceu de uma construção necropolítica, nos tempos em que essa nomenclatura ainda nem existia. Mas, é importante entender que ele só resistiu até aqui, porque se transformou em bem de consumo.

Sim, o ódio que é disseminado pelas mídias sociais, em alta concentração, é mercadoria que nutre a insatisfação, o fastio, da sociedade de consumo que busca novidades para entreter e encobrir as suas neuroses, carências e frustrações. O ódio a mantém alerta, engajada, pertencente, e assim, ela não percebe a sua solidão, a sua incompletude, a sua insignificância no mundo.  

Daí a necessidade de enxergar a situação com mais seriedade, com mais responsabilidade. Não basta conter o ódio, se nada for feito para transmutá-lo e retirá-lo dessa condição. É preciso reconhecer que a sociedade contemporânea está doente, no que diz respeito aos seus valores, crenças, princípios, convicções.

Então, sem olhar para o ser humano nesse contexto, sem inverter a sua posição com o ódio na escala de importância, nada do que se fizer vai prosperar. Ao contrário, vai fazer do ódio algo maior, mais beligerante, mais ameaçador do que tem sido até aqui. Já passou da hora de entender quais são os riscos que corre um país sob o manto da permissividade odiosa.