Dentro
e fora dos muros...
Por
Alessandra Leles Rocha
Segundo Bertolt Brecht, “Do rio que tudo arrasta se diz que é
violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. É com base
nessa sábia constatação que pretendo traçar as reflexões a seguir. Me incomoda
a existência de um vitimismo social contemporâneo que se abstém flagrantemente
de admitir a sua imensa parcela de responsabilidade na construção dos seus
próprios monstros. Afinal, nenhuma história pode ser contada apenas por uma
perspectiva que desconsidera o outro.
É público e notório o desejo
humano de se manter nas suas zonas de conforto; mas, para isso deveria entender
em profundidade as exigências que demandam para tal, para que não haja desequilíbrio.
O modo como se lida com as questões importantes da vida e do mundo diz muito
sobre a compreensão que se tem delas.
Assim, ao optar por não ver, não
discutir, não pensar, não fazer, se estabelece uma estratégia de risco, pois
nunca se pode dimensionar com exatidão quais serão as consequências, os desdobramentos,
as reverberações, e nem por quanto tempo irão perdurar.
E uma dessas questões é a
violência. Marcada por diferentes recortes de desigualdade é, de fato,
inevitável que uma significativa parcela da sociedade se permita expressar
aqui, ali ou acolá toda a sua fúria, a sua cólera, a sua raiva, a sua gana, o
seu ódio, como mecanismo básico de afirmação social para trazer à luz da
sociedade a sua perspectiva da história.
O que torna, então, compreensível,
considerando-se que o discurso padrão, por aí, é de que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com
espírito de fraternidade” (Declaração Universal dos Direitos Humanos,
1950). Acontece que na prática, a teoria é bem outra.
Infelizmente, os direitos estão,
de certa forma, condicionados ao poder de grupos privilegiados, o que significa
que são pensados e definidos pela perspectiva destes. De modo que isso explica
a existência de tantas negligências, de tantas invisibilizações, de tantas
arbitrariedades, de tantas violências, atravessando os caminhos das camadas
inferiores do estrato social.
Diante desse panorama é
inevitável que qualquer indivíduo ao sentir o peso dessa opressão, dessa
indignidade, desse abandono, desse sofrimento, ano após ano da sua existência, queira
trazer à tona a sua voz, a sua manifestação, ainda que, pelas vias mais
instintivas da emoção e do sentimento.
Só que ao agir assim, eles acabam
por legitimar uma pseudocondição de ameaça social que lhes é imputada pelos
privilegiados. Sim, porque o status social se estabeleceu historicamente como
um indicador de tensão na sociedade. As infrações, os delitos, são quase sempre
imputados às parcelas menos favorecidas. Restando-lhes, então, o direito de
obedecer e de se calar para não serem ainda mais vigiados e punidos.
É assim que ao menor descuido no
cumprimento das leis, dos protocolos, das etiquetas, no caso brasileiro, por
exemplo, eles são levados ao centro de um sistema que, ao contrário de suprimir
temporariamente a sua liberdade em razão do seu delito, faz do encarceramento
um objeto maior de punição, dadas as reais condições da maioria dos presídios.
Superlotação. Insalubridade. Epidemias. Má alimentação. Lentidão nas análises
processuais. ...
O que aponta para o fato de que o
alicerce de abandonos e desigualdades existentes fora dos muros da prisão se
aprofunda dentro dela, propiciando emergir uma nova ordem social naquele
espaço. Apesar de entregues, de algum modo, à própria sorte nesse universo
paralelo, na sua solidão coletiva eles descobrem a força da sua voz e se tornam
empoderados para estabelecer ali às suas próprias leis e ritos.
Se do lado de fora, o
desinteresse político-partidário, institucional e social por eles é cada vez
mais pujante, do lado de dentro, são eles quem ditam as regras do jogo. Foi
essa a dinâmica que veio, ao longo do tempo, os organizando, os fortalecendo,
ou seja, o cenário de privações e de inacessibilidades sociais estabelecido
pelas camadas privilegiadas, em algum momento, retorna para ela em episódios
cada vez mais violentos 1.
Um ciclo vicioso? Sim. E com
tendência a piorar cada vez mais, na medida em que o coletivo social não se
permite sequer pensar sobre o assunto e tenta responder aos momentos de crise
com a exacerbação das práxis punitivistas. Punir. Punir com máximo rigor. Que é
justamente a resposta esperada pelas parcelas privilegiadas da sociedade.
Desconsiderando por completo a
obviedade demonstrada pelos próprios números da superlotação carcerária
brasileira. Ora, se esse modus operandi
fosse realmente efetivo, eficaz, o país seria um mar de calmaria e
tranquilidade. Apesar de todos os pesares em relação ao modelo vigente de
encarceramento, a prisão não intimida à ocorrência e a reincidência da
violência e do crime na sociedade.
Todos os dias chegam mais e mais
pessoas aos presídios e penitenciárias nacionais. Aguardando julgamento. Já
sentenciados. Homicidas. Tráfico de drogas. Sequestro. ... O motivo pouco importa.
Estão lá, lançados às arenas de um universo paralelo que imita distorcidamente
à realidade exterior, ao mesmo tempo que expande a significância de se tentar
fazer da violência o remédio para a violência, e da punição uma palavra de
ordem.
No fundo, o ódio que você semeia
destrói a sociedade inteira 2, porque
ele não fica encapsulado em um espaço qualquer. Emoções, sentimentos, não são
objeto de controle, de punição. Então, a prisão não é suficiente para
descontruir a consciência coletiva, que reside nas camadas desprivilegiadas,
sobre o desinteresse, o abandono, a indiferença, a desigualdade que marca
maciçamente as suas vidas.
Desse modo, não sabendo e não
querendo lidar com as demandas das parcelas excluídas e desafortunadas, o
sistema prisional se torna um instrumento espacial de segregação. Sob
diferentes argumentos e justificativas, ali é possível manter não só por tempo
indeterminado; mas, distante dos olhos e de qualquer disposição em se fazer
políticas públicas, contingentes populacionais considerados inoportunos e
indesejáveis pelo topo da pirâmide social.
O discurso de se fazer justiça
acaba, então, omitindo um conjunto de injustiças que desembocam em resultados,
tantas vezes, questionáveis, sem que ninguém perceba (ou queira perceber) que
estamos andando atônitos em torno de uma crescente espiral de violência e
barbárie no país. A qual indica claramente que vai arrastar, ainda, muitos mais
para as trilhas do poder paralelo dos justiceiros encarcerados.
Afinal, enquanto a lógica se
manter colocando pessoas na condição de ameaça às leis e à ordem social e se
esquecendo de colocar os problemas em si como prioridade, haverá sérios
conflitos. Porque os problemas não se permitem ser contidos para caber dentro
dos muros da prisão. Daí a necessidade de parar, pensar e refletir a respeito
dessa situação.