sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Sobre rupturas, reflexões e remendos...


Sobre rupturas, reflexões e remendos...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Me parece um tanto quanto limitada a ideia de que a política partidária, por si só, tenha sido a causa de grandes rupturas dentro das relações sociais; sobretudo, as mais próximas, como família e amigos. Observando atentamente a dinâmica da vida contemporânea percebo, com imensa clareza, que a verdade gira em torno de que qualquer pretexto se tornou pretexto para a cisão social.

De certo modo, esse movimento se explica pelo fato de que a contemporaneidade, em seu discurso de total liberdade em ser, em agir, em fazer, comprometeu a capacidade humana em lidar com o contraditório, com as frustrações, com as contrariedades naturais da coexistência. O individualismo, então, se exacerba na consolidação de pseudobolhas que visam garantir uma estabilidade e uma zona de conforto, na qual se compartilha das mesmas opiniões, dos mesmos pontos de vista, das mesmas ideologias.

Há, portanto, uma tentativa de minimização de conflitos e de desgastes relacionais. Isso quer dizer que determinadas questões são individualmente elencadas para exercer essa filtragem das relações sociais e estabelecer quem pode, e quem não pode, fazer parte dessa pseudobolha. E é aí que entra o protagonismo, que tem se destacado, de certas pautas defendidas principalmente pelos simpatizantes da ultradireita. Tratam-se de questões que extrapolam as fronteiras do comportamento para interferir em direitos e, por isso, têm uma capacidade tão forte de manipulação, vigilância e controle social pelas pseudobolhas.

Discussões em torno dos direitos sexuais e reprodutivos, da consolidação dos direitos LGBTQIA+, do feminismo e da igualdade racial, por exemplo, tem produzido tantas rupturas dentro das relações sociais quanto as discussões político-partidárias em si. Afinal elas são potencialmente inflamáveis e resultam rapidamente no objetivo de seletivização que o individualismo contemporâneo almeja.

Isso tem a ver com o poder individual de definir o que lhe é ou não conveniente, ou aceitável; de modo que, os indivíduos se colocam em uma posição de importância decisória muito atraente. Afinal, eles se percebem na posição de criar as regras e exercer um tipo de poder sobre quem virá a fazer parte da sua bolha.  O filme Meninas Malvadas (Mean Girls), de 2004, é um bom exemplo desse movimento contemporâneo e mostra como ele está presente na sociedade nos mais diferentes espaços e idades.

Por mais estranho que possa parecer, é uma acirrada necessidade de pertencimento o que acaba levando milhares de pessoas a romper entre si. A ideia de pertencer não é mais suficiente em si mesma. O pertencer precisa satisfazer, ou seja, caber dentro de certos parâmetros, de certos limites, a fim de que não se corra quaisquer riscos de frustração, de desapontamento, de desilusão. Essas pessoas, portanto, querem pertencer a um mundo idealizado, não necessariamente ao mundo real. O que explica tudo isso não representar um obstáculo para romper relações tão profundas e importantes, como família e amigos.

O que muitos não percebem nesse processo é que ao isolarem-se nas suas pseudobolhas idealizadas, eles empobrecem; bem como, o mundo empobrece intelectualmente. A vida passa a ser vista por uma única fresta, sem direito de expansão. Há uma homogeneização do pensamento, porque não há debate, não há discussão, não há divergência. Crenças, valores, princípios, tudo está nivelado a uma mesma perspectiva. E aí se perde a capacidade dialógica, na medida em que falar, trocar, compartilhar, se torna desnecessário, se torna inútil.

De repente se percebe que esse pode ter sido, então, o gatilho para que as correntes negacionistas se disseminassem por aí. Afinal, todas as negações se sustentam pela resistência ao contraditório, à oposição de ideias e argumentos. O confronto às pseudobolhas significa desafiar o seu controle, o seu poder. Significa a liberdade de pensamento, de análise, de criticidade ao olhar e ler o mundo. E essas são questões que fragilizam e desestabilizam a liberdade vendida e aclamada pela contemporaneidade criam, no fim das contas, a negação da própria identidade humana.

E como escreveu o cineasta português Manoel de Oliveira, “Sem identidade não se é. E a gente tem que ser, isso é que é importante. Mas a identidade obriga depois à dignidade. Sem identidade não há dignidade, sem dignidade não há identidade, sem estas duas não há liberdade. A liberdade impõe, logo de começo, o respeito pelo próximo. Isto pode explicar um pouco os limites da própria vida”.

Particularmente, entendo que essas palavras explicam o que temos visto ultimamente. Rupturas advindas do esgarçamento identitário, da demasiada tendenciosidade dos limites humanos e sociais. De modo que as justificativas dadas a esse fenômeno não passam de pretextos vazios, inconsistentes. Lamento, mas não é a política partidária, ou o racismo, ou a misoginia, que nos têm afastado. Na verdade, é a incapacidade de prosseguir moldando a identidade que melhor nos represente.

Segundo o escritor moçambicano Mia Couto, “Todos nós convivemos com diversos eus, diversas pessoas reclamando a nossa identidade. O segredo é permitir que as escolhas que a vida nos impõe não nos obriguem a matar a nossa diversidade interior. O melhor nesta vida é poder escolher, o mais triste é ter mesmo que escolher” (E se Obama fosse africano?). Assim, ao invés de sair, por aí, promovendo rupturas dolorosas e profundas, permita-se refletir a esse respeito.