segunda-feira, 22 de maio de 2023

Trapaceando nas quatro linhas


Trapaceando nas quatro linhas

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Os rumos que a sociedade contemporânea tem tomado são mesmo, lastimáveis! O recente escândalo da manipulação de resultados no futebol brasileiro 1 acende um sinal de alerta quanto aos descaminhos que a deterioração da ética e da moral pode causar à sociedade, desde as situações mais simples e cotidianas.

Por trás da trapaça, da má fé, da corrupção, envolvendo o esporte mais amado do país, há uma série de outros aspectos a serem analisados e refletidos profundamente. Afinal, a adulteração de resultados não se resume a si mesma. Tendo se tornado, ao longo do tempo, um esporte de massa, o futebol é para milhares de cidadãos, especialmente aqueles pertencentes as camadas menos privilegiadas da sociedade, a única diversão, a única via de acesso ao lazer.  

Assim, por mais que a consciência diga que ganhar ou perder faz parte do jogo, para muitos o espetáculo carrega consigo bem mais que aplausos, gritos, suspiros e lágrimas. Carrega o peso de uma paixão que ultrapassa a lógica e transborda em um sentimento de devoção tão intenso e profundo, que se abstém de qualquer lógica ou bom senso imposto pelo cotidiano.

Há quem economize cada vintém suado para ir ao jogo, ou para comprar uma camisa, ou para substituir o radinho de pilha por uma televisão, ... Só para não perder nenhuma gota dessa euforia balsâmica que nutre e cura as mazelas de uma vida comum e difícil. E por 90 minutos se perdem no esquecimento das maldades do mundo, como se a alegria pudesse vencer quaisquer tipos de inimigos.

Então, de repente, chega a fraude e implode com milhões de sonhos, expectativas e emoções. Acontece que esse é só um dos inúmeros vieses decorrentes desse processo. O torcedor não está só nesse prejuízo material e subjetivo. Há muitas camadas a serem dissecadas que se cruzam nessa dinâmica corrosiva. Quando a manipulação de resultados afeta o futebol nacional, ela está sim, impactando os investimentos públicos e privados promovidos no setor.

É de conhecimento nacional, por exemplo, que passada a Copa do Mundo de 2014, o Brasil convive com a subutilização ou abandono de vários dos estádios construídos para o evento, em decorrência da incapacidade de constituir público e/ou renda satisfatórios.  Diversas discussões e iniciativas têm sido buscadas no sentido de resolver essa situação; mas, agora, diante dessas notícias vexatórias, vale perguntar: quem vai querer pagar por um ingresso para assistir a um jogo de cartas marcadas?

Se o que move o jogo presencial a ter baixa audiência é a manipulação dos resultados, parece lógico que essa repercussão ruim, também, tende a incidir sobre a visualização dos canais de exibição, sobre a aquisição de camisas e souvenires dos clubes, sobre a popularidade dos atletas nas redes sociais, ... Simplesmente, porque paira uma aura pesada e triste de suspeição, de desconfiança, sobre o futebol. Arrastados pela corrente do Fato ou Fake, o esporte desbota os seus tempos de glória e de prestígio.  Será que foi falta? Será que foi pênalti? Será que a expulsão foi justa? Será que foi contusão ou encenação? Será que ...?

Que pena! Antes de mais esse capítulo decepcionante na história do futebol brasileiro, não vamos nos esquecer de que já vínhamos sendo obrigados a conviver com as violências nas arquibancadas e arredores, com o extremismo das torcidas organizadas, com o afastamento das famílias dos estádios, ... O futebol fora contaminado pelas tensões contemporâneas; sobretudo, o masculino. Então, agora, se tem uma complexa rede de senões para ofuscá-lo.

Lamento dizer, mas a essência se perdeu! Caiu nas teias da mercantilização. Esse episódio demonstra como o futebol deixou para trás a diversão, a competição, o lúdico, a fantasia, para alimentar o insaciável da ganância, da ambição, da deslealdade de uns e outros, por aí. E como em tantas outras situações do cotidiano, não me parece que as punições a serem aplicadas serão capazes de romper com essas práxis, definitivamente.

Pois não se trata somente da efervescência do mundo virtual. O que fortalece e impulsiona o desvirtuamento ético e moral, nesses casos, é a certeza de encontrar respaldo e legitimidade dentro da própria sociedade, ainda que em pequenos grupos. O delito acaba acontecendo sob aplausos e palavras de incentivo; então, o sentimento de pertencimento social sufoca a certeza da punição, das consequências jurídicas, abrindo espaço para a sua contínua reverberação.

Portanto, hoje é o futebol. E amanhã? Qual desporto poderá ser a bola da vez?  Não sejamos ingênuos! A manipulação de resultados sinaliza como um vírus de alto potencial disseminador. Surge do nada, ou melhor, quando encontra terreno propício para se instalar e, quando se vê, os estragos já estão consumados. Às vésperas dos Jogos Olímpicos de Paris, em 2024, é importante que as entidades ligadas aos esportes, sejam estes profissionais ou amadores; bem como, a sociedade em geral, passem a oferecer mais atenção a essas reflexões.

Infelizmente, no mundo desportivo não deveria ser somente o doping químico ou o doping mecânico as únicas preocupações. Todos os aspectos éticos e morais que envolvem o desporto, o desportista e seus respectivos staffs, merecem o centro das discussões e das formulações de protocolos, políticas e estratégias a esse respeito, considerando uma realidade contemporânea alicerçada nas estruturas tecnológicas virtuais, as quais têm um poder devastador de formação de opinião, de consolidação de exemplo e, principalmente, de construtora de crenças e valores.

Aproveitando o que prega o Olimpismo, talvez, seja o momento certo para resgatar dentre seus princípios, a igualdade, a equidade, a justiça, o respeito pelas pessoas, a racionalidade, a excelência e o “fair play” (jogo limpo), na sociedade brasileira. O Brasil que é um celeiro de grandes atletas não pode macular suas grandes conquistas e feitos; principalmente, quando vem despontando seu protagonismo em desportos, até então, distantes da sua realidade. Portanto, que as devidas providências sejam tomadas para que nem o futebol, e nem quaisquer outros esportes nacionais, se torne palco do constrangedor “jeitinho brasileiro”!