quinta-feira, 6 de julho de 2023

Procura-se a fome do saber


Procura-se a fome do saber

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Que o mundo digital é viciante, isso a própria Ciência já vem alertando! Horas passadas em frente as telas conduzem sim, a uma hiperestimulação do sistema nervoso central com intensa liberação de dopamina, um hormônio importante no ciclo de recompensa cerebral 1. De modo que a imposição de limites têm sido uma questão fundamental para a manutenção da saúde física e mental dos indivíduos, especialmente, crianças e jovens.

Mas, a questão que trago para refletir, vai além desse viés. Gostando ou não das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), o fato é que elas já pertencem à realidade social contemporânea de modo definitivo. Trouxeram benefícios? Sim. Trouxeram malefícios? Sim. O que faltou, portanto, à dinâmica desse processo foi o equilíbrio, o qual deveria ter sido trazido pelas mãos de um planejamento estratégico para a incorporação social das mesmas.

Pois é, deveria, mas não foi. Simplesmente, porque como em todas as etapas da Revolução Industrial, as novidades foram emergindo segundo os ditames impostos pela monetização. Produzir mais lucro é a palavra de ordem. De modo que no caso das TICs, com atenção especial aos países em desenvolvimento e subdesenvolvidos, tais novidades caíram de paraquedas sem quaisquer preparações a respeito, inclusive, sem o chamado letramento digital 2.

O propósito era a produção e o consumo indiscriminado de novidades, que em um piscar de olhos já se tornam obsoletas pelo frenético desenvolvimento do setor tecnológico mundial. Nunca houve uma preocupação real em construir um aprendizado do cidadão em torno de uma utilização plena das ferramentas tecnológicas, a fim de atender às suas necessidades cotidianas. De modo que houve uma explosão de consumo de diferentes produtos, mas sem que se soubesse exatamente as razões que justificavam aquela aquisição.

De repente, os olhos do mundo foram imprevidentemente capturados pelas TICs e começaram a demonstrar perdas quantitativas e qualitativas não apenas no campo das relações humanas; mas, particularmente, das atividades cognitivas. Pesquisas importantes, em nível global, demonstram um empobrecimento do pensamento, da linguagem, da percepção, da memória e do raciocínio, associado ao uso intenso e contínuo das ferramentas tecnológicas. Com prejuízos, bastante visíveis, no campo educacional.

Fato que explica, pelo menos em parte, “A proibição do uso de celulares nas escolas: uma tendência crescente na Europa” 3. Países como a Holanda, a Finlândia e a França consideram que a medida pode “afastar as distrações causadas por esses dispositivos e proporcionar um ambiente de aprendizado mais focado”. Afinal de contas, as TICs não são um privilégio exclusivo da realidade educacional, elas estão presentes 24 horas por dia no cotidiano de milhões de famílias mundo afora, ainda que ressalvados os aspectos pertinentes às desigualdades socioeconômicas.

A grande verdade, é que crianças e jovens não precisam, necessariamente, da escola para desfrutarem das aventuras e desventuras do mundo digital. A humanidade foi sumariamente imersa nessa realidade, e ponto final. Portanto, não está na presença das TICs no universo escolar, o grande diferencial do ensino/aprendizagem contemporâneo. Avaliações como o Estudo Interacional de Progresso em Leitura (PIRLS) ou o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) – Programme for International Student Assessment -, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, não traduzem a presença das TICs como elemento de contribuição significativa de bons resultados ou da ampliação destes.

Aliás, se as TICs tivessem de fato esse efeito transformador extraordinário sobre a Educação, milhões de crianças e jovens não teriam sido tão severamente impactados pelo baixo aproveitamento escolar, durante o período de Pandemia. Mas, em muitos países, essas tecnologias sequer estavam preparadas para cumprir um papel dessa magnitude e acabaram ficando abaixo das expectativas, apesar dos esforços. Sem contar que, para milhares de alunos, o processo de ensino/aprendizagem virtual ao contrário de aproximá-los do êxito, mostrou-se um franco caminho para o distanciamento, por diferentes razões.

Daí a necessidade da reflexão a respeito. Não há o que se questionar, quanto ao fato de a Educação querer estar alinhada ao processo de evolução e desenvolvimento do mundo; afinal, esse movimento é parte integrante dela. O que não se pode, por exemplo, é sucumbir aos apelos mercantis e monetizantes da sociedade contemporânea, os quais tentam convencer as pessoas de que aspectos como a evasão escolar e o desinteresse do aluno, são consequências do mau, ou limitado, uso das TICs. Porque, não é por aí!

Considerando que no cerne da Educação estão seres humanos, eles é que precisam se apoderar do seu protagonismo. A principal moeda do mundo, na atualidade, é o tempo. As Big Techs impuseram uma disputa selvagem pelo tempo das pessoas, o que indiretamente produz uma superficialização tanto das informações apresentadas quanto à construção do conhecimento pelo indivíduo.

Assim, com uma avalanche de coisas acontecendo por segundo na internet, você acredita que algum aluno vai se sentir satisfeito, proativo, interessado, nos modelos didático-pedagógicos apresentados? Nem se a escola for toda informatizada, com tecnologia de última geração! É preciso criar uma consciência de que não estão perdendo tempo; mas, ganhando. A ideia, então, é fazer com que os alunos empreguem o seu tempo construindo o próprio conhecimento, no ambiente escolar, ou seja, aprender a partir de projetos.

Trata-se de um ensino aplicado, interdisciplinar, transdisciplinar, que produz um conhecimento aglutinado de diferentes assuntos e áreas. O aluno ganha fundamentação, argumentação, consciência crítica e reflexiva, enquanto lapida a sua própria identidade cidadã. Colocando a mão na massa é que as crianças e jovens podem descobrir as suas habilidades, as suas competências, os seus interesses culturais, enfim. Eles vão sorver informações a partir de fontes não convencionais para eles – bibliotecas, filmes, documentários, visitas técnicas, palestras, peças teatrais, músicas,... – ou seja, fora do contexto das TICs.

Porque é através dessa ruptura com as zonas de conforto tecnológicas, que eles de fato vão consolidar a sua identidade através da experienciação. Não haverá nada pronto. Mastigado. Resumido. Nem certo e nem errado. Eles vão ter que se colocar à prova e descobrir que o mundo é feito de perspectivas, de pontos de vista diferentes, plurais. Vão desbravar caminhos e se surpreender com o ponto de chegada.

Será algo inovador para os alunos; mas, profundamente desafiador para os professores. Sim, porque o engessamento dos projetos político-pedagógicos, ao longo do tempo, não deixa de impor um modus operandi limitado ao docente, no que diz respeito ao seu modo de ver, pensar, sentir e fazer a sua prática profissional. Então, tirá-lo dessa posição limitada também irá permitir revelar talentos e criatividades que, talvez, ele nem supunha possuir.

Em síntese, o que trago com minhas considerações é aquilo que, tão pertinente e poeticamente, escreveu Rubem Alves, ou seja, “Toda experiência de aprendizagem se inicia com uma experiência afetiva. É a fome que põe em funcionamento o aparelho pensador. Fome é afeto. O pensamento nasce do afeto, nasce da fome. Não confundir afeto com beijinhos e carinhos. Afeto, do latim ‘affetare’, quer dizer ‘ir atrás’. É o movimento da alma na busca do objeto de sua fome. É o Eros platônico, a fome que faz a alma voar em busca do fruto sonhado” 4.



2 Letramento digital diz respeito às práticas sociais de leitura e produção de textos em ambientes digitais, isto é, ao uso de textos em ambientes propiciados pelo computador ou por dispositivos moveis, tais como celulares e tablets, em plataformas como e-mails, redes sociais, na web, entre outras. Fonte: https://www.ceale.fae.ufmg.br/glossarioceale/verbetes/letramento-digital#:~:text=Letramento%20digital%20diz%20respeito%20%C3%A0s,sociais%20na%20web%2C%20entre%20outras.

4 Rubem Alves: A arte de produzir fome. (29/10/2002). https://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u146.shtml