quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Democraticamente vulneráveis...


Democraticamente vulneráveis...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Até certo ponto, é possível compreender porque muitas pessoas associam o termo vulnerabilidade às parcelas sociais menos favorecidas. A inacessibilidade aos direitos sociais presente nesse contexto favorece essa visão. No entanto, quero chamar atenção para o fato de que a vulnerabilidade, no âmbito do mundo contemporâneo, vai muito mais além, de modo que tende a afetar a pirâmide social de uma maneira muito mais ampla.

Temos visto presencialmente, ou pelos veículos de informação e comunicação, a quantidade de ocorrências ligadas aos eventos extremos do clima; sobretudo, incêndios, enchentes e deslizamentos. Não é preciso ser especialista na área ambiental para perceber como o clima, no Brasil e no mundo, vem sofrendo mudanças radicais e trazido morte e destruição em áreas urbanas e rurais, como jamais esperado.

Certamente que, nesses casos, as populações economicamente desfavorecidas serão as mais afetadas, em razão de viverem em áreas desassistidas de políticas públicas, ou seja, encostas de morros, espaços aterrados com entulho, beira de cursos d’água, onde a ausência de planejamento e de infraestrutura ampliam demasiadamente os riscos habitacionais.

Mas, como muitos devem se lembrar, em fevereiro deste ano, a cidade de Petrópolis, Rio de Janeiro, foi exposta a seis horas de chuva, traduzidas em 260mm, muito acima da média climatológica padrão para o mês, que é de 232mm. Em suma, a cidade ficou praticamente submersa e computou 241 vítimas fatais, sem contar o número de desabrigados e atingidos direta e indiretamente pela situação. Isso significa que a vulnerabilidade afetou camadas distintas da população, não apenas os mais pobres.

Mais recentemente, ruas e rodovias foram engolidas pelas chuvas de fim de ano, colocando sob interdição diversos trechos país afora. O recente relatório “Crianças, adolescentes e mudanças climáticas no Brasil”, divulgado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), alerta que a “taxa de afetados por desastres ambientais é de 184,3 a cada 100 mil habitantes na PB” 1, o que nos leva a pensar qual seria a estatística de tantas outras cidades atingidas também.  

O pior é que esses desastres não são um privilégio só nosso! Os incêndios florestais na Europa e nos EUA, nas temporadas de calor, por exemplo, têm arrasado cidades inteiras e destruído, inclusive, casas de milionários em condôminos de luxo. A temporada de tornados norte-americana, a qual sempre ocorre no verão do hemisfério norte, dessa vez driblou o monitoramento da Agência Oceânica e Atmosférica Americana (NOAA) e o Serviço Meteorológico Nacional, em pleno outono, quando o sul dos EUA foi atingido por tempestades e ventos acima de 300km/h 2. Agora, as grandes nevascas no hemisfério norte podem levar à morte milhares de seres humanos que não têm como garantir medidas de proteção e aquecimento em suas casas 3, seja pela inflação corroendo a renda das famílias, seja pela Guerra na Ucrânia obstaculizando o fornecimento de gás e combustível para diversos países, ou por tantos outros entraves presentes na realidade contemporânea.

São situações assim, que fazem imperar uma necessidade urgente de discussão e de criação de políticas públicas voltadas para a mitigação de riscos relacionados aos eventos extremos do clima. Infelizmente, chegou-se a um ponto em que os protocolos de análise dos eventos climáticos, em cada região, estão sendo sumariamente alterados à revelia de qualquer aviso prévio. A infraestrutura disponível é insuficiente e ineficiente, como tem provado amiúde, para o enfrentamento adequado das atuais conjunturas climáticas.

Lamento para quem se considera a última bolacha do pacote, um ser superior, eterno e inatingível, a partir de agora, está batido o martelo, somos todos vulneráveis! Qualquer cidadão está, portanto, prestes a perder seus bens materiais e a própria vida se esse assunto não se tornar rapidamente uma prioridade de todas as esferas governamentais. Não, não é força de expressão, nem alarmismo! Quando os céus escurecem sobre as cidades, os ventos se enchem de fúria, o insólito adentra triunfante e glorioso, podendo se esperar qualquer consequência mais radical e extrema das suas ações.

Ah, e não pense que resistir a um episódio desses é garantia de alguma coisa, porque não é! Geralmente, os fenômenos extremos do clima afetam as estações de abastecimento e tratamento de água e esgoto. De modo que áreas inteiras padecem por dias a insalubridade e o risco do aparecimento de doenças e, possivelmente, epidemias. Essa água e esgoto tendem a favorecer o risco de diarreias, por conta da presença de bactérias, vírus, parasitas; mas, também, da febre tifóide (Salmonella typhi), da lepstospirose (Leptospira interrogans), do Tétano (Clostridium tetani), das hepatites A e E, e da cólera (Vibrio cholerae). E se negligenciadas ou malcuidadas podem sim, gerar desdobramentos graves e até fatais.

Portanto, o olhar de desprezo e indiferença que muitos se permitem lançar, de maneira cruel e perversa, sobre milhares de pessoas em condição de vulnerabilidade, gerada pela inacessibilidade aos direitos sociais básicos, é só uma tentativa bizarra de não olhar para o próprio espelho. Afinal, narciso pode ser belo; mas, vulnerável, ele é por excelência! O tempo perdido em arvorar-se de pseudopoderes, pseudossuperioridades, pseudonarcisismos, está comprometendo diretamente a sobrevivência humana. Lembre-se de que um ser vulnerável, e todos nós somos, só tem uma escolha de vida: é agora ou nunca!