domingo, 21 de maio de 2023

Quando a Saúde e a Necropolítica se encontram...


Quando a Saúde e a Necropolítica se encontram...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Lamento, mas as afrontas aos Direitos Humanos vão muito além das violências explícitas que marcam o cotidiano. Há camadas e mais camadas nesse assunto que se invisibilizam através de sutis atitudes e comportamentos, as quais acabam favorecidas pelo turbilhão frenético do mundo contemporâneo que consome o tempo, de análise e de reflexão, com uma voracidade incapacitante.

E ainda que muitos não tenham se dado conta, nada tem sido mais real do que o duelo estabelecido entre os Direitos Humanos e a Necropolítica em todo o mundo. Durante algum tempo se podia acreditar que “as normas que reconhecem e protegem a dignidade de todos os seres humanos” 1 eram intocáveis; mas, após a barbárie estabelecida pela Segunda Guerra Mundial pode-se entender, de uma vez por todas, que a fúria do “uso  do poder político e social, especialmente por parte do Estado, de forma a determinar, por meio de ações ou omissões quem pode permanecer vivo ou deve morrer” 2 é incansável. Isso significa que tudo pode se transformar em pretexto para que a necropolítica cumpra seus objetivos.

O exemplo mais recente chega por meio de notícias, divulgadas pelos veículos de comunicação e informação nacionais, a respeito do constante cancelamento unilateral dos Planos de Saúde privados 3, no país. Pois é, de repente ficou claríssimo como de nada adianta a Carta Magna nacional dizer que “A saúde é direito de todos e dever do estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (art. 196). Tudo muito bonito no papel! Acontece que na prática cotidiana, certas variáveis decorrentes das desigualdades socioeconômicas flagrantes pulverizam esse direito em um piscar de olhos.  

No caso específico dos Planos de Saúde privados, se engana quem pensa que eles emergiram do altruísmo cooperativo ao Sistema Único de Saúde (SUS), para aliviar o peso social sobre o atendimento público. Quando o Estado permite precificar a saúde, ele oportuniza ao setor privado a perversa associação entre o que é pago e a quantidade/qualidade do serviço prestado. Não é à toa que o preço das mensalidades varia de acordo com a quantidade de serviços estabelecidos no plano contratado, o que reflete na qualidade dos mesmos. O que em linhas gerais, significa que o atendimento médico demandado pelo indivíduo precisa caber no plano de saúde que ele contratou, caso contrário, ele não será atendido.   

Sob essa lógica, então, aqueles poucos afortunados que podem pagar os planos mais caros e abrangentes deveriam ter o direito de respirar aliviados. Só que não! Nem paz, nem tranquilidade. Embora, independentemente do tipo de plano contratado pelo cliente, a regra básica de todos eles é que a inadimplência bloqueia automaticamente a prestação dos serviços. Sendo assim, não deveria o setor viver debulhando lágrimas a esse respeito e usando disso para justificar constantes dificuldades operacionais, apesar de não se constrangerem em aplicar reajustes periódicos e elevadíssimos.

Aliás, abrindo um parêntese a esse respeito, a condição humana é fatiada pelos planos de saúde através de faixas etárias. Quanto mais o indivíduo envelhece mais caro se torna o plano, desconsiderando que o idoso no Brasil é sumariamente humilhado com o achatamento da renda que traduz a sua aposentadoria, depois de anos de contribuição. Alegam que os custos dos serviços prestados aos idosos justificam essa prática, quando, na verdade, nenhuma faixa etária traduz a ocorrência de doenças mais ou menos graves. Fatores genéticos, ambientais, comportamentais, transformam indivíduos saudáveis em doentes, do dia para a noite.

De modo que, vira daqui e mexe dali, amiúde se ouve falar de planos de saúde privados que faliram e deixaram seus clientes na mão, a mercê da própria sorte. Na verdade, em bom português, falências fraudulentas. Sim, porque é tanta ganância, tanta cobiça, que eles acabam se perdendo em labirintos de práxis nada ortodoxas. No entanto, sejamos justos quanto ao fato de que somente quando as situações colapsam é que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), uma agência reguladora vinculada ao Ministério da Saúde brasileiro, se manifesta de alguma forma. Por onde andam esses agentes públicos que não veem o que acontece na sua seara de atuação, hein?

E enquanto a situação privada transita dessa forma, a rede pública padece os desafios de uma sobrecarga constante, dado o sucateamento histórico e os recorrentes episódios de má administração do setor, em todo o país. Cada vez que o cidadão não consegue mais arcar com um plano privado de saúde, o SUS é a sua única esperança. Cada vez que o plano privado de saúde restringe a oferta de profissionais e de serviços aos clientes, esses são obrigados a pagar do próprio bolso ou a recorrer ao SUS, em uma longa espera pelo atendimento necessário. O que aponta para algo muito importante a ser analisado.

O modo como vem atuando os planos privados de saúde no Brasil, não deixam dúvidas de que que não só, não estão cumprindo satisfatoriamente o seu papel; mas, estão contribuindo para um ciclo de tensões e sobrecargas socioeconômicas, inclusive, quanto ao franco processo de judicialização da saúde. Quando a ANS flexibiliza demasiadamente o seu papel regulamentador, controlador e fiscalizador das atividades relativas à saúde privada no Brasil, ela afeta diretamente às garantias constitucionais do cidadão em relação à saúde. A tal ponto que, muitas vezes, mesmo judicializando, indivíduos falecem à espera de atendimento, de tratamento, de cirurgias e de leitos de terapia intensiva, pelo volume de demanda nos tribunais.

Queiram ou não admitir, o direito à saúde tem sim, se transformando em instrumento gerador de riscos para diversos setores da sociedade, pelo fato de acentuar os contextos de desigualdade, de exclusão, de precarização da vida humana. A Saúde no Brasil não está salvando, curando, protegendo.  A Saúde no Brasil está adoecendo, matando, abandonando. Dentro de um processo que se arrasta há bastante tempo e que, vez por outra, ganha contornos ainda mais severos e cruéis, como foi durante a Pandemia. Quando a necessidade urgente não deu outra alternativa senão agregar esforços da rede pública e privada para socorrer a população. Caso contrário, muito mais pessoas teriam morrido.   

Tudo o que foi exposto nesse texto já seria suficiente para descortinar essa discussão; mas, não posso deixar de acrescentar uma variável importantíssima, que é o negacionismo científico, em especial no que diz respeito à vacinação. No contexto da população contemporânea é preciso admitir que indivíduos considerados 100% saudáveis são uma exceção. Abster-se da vacinação é ampliar os riscos de associação de doenças preveníveis com comorbidades que acentuam a necessidade de atendimentos complexos e em estado de longa permanência de internação. Considerando as realidades e as perspectivas que vêm se impondo no país em torno da prestação de serviços públicos e privados de saúde, não vacinar se torna, portanto, uma aposta de altíssimo risco e estrondosa irresponsabilidade cidadã.