Quando
a Saúde e a Necropolítica se encontram...
Por
Alessandra Leles Rocha
Lamento, mas as afrontas aos
Direitos Humanos vão muito além das violências explícitas que marcam o
cotidiano. Há camadas e mais camadas nesse assunto que se invisibilizam através
de sutis atitudes e comportamentos, as quais acabam favorecidas pelo turbilhão frenético
do mundo contemporâneo que consome o tempo, de análise e de reflexão, com uma
voracidade incapacitante.
E ainda que muitos não tenham se
dado conta, nada tem sido mais real do que o duelo estabelecido entre os
Direitos Humanos e a Necropolítica em todo o mundo. Durante algum tempo se
podia acreditar que “as normas que
reconhecem e protegem a dignidade de todos os seres humanos” 1 eram intocáveis; mas, após a barbárie estabelecida pela Segunda Guerra Mundial
pode-se entender, de uma vez por todas, que a fúria do “uso do poder político e social,
especialmente por parte do Estado, de forma a determinar, por meio de ações ou
omissões quem pode permanecer vivo ou deve morrer” 2
é incansável. Isso significa que tudo pode se transformar em pretexto para que
a necropolítica cumpra seus objetivos.
O exemplo mais recente chega por
meio de notícias, divulgadas pelos veículos de comunicação e informação
nacionais, a respeito do constante cancelamento unilateral dos Planos de Saúde
privados 3, no país. Pois é, de repente ficou claríssimo
como de nada adianta a Carta Magna nacional dizer que “A saúde é direito de todos e dever do estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação” (art. 196). Tudo muito bonito no papel!
Acontece que na prática cotidiana, certas variáveis decorrentes das
desigualdades socioeconômicas flagrantes pulverizam esse direito em um piscar
de olhos.
No caso específico dos Planos de
Saúde privados, se engana quem pensa que eles emergiram do altruísmo cooperativo
ao Sistema Único de Saúde (SUS), para aliviar o peso social sobre o atendimento
público. Quando o Estado permite precificar a saúde, ele oportuniza ao setor
privado a perversa associação entre o que é pago e a quantidade/qualidade do
serviço prestado. Não é à toa que o preço das mensalidades varia de acordo com
a quantidade de serviços estabelecidos no plano contratado, o que reflete na
qualidade dos mesmos. O que em linhas gerais, significa que o atendimento
médico demandado pelo indivíduo precisa caber no plano de saúde que ele
contratou, caso contrário, ele não será atendido.
Sob essa lógica, então, aqueles
poucos afortunados que podem pagar os planos mais caros e abrangentes deveriam
ter o direito de respirar aliviados. Só que não! Nem paz, nem tranquilidade. Embora,
independentemente do tipo de plano contratado pelo cliente, a regra básica de
todos eles é que a inadimplência bloqueia automaticamente a prestação dos
serviços. Sendo assim, não deveria o setor viver debulhando lágrimas a esse
respeito e usando disso para justificar constantes dificuldades operacionais,
apesar de não se constrangerem em aplicar reajustes periódicos e elevadíssimos.
Aliás, abrindo um parêntese a
esse respeito, a condição humana é fatiada pelos planos de saúde através de
faixas etárias. Quanto mais o indivíduo envelhece mais caro se torna o plano,
desconsiderando que o idoso no Brasil é sumariamente humilhado com o
achatamento da renda que traduz a sua aposentadoria, depois de anos de
contribuição. Alegam que os custos dos serviços prestados aos idosos justificam
essa prática, quando, na verdade, nenhuma faixa etária traduz a ocorrência de
doenças mais ou menos graves. Fatores genéticos, ambientais, comportamentais,
transformam indivíduos saudáveis em doentes, do dia para a noite.
De modo que, vira daqui e mexe
dali, amiúde se ouve falar de planos de saúde privados que faliram e deixaram
seus clientes na mão, a mercê da própria sorte. Na verdade, em bom português, falências
fraudulentas. Sim, porque é tanta ganância, tanta cobiça, que eles acabam se
perdendo em labirintos de práxis nada ortodoxas. No entanto, sejamos justos
quanto ao fato de que somente quando as situações colapsam é que a Agência
Nacional de Saúde Suplementar (ANS), uma agência reguladora vinculada ao Ministério
da Saúde brasileiro, se manifesta de alguma forma. Por onde andam esses agentes
públicos que não veem o que acontece na sua seara de atuação, hein?
E enquanto a situação privada
transita dessa forma, a rede pública padece os desafios de uma sobrecarga
constante, dado o sucateamento histórico e os recorrentes episódios de má
administração do setor, em todo o país. Cada vez que o cidadão não consegue mais
arcar com um plano privado de saúde, o SUS é a sua única esperança. Cada vez
que o plano privado de saúde restringe a oferta de profissionais e de serviços aos
clientes, esses são obrigados a pagar do próprio bolso ou a recorrer ao SUS, em
uma longa espera pelo atendimento necessário. O que aponta para algo muito importante
a ser analisado.
O modo como vem atuando os planos
privados de saúde no Brasil, não deixam dúvidas de que que não só, não estão cumprindo
satisfatoriamente o seu papel; mas, estão contribuindo para um ciclo de tensões
e sobrecargas socioeconômicas, inclusive, quanto ao franco processo de
judicialização da saúde. Quando a ANS flexibiliza demasiadamente o seu papel
regulamentador, controlador e fiscalizador das atividades relativas à saúde
privada no Brasil, ela afeta diretamente às garantias constitucionais do cidadão
em relação à saúde. A tal ponto que, muitas vezes, mesmo judicializando, indivíduos
falecem à espera de atendimento, de tratamento, de cirurgias e de leitos de terapia
intensiva, pelo volume de demanda nos tribunais.
Queiram ou não admitir, o direito
à saúde tem sim, se transformando em instrumento gerador de riscos para
diversos setores da sociedade, pelo fato de acentuar os contextos de
desigualdade, de exclusão, de precarização da vida humana. A Saúde no Brasil
não está salvando, curando, protegendo. A
Saúde no Brasil está adoecendo, matando, abandonando. Dentro de um processo que
se arrasta há bastante tempo e que, vez por outra, ganha contornos ainda mais
severos e cruéis, como foi durante a Pandemia. Quando a necessidade urgente não
deu outra alternativa senão agregar esforços da rede pública e privada para
socorrer a população. Caso contrário, muito mais pessoas teriam morrido.
Tudo o que foi exposto nesse
texto já seria suficiente para descortinar essa discussão; mas, não posso
deixar de acrescentar uma variável importantíssima, que é o negacionismo científico,
em especial no que diz respeito à vacinação. No contexto da população contemporânea
é preciso admitir que indivíduos considerados 100% saudáveis são uma exceção.
Abster-se da vacinação é ampliar os riscos de associação de doenças preveníveis
com comorbidades que acentuam a necessidade de atendimentos complexos e em
estado de longa permanência de internação. Considerando as realidades e as
perspectivas que vêm se impondo no país em torno da prestação de serviços
públicos e privados de saúde, não vacinar se torna, portanto, uma aposta de
altíssimo risco e estrondosa irresponsabilidade cidadã.
1 https://www.unicef.org/brazil/o-que-sao-direitos-humanos#:~:text=Os%20direitos%20humanos%20s%C3%A3o%20normas,tem%20em%20rela%C3%A7%C3%A3o%20a%20eles.