terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Pobres meninos ricos!




Pobres meninos ricos!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Há um provérbio que diz, “Cada cabeça uma sentença”. No entanto, isso só vale até a página dois da vida. Afinal, a liberdade de escolha, de decisão, não é ilimitada! Há certos princípios que não podem ser excluídos ou negociados nessa balança, tais como, questões éticas, morais, humanitárias, cujo peso se amplia em razão da notoriedade, da fama, que certas pessoas possuem. A visibilidade desses indivíduos os torna involuntariamente formadores de opinião; sobretudo, quando se têm um conjunto de ferramentas tecnológicas para amplificar e disseminar suas ideias.

Dito isso, considero que causou certa indigestão a notícia de que jogadores e um ex-jogador da seleção brasileira masculina de futebol haviam degustado bife folheado a ouro, em um renomado restaurante do Catar. O fato de eles poderem pagar por esse luxo não torna a situação mais palatável. A maioria das pessoas se esquece de que a linguagem não verbal é, muitas vezes, mais ferina e contundente do que a linguagem verbal. Ainda que à paisana, sem ostentar os uniformes da seleção que representa o país, cada um deles continua brasileiro e, por isso, deveriam ser mais cautelosos nos seus arroubos de grandeza.

O Brasil que eles representam retornou nos últimos anos ao chamado Mapa da Fome, uma ferramenta criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) para medir o grau de acesso adequado aos alimentos; portanto, para mensurar o nível de segurança alimentar de cada país. São mais de 33 milhões de cidadãos brasileiros que não têm o que comer.  58,7% da população nacional convive com a insegurança alimentar em grau leve, moderado ou grave. E apesar de o desemprego ter recuado estatisticamente no país, no terceiro trimestre deste ano, a precarização das atividades laborais, a informalidade e o achatamento da renda do trabalhador permanecem constituindo um obstáculo concreto para o acesso à dignidade humana dos cidadãos.

De modo que o episódio ocorrido, por si só, foi lastimável; mas, conseguiu se superar nos requintes de crueldade, quando ultrapassou a fronteira do simbólico, da linguagem não verbal, para a concretude, da linguagem verbal. Na tentativa de justificar ou contemporizar, houve dentre os participantes do jantar quem afirmasse “ser inspirador” 1. Bem, quaisquer jogadores (as) de futebol, oriundos de países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, sabem exatamente o quão estreito é o funil das oportunidades sociais.

Nem todos os talentos emergidos nos campos de várzea dos rincões mais desassistidos do planeta conseguirão furar as bolhas do sucesso e despontar para uma vida de realizações e conquistas materiais. Segundo matéria jornalística recente, “Em 2021, mais da metade dos jogadores de futebol do país recebia cerca de um salário mínimo” 2. Isso sem contar com o abandono de pseudoempresários que prometem mundos e fundos aos pequenos diamantes brutos da bola e depois os deixam à beira do caminho. Mesmo assim, a carreira no futebol permanece embalando os sonhos de milhares de meninos e meninas, como o atalho mais curto e promissor para uma vida de menos privação e sofrimento social.

Isso significa que não é a ostentação de um prato que custa em torno de R$9 mil, o que irá inspirar esses meninos e meninas. O que os move obstinadamente pelos caminhos incertos do futebol é a esperança em conhecer a dignidade humana. Ter acesso a bens, produtos e serviços que garantam a sua sobrevivência e de sua família. Desse modo, até que a vida lhes acene com essa realização, qualquer mínima opulência será de pleno mau gosto. Porque é como se as desigualdades reafirmassem seus abismos. Como se baldes de água gelada fossem jogados sobre sonhos contínua e desesperadamente remendados.

Geralmente as pessoas cometem grandes extravagâncias não para satisfação pessoal, mas para provar aos outros o seu poder, a sua pseudossuperioridade. O que elas, na maioria das vezes, não percebem é que estão revelando a sua própria mercantilização. Nessas situações, elas se tornam o espelho do produto que se permitiram tornar e, por esse motivo, dispor de volumosa riqueza material. Mas, o que isso muda o curso da história? Segundo o Banco Mundial, “O avanço global na redução da pobreza extrema está estagnado. Até 2030, cerca de 600 milhões de pessoas enfrentarão dificuldades para viver com menos de US$2,15 por dia” 3.

Isso significa que é preciso, então, ter sempre em mente que a roda da vida gira. Às vezes, por cima. Outras, por baixo. Quem vai saber? Tudo é incerteza pura! O imponderável está sempre à espreita! Quantas crises econômicas globais já deixaram grandes fortunas na miséria? O dinheiro vem e vai. Seres humanos não. Aliás, isso sempre me faz refletir sobre as seguintes palavras, “Quem trabalha e mata a fome, não come o pão de ninguém, mas quem ganha mais do que come, sempre come o pão de alguém” (personagem Tião Galinha, Renascer,1993 4).

Basta ver a distribuição da renda no mundo! Para que uma ínfima minoria desfrute das regalias e dos privilégios da concentração do capital, é necessário que uma imensa maioria seja submetida a todo tipo de exploração do seu trabalho e à uma injusta carga tributária. O pior é perceber que ninguém questiona esse sistema, ninguém se constrange diante dele. Como se a aberração que representa a desigualdade no mundo parecesse trivializada.

Essa breve reflexão nos dá, portanto, a dimensão exata da existência em uma sociedade de consumo. Perdem-se os valores. Perdem-se os princípios. Perde-se a humanidade, a empatia, a alteridade. Tornamo-nos produtos. Adquirimos produtos. Desumanizamos a essência, a partir da naturalização da automatização do cotidiano de aquisições. Deixamos de ser, para ter. Assim, antes de se permitir cair em quaisquer das tentações consumistas, pare e pense a fim de que “Descubra do que você tem fome. É um desperdício imperdoável passar a vida empanzinado daquilo que não nos sacia” (Sarah Westphal).