Sobre
rupturas, reflexões e remendos...
Por
Alessandra Leles Rocha
Me parece um tanto quanto
limitada a ideia de que a política partidária, por si só, tenha sido a causa de
grandes rupturas dentro das relações sociais; sobretudo, as mais próximas, como
família e amigos. Observando atentamente a dinâmica da vida contemporânea percebo,
com imensa clareza, que a verdade gira em torno de que qualquer pretexto se
tornou pretexto para a cisão social.
De certo modo, esse movimento se
explica pelo fato de que a contemporaneidade, em seu discurso de total
liberdade em ser, em agir, em fazer, comprometeu a capacidade humana em lidar
com o contraditório, com as frustrações, com as contrariedades naturais da coexistência.
O individualismo, então, se exacerba na consolidação de pseudobolhas que visam
garantir uma estabilidade e uma zona de conforto, na qual se compartilha das
mesmas opiniões, dos mesmos pontos de vista, das mesmas ideologias.
Há, portanto, uma tentativa de minimização
de conflitos e de desgastes relacionais. Isso quer dizer que determinadas
questões são individualmente elencadas para exercer essa filtragem das relações
sociais e estabelecer quem pode, e quem não pode, fazer parte dessa
pseudobolha. E é aí que entra o protagonismo, que tem se destacado, de certas
pautas defendidas principalmente pelos simpatizantes da ultradireita. Tratam-se
de questões que extrapolam as fronteiras do comportamento para interferir em
direitos e, por isso, têm uma capacidade tão forte de manipulação, vigilância e
controle social pelas pseudobolhas.
Discussões em torno dos direitos
sexuais e reprodutivos, da consolidação dos direitos LGBTQIA+, do feminismo e da
igualdade racial, por exemplo, tem produzido tantas rupturas dentro das
relações sociais quanto as discussões político-partidárias em si. Afinal elas
são potencialmente inflamáveis e resultam rapidamente no objetivo de
seletivização que o individualismo contemporâneo almeja.
Isso tem a ver com o poder
individual de definir o que lhe é ou não conveniente, ou aceitável; de modo
que, os indivíduos se colocam em uma posição de importância decisória muito atraente.
Afinal, eles se percebem na posição de criar as regras e exercer um tipo de
poder sobre quem virá a fazer parte da sua bolha. O filme Meninas
Malvadas (Mean Girls), de 2004, é um bom exemplo desse movimento contemporâneo
e mostra como ele está presente na sociedade nos mais diferentes espaços e
idades.
Por mais estranho que possa
parecer, é uma acirrada necessidade de pertencimento o que acaba levando
milhares de pessoas a romper entre si. A ideia de pertencer não é mais
suficiente em si mesma. O pertencer precisa satisfazer, ou seja, caber dentro
de certos parâmetros, de certos limites, a fim de que não se corra quaisquer
riscos de frustração, de desapontamento, de desilusão. Essas pessoas, portanto,
querem pertencer a um mundo idealizado, não necessariamente ao mundo real. O que
explica tudo isso não representar um obstáculo para romper relações tão
profundas e importantes, como família e amigos.
O que muitos não percebem nesse
processo é que ao isolarem-se nas suas pseudobolhas idealizadas, eles
empobrecem; bem como, o mundo empobrece intelectualmente. A vida passa a ser
vista por uma única fresta, sem direito de expansão. Há uma homogeneização do
pensamento, porque não há debate, não há discussão, não há divergência. Crenças,
valores, princípios, tudo está nivelado a uma mesma perspectiva. E aí se perde
a capacidade dialógica, na medida em que falar, trocar, compartilhar, se torna
desnecessário, se torna inútil.
De repente se percebe que esse
pode ter sido, então, o gatilho para que as correntes negacionistas se
disseminassem por aí. Afinal, todas as negações se sustentam pela resistência
ao contraditório, à oposição de ideias e argumentos. O confronto às pseudobolhas
significa desafiar o seu controle, o seu poder. Significa a liberdade de pensamento,
de análise, de criticidade ao olhar e ler o mundo. E essas são questões que
fragilizam e desestabilizam a liberdade vendida e aclamada pela
contemporaneidade criam, no fim das contas, a negação da própria identidade humana.
E como escreveu o cineasta português
Manoel de Oliveira, “Sem identidade não
se é. E a gente tem que ser, isso é que é importante. Mas a identidade obriga
depois à dignidade. Sem identidade não há dignidade, sem dignidade não há
identidade, sem estas duas não há liberdade. A liberdade impõe, logo de começo,
o respeito pelo próximo. Isto pode explicar um pouco os limites da própria vida”.
Particularmente, entendo que
essas palavras explicam o que temos visto ultimamente. Rupturas advindas do
esgarçamento identitário, da demasiada tendenciosidade dos limites humanos e
sociais. De modo que as justificativas dadas a esse fenômeno não passam de
pretextos vazios, inconsistentes. Lamento, mas não é a política partidária, ou
o racismo, ou a misoginia, que nos têm afastado. Na verdade, é a incapacidade
de prosseguir moldando a identidade que melhor nos represente.
Segundo o escritor moçambicano Mia Couto, “Todos nós convivemos com diversos eus, diversas pessoas reclamando a nossa identidade. O segredo é permitir que as escolhas que a vida nos impõe não nos obriguem a matar a nossa diversidade interior. O melhor nesta vida é poder escolher, o mais triste é ter mesmo que escolher” (E se Obama fosse africano?). Assim, ao invés de sair, por aí, promovendo rupturas dolorosas e profundas, permita-se refletir a esse respeito.