quinta-feira, 18 de maio de 2023

Muita trovoada sem uma gota de chuva!


Muita trovoada sem uma gota de chuva!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Aberta a pirotecnia legislativa das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs)1 e o cidadão vai percebendo o desvirtuamento imposto pelos nobres deputados e senadores da República em relação ao previsto constitucionalmente como exercício da sua função 2. Em linhas gerais, seu papel significa elaborar leis, proceder à fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das demais entidades da administração pública direta e indireta.

E só para não dizer que há alguma intransigência na minha percepção, esclareço que, de fato, as CPIs têm na sua essência um caráter fiscalizador. Acontece que toda a sua amplidão de poderes investigativos, como já visto inúmeras vezes na história nacional, no fim das contas não se traduz na autoridade para proferir sentença, nem julgar e nem punir quem quer que seja. Afinal de contas, proferir sentença, julgar e punir são atribuições do Poder Judiciário. Portanto, muita trovoada sem uma gota de chuva!

Vale ressaltar que, na contramão dos últimos anos, quando alguns indivíduos e segmentos do judiciário nacional, lamentavelmente, deixaram a desejar no cumprimento do seu papel constitucional, no Brasil, de 2023, é visível a retomada, no campo Judiciário, do protagonismo e efetividade de suas instituições. Portanto, o que fere e se desalinha com os princípios do Estado de Direito, da Democracia e da constitucionalidade, já se encontra sob criterioso escrutínio das devidas instâncias da Justiça, correndo dentro dos parâmetros legais vigentes e publicizando, pelo princípio da transparência da administração pública, os resultados obtidos.  

Então, se não é para resolver, por que motivo abrir uma CPI? Bem, 500 anos história me parecem suficientes para já termos identificado a vaidade política como um traço marcante dos representantes nacionais. Assim, uma CPI é um palco iluminado para as narrativas e discursos inflamados, para uma visibilidade além do tempo regulamentar das propagandas partidárias, para construção de recortes ideológicos a fim de nutrir as mídias sociais e empolgar os simpatizantes.

Sem contar que tudo isso acontece abstendo-se de tirar um vintém sequer dos recursos previstos para o seu trabalho parlamentar, ou seja, do orçamento já fixado para os membros do legislativo. Haja vista a colaboração dos veículos de comunicação e de informação, os quais voltam suas lentes e microfones para a cobertura dos trabalhos, propiciando tempo extra de televisão e publicidade aos participantes, por meio de entrevistas e coletivas, que não geram quaisquer ônus aos cofres públicos. Todo o resto, em termos logísticos, acaba saindo do dinheiro público; mas, em razão da diluição da sua aplicação no processo, passa despercebido aos olhos do contribuinte brasileiro.

Lamento que a classe política nacional veja sentido, portanto, nesse tipo de atuação. Fabricar relatórios e mais relatórios, muitos deles que não dizem nada para coisa nenhuma, somente para lustrar o ego da sua importância no cenário legislativo, constrange o país! Ora, o que não falta por aqui são leis aguardando empoeiradas, dentro de gavetas, por regulamentações importantes, ou assuntos cotidianos demandando discussões técnicas e científicas para serem contemplados por legislações inovadoras, ou questões que alicerçam o desenvolvimento e o progresso nacional e precisam ser trazidas ao diálogo cidadão entre legisladores e população, ... enfim.

Justamente porque a nova formação do Congresso Nacional, a partir de 1º de janeiro de 2023, se alinha à condição de oposição ao governo, é que se faz tão necessária uma legislatura atuante, no sentido de trabalhar em favor do país, ao invés de demandar tempo com questões que já estão sendo tratadas pelas autoridades competentes. Infelizmente, parece haver um ranço histórico na classe política brasileira que a fez recorrentemente cometer o equívoco de confundir política com politicagem.

Pois é, esse tipo de engano só faz reforçar situações que levam os representantes do povo a caírem, por exemplo, na tentação das seduções do fisiologismo político-partidário, esquecendo-se dos seus compromissos éticos e morais com o país e seus séquitos de eleitores e simpatizantes. Quando tudo vira politicagem o país perde, a população perde, a democracia perde, a cidadania, o desenvolvimento e o progresso perdem. Basta ver, por exemplo, qual a classificação do Brasil no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)3, do Produto Interno Bruto (PIB) 4, do índice de Gini 5, do PISA 6 , do Pirls 7.

É sobre isso que o Congresso Nacional deveria se debruçar. Sobre os interesses de quem representam, ou seja, o povo. Chega a ser constrangedor pedir aos nobres legisladores que experimentem substituir o viés da politicagem pela política, quando isso deveria ser regra e não exceção. No entanto, tendo em vista o histórico político nacional, a ideia até que faz sentido! Seria não só uma ótima oportunidade para que eles se deparassem com a surpresa de uma visibilidade e popularidade muito mais expressiva e consistente; mas, também, de ampliar o espectro social do seu próprio eleitorado.

No entanto, alguns analistas políticos já citam essa avalanche de CPIs como um instrumento de recrudescimento das tensões político-ideológicas no país, que tende só a aprofundar ainda mais as mazelas sociais históricas; mas, cuja inação reverbera narrativamente como incapacidade de governança da atual gestão. O que, segundo Noam Chomsky, acontece porque “A forma inteligente de manter as pessoas passivas e obedientes é limitar estritamente o espectro da opinião aceitável, mas permitir um debate intenso dentro daquele espectro” 8.

As CPIs criam uma realidade paralela que distrai a população e as mídias, enquanto o mundo real patina sem sair do lugar. Para grande parte da população brasileira, as imagens captadas ali naquelas sessões transmitem a pseudoideia de “gente importante trabalhando pelo país”, quando não é bem assim, que a banda toca. No entanto, essa percepção acaba criando um torpor social que desobriga o cidadão de exercer a sua cidadania e cobrar dos seus representantes a satisfação daquilo que lhe é realmente importante. Por isso é que o Brasil não pode se deixar enredar pela naturalização e banalização desse tipo de estratégia.  



8 CHOMSKY, N. The Common Good. Berkeley: Odonian Press, 1998.