Trapaceando
nas quatro linhas
Por
Alessandra Leles Rocha
Os rumos que a sociedade
contemporânea tem tomado são mesmo, lastimáveis! O recente escândalo da
manipulação de resultados no futebol brasileiro 1
acende um sinal de alerta quanto aos descaminhos que a deterioração da ética e
da moral pode causar à sociedade, desde as situações mais simples e cotidianas.
Por trás da trapaça, da má fé, da
corrupção, envolvendo o esporte mais amado do país, há uma série de outros
aspectos a serem analisados e refletidos profundamente. Afinal, a adulteração
de resultados não se resume a si mesma. Tendo se tornado, ao longo do tempo, um
esporte de massa, o futebol é para milhares de cidadãos, especialmente aqueles
pertencentes as camadas menos privilegiadas da sociedade, a única diversão, a
única via de acesso ao lazer.
Assim, por mais que a consciência
diga que ganhar ou perder faz parte do jogo, para muitos o espetáculo carrega
consigo bem mais que aplausos, gritos, suspiros e lágrimas. Carrega o peso de
uma paixão que ultrapassa a lógica e transborda em um sentimento de devoção tão
intenso e profundo, que se abstém de qualquer lógica ou bom senso imposto pelo
cotidiano.
Há quem economize cada vintém
suado para ir ao jogo, ou para comprar uma camisa, ou para substituir o radinho
de pilha por uma televisão, ... Só para não perder nenhuma gota dessa euforia balsâmica
que nutre e cura as mazelas de uma vida comum e difícil. E por 90 minutos se
perdem no esquecimento das maldades do mundo, como se a alegria pudesse vencer
quaisquer tipos de inimigos.
Então, de repente, chega a fraude
e implode com milhões de sonhos, expectativas e emoções. Acontece que esse é só
um dos inúmeros vieses decorrentes desse processo. O torcedor não está só nesse
prejuízo material e subjetivo. Há muitas camadas a serem dissecadas que se cruzam
nessa dinâmica corrosiva. Quando a manipulação de resultados afeta o futebol
nacional, ela está sim, impactando os investimentos públicos e privados promovidos
no setor.
É de conhecimento nacional, por
exemplo, que passada a Copa do Mundo de 2014, o Brasil convive com a
subutilização ou abandono de vários dos estádios construídos para o evento, em decorrência
da incapacidade de constituir público e/ou renda satisfatórios. Diversas discussões e iniciativas têm sido
buscadas no sentido de resolver essa situação; mas, agora, diante dessas
notícias vexatórias, vale perguntar: quem vai querer pagar por um ingresso para
assistir a um jogo de cartas marcadas?
Se o que move o jogo presencial a
ter baixa audiência é a manipulação dos resultados, parece lógico que essa
repercussão ruim, também, tende a incidir sobre a visualização dos canais de
exibição, sobre a aquisição de camisas e souvenires dos clubes, sobre a
popularidade dos atletas nas redes sociais, ... Simplesmente, porque paira uma
aura pesada e triste de suspeição, de desconfiança, sobre o futebol. Arrastados
pela corrente do Fato ou Fake, o esporte desbota os seus tempos de glória e de prestígio.
Será que foi falta? Será que foi pênalti?
Será que a expulsão foi justa? Será que foi contusão ou encenação? Será que ...?
Que pena! Antes de mais esse
capítulo decepcionante na história do futebol brasileiro, não vamos nos
esquecer de que já vínhamos sendo obrigados a conviver com as violências nas
arquibancadas e arredores, com o extremismo das torcidas organizadas, com o
afastamento das famílias dos estádios, ... O futebol fora contaminado pelas
tensões contemporâneas; sobretudo, o masculino. Então, agora, se tem uma
complexa rede de senões para ofuscá-lo.
Lamento dizer, mas a essência se
perdeu! Caiu nas teias da mercantilização. Esse episódio demonstra como o
futebol deixou para trás a diversão, a competição, o lúdico, a fantasia, para
alimentar o insaciável da ganância, da ambição, da deslealdade de uns e outros,
por aí. E como em tantas outras situações do cotidiano, não me parece que as
punições a serem aplicadas serão capazes de romper com essas práxis, definitivamente.
Pois não se trata somente da efervescência
do mundo virtual. O que fortalece e impulsiona o desvirtuamento ético e moral,
nesses casos, é a certeza de encontrar respaldo e legitimidade dentro da própria
sociedade, ainda que em pequenos grupos. O delito acaba acontecendo sob aplausos
e palavras de incentivo; então, o sentimento de pertencimento social sufoca a
certeza da punição, das consequências jurídicas, abrindo espaço para a sua contínua
reverberação.
Portanto, hoje é o futebol. E amanhã?
Qual desporto poderá ser a bola da vez? Não
sejamos ingênuos! A manipulação de resultados sinaliza como um vírus de alto
potencial disseminador. Surge do nada, ou melhor, quando encontra terreno propício
para se instalar e, quando se vê, os estragos já estão consumados. Às vésperas
dos Jogos Olímpicos de Paris, em 2024, é importante que as entidades ligadas
aos esportes, sejam estes profissionais ou amadores; bem como, a sociedade em geral,
passem a oferecer mais atenção a essas reflexões.
Infelizmente, no mundo desportivo
não deveria ser somente o doping químico ou o doping mecânico as únicas
preocupações. Todos os aspectos éticos e morais que envolvem o desporto, o
desportista e seus respectivos staffs, merecem o centro das discussões e das
formulações de protocolos, políticas e estratégias a esse respeito,
considerando uma realidade contemporânea alicerçada nas estruturas tecnológicas
virtuais, as quais têm um poder devastador de formação de opinião, de
consolidação de exemplo e, principalmente, de construtora de crenças e valores.
Aproveitando o que prega o
Olimpismo, talvez, seja o momento certo para resgatar dentre seus princípios, a
igualdade, a equidade, a justiça, o respeito pelas pessoas, a racionalidade, a excelência
e o “fair play” (jogo limpo), na
sociedade brasileira. O Brasil que é um celeiro de grandes atletas não pode macular
suas grandes conquistas e feitos; principalmente, quando vem despontando seu
protagonismo em desportos, até então, distantes da sua realidade. Portanto, que
as devidas providências sejam tomadas para que nem o futebol, e nem quaisquer
outros esportes nacionais, se torne palco do constrangedor “jeitinho brasileiro”!