Muita
trovoada sem uma gota de chuva!
Por
Alessandra Leles Rocha
Aberta a pirotecnia legislativa
das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs)1
e o cidadão vai percebendo o desvirtuamento imposto pelos nobres deputados e
senadores da República em relação ao previsto constitucionalmente como exercício
da sua função 2. Em linhas gerais, seu
papel significa elaborar leis, proceder à fiscalização contábil, financeira,
orçamentária, operacional e patrimonial da União e das demais entidades da administração
pública direta e indireta.
E só para não dizer que há alguma
intransigência na minha percepção, esclareço que, de fato, as CPIs têm na sua essência
um caráter fiscalizador. Acontece que toda a sua amplidão de poderes investigativos,
como já visto inúmeras vezes na história nacional, no fim das contas não se
traduz na autoridade para proferir sentença, nem julgar e nem punir quem quer
que seja. Afinal de contas, proferir sentença, julgar e punir são atribuições
do Poder Judiciário. Portanto, muita trovoada sem uma gota de chuva!
Vale ressaltar que, na contramão
dos últimos anos, quando alguns indivíduos e segmentos do judiciário nacional,
lamentavelmente, deixaram a desejar no cumprimento do seu papel constitucional,
no Brasil, de 2023, é visível a retomada, no campo Judiciário, do protagonismo e
efetividade de suas instituições. Portanto, o que fere e se desalinha com os princípios
do Estado de Direito, da Democracia e da constitucionalidade, já se encontra
sob criterioso escrutínio das devidas instâncias da Justiça, correndo dentro
dos parâmetros legais vigentes e publicizando, pelo princípio da transparência
da administração pública, os resultados obtidos.
Então, se não é para resolver,
por que motivo abrir uma CPI? Bem, 500 anos história me parecem suficientes
para já termos identificado a vaidade política como um traço marcante dos representantes
nacionais. Assim, uma CPI é um palco iluminado para as narrativas e discursos
inflamados, para uma visibilidade além do tempo regulamentar das propagandas
partidárias, para construção de recortes ideológicos a fim de nutrir as mídias sociais
e empolgar os simpatizantes.
Sem contar que tudo isso acontece
abstendo-se de tirar um vintém sequer dos recursos previstos para o seu trabalho
parlamentar, ou seja, do orçamento já fixado para os membros do legislativo. Haja
vista a colaboração dos veículos de comunicação e de informação, os quais
voltam suas lentes e microfones para a cobertura dos trabalhos, propiciando
tempo extra de televisão e publicidade aos participantes, por meio de
entrevistas e coletivas, que não geram quaisquer ônus aos cofres públicos. Todo
o resto, em termos logísticos, acaba saindo do dinheiro público; mas, em razão
da diluição da sua aplicação no processo, passa despercebido aos olhos do
contribuinte brasileiro.
Lamento que a classe política nacional
veja sentido, portanto, nesse tipo de atuação. Fabricar relatórios e mais
relatórios, muitos deles que não dizem nada para coisa nenhuma, somente para
lustrar o ego da sua importância no cenário legislativo, constrange o país!
Ora, o que não falta por aqui são leis aguardando empoeiradas, dentro de
gavetas, por regulamentações importantes, ou assuntos cotidianos demandando
discussões técnicas e científicas para serem contemplados por legislações
inovadoras, ou questões que alicerçam o desenvolvimento e o progresso nacional e
precisam ser trazidas ao diálogo cidadão entre legisladores e população, ...
enfim.
Justamente porque a nova formação
do Congresso Nacional, a partir de 1º de janeiro de 2023, se alinha à condição
de oposição ao governo, é que se faz tão necessária uma legislatura atuante, no
sentido de trabalhar em favor do país, ao invés de demandar tempo com questões
que já estão sendo tratadas pelas autoridades competentes. Infelizmente, parece
haver um ranço histórico na classe política brasileira que a fez
recorrentemente cometer o equívoco de confundir política com politicagem.
Pois é, esse tipo de engano só
faz reforçar situações que levam os representantes do povo a caírem, por
exemplo, na tentação das seduções do fisiologismo político-partidário,
esquecendo-se dos seus compromissos éticos e morais com o país e seus séquitos de
eleitores e simpatizantes. Quando tudo vira politicagem o país perde, a
população perde, a democracia perde, a cidadania, o desenvolvimento e o
progresso perdem. Basta ver, por exemplo, qual a classificação do Brasil no
ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)3,
do Produto Interno Bruto (PIB) 4, do
índice de Gini 5, do PISA 6 , do Pirls 7.
É sobre isso que o Congresso
Nacional deveria se debruçar. Sobre os interesses de quem representam, ou seja,
o povo. Chega a ser constrangedor pedir aos nobres legisladores que
experimentem substituir o viés da politicagem pela política, quando isso
deveria ser regra e não exceção. No entanto, tendo em vista o histórico
político nacional, a ideia até que faz sentido! Seria não só uma ótima
oportunidade para que eles se deparassem com a surpresa de uma visibilidade e
popularidade muito mais expressiva e consistente; mas, também, de ampliar o
espectro social do seu próprio eleitorado.
No entanto, alguns analistas
políticos já citam essa avalanche de CPIs como um instrumento de
recrudescimento das tensões político-ideológicas no país, que tende só a
aprofundar ainda mais as mazelas sociais históricas; mas, cuja inação reverbera
narrativamente como incapacidade de governança da atual gestão. O que, segundo
Noam Chomsky, acontece porque “A forma
inteligente de manter as pessoas passivas e obedientes é limitar estritamente o
espectro da opinião aceitável, mas permitir um debate intenso dentro daquele
espectro” 8.
As CPIs criam uma realidade
paralela que distrai a população e as mídias, enquanto o mundo real patina sem
sair do lugar. Para grande parte da população brasileira, as imagens captadas ali
naquelas sessões transmitem a pseudoideia de “gente importante trabalhando pelo país”, quando não é bem assim,
que a banda toca. No entanto, essa percepção acaba criando um torpor social que
desobriga o cidadão de exercer a sua cidadania e cobrar dos seus representantes
a satisfação daquilo que lhe é realmente importante. Por isso é que o Brasil
não pode se deixar enredar pela naturalização e banalização desse tipo de estratégia.
1 https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/05/17/camara-instala-3-cpis-cpi-dos-atos-golpistas-fica-esquecida.ghtml
2 https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/05/11/em-100-dias-congresso-ainda-nao-votou-os-grandes-projetos-do-governo-criou-4-cpis-e-mantem-clima-de-polarizacao.ghtml
3 https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2022/09/08/brasil-ranking-onu-desenvolvimento-humano-queda.htm
4 https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2023/03/em-ranking-do-crescimento-do-pib-com-47-paises-em-2022-brasil-ocupa-a-28a-posicao.ghtml
5 https://valorinveste.globo.com/mercados/brasil-e-politica/noticia/2023/05/11/desigualdade-no-brasil-em-2022-caiu-ao-menor-nivel-em-10-anos.ghtml
6 https://www.gov.br/inep/pt-br/assuntos/noticias/acoes-internacionais/pisa-2018-revela-baixo-desempenho-escolar-em-leitura-matematica-e-ciencias-no-brasil#:~:text=Se%20comparado%20%C3%A0%20m%C3%A9dia%20dos,no%20ranking%3A%2055%C2%BA%20e%2059%C2%BA
7 https://g1.globo.com/educacao/noticia/2023/05/16/criancas-do-brasil-tem-habilidades-de-leitura-inferiores-as-do-azerbaijao-e-do-uzbequistao-mostra-teste-internacional.ghtml
8 CHOMSKY, N. The Common Good. Berkeley: Odonian Press, 1998.