quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Os pequenos reféns da beligerância contemporânea


Os pequenos reféns da beligerância contemporânea

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Muito bonito o discurso de que as crianças são o futuro do país. Pena que na prática as atitudes e comportamentos sejam totalmente antagônicos às palavras. De modo que as crianças estejam sendo cada vez menos crianças, na plenitude de seus direitos, os quais foram consagrados tanto pela Declaração Universal do Direitos da Criança (1959)1 quanto pela Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) 2. E aqui, no Brasil, reforçados pela Lei n. º 8.069, de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) 3.

Acontece que um movimento de adultização, o qual vem se impondo nas últimas décadas, tem obstaculizado o desenvolvimento pleno dessa parcela populacional, inclusive, por meio de discursos e narrativas que não cabem à capacidade infantil de discernir e opinar a respeito. Vejamos, por exemplo, que todo indivíduo ao nascer é um cidadão por excelência; mas, não cabe a uma criança a integralidade do seu exercício cidadão. Não há razões para isso!

Entretanto, esse absurdo confronto político-partidário que se disseminou pelo país afora, tem arrastado de maneira leviana e irresponsável, milhares de crianças e adolescentes para essa seara, fomentando os atritos, as divergências, as segregações e, até mesmo, as expressões mais contundentes de violência física, psíquica e emocional.

Haja vista os diversos relatos apresentados, nos últimos dias, a respeito dos atos antidemocráticos em que bebês e crianças foram levadas para os bloqueios realizados nas rodovias nacionais 4. No entanto, essa prática não é a única. O radicalismo político-partidário que vem se expressando cada vez mais intenso, como acontece entre torcidas tradicionais no futebol, tem chegado aos mais diversos espaços sociais, incluindo a escola.

Crianças, desde as fases escolares iniciais, têm sido submetidas à arguição dos coleguinhas para saber em quem os pais votaram na eleição. Mediante a resposta, elas vão se aglutinando em grupos definidos por esse tipo de afinidade. Muitas se sentem acuadas, constrangidas, confusas, sem saber o que responder; pois não atendem as razões desses questionamentos, pelo simples fato de que não estão preparadas psicologicamente para situações dessa natureza.

Além de cruel, de perverso, trata-se de algo que chama atenção por não ser um comportamento fomentado por uma questão própria da infância que, no caso, é a política, o pleito eleitoral. E que pode vir, dependendo da gravidade da situação, reverberar em um sentimento de aversão à escola, na medida em que a criança passa a associar o ambiente de ensino-aprendizagem a um momento de tensão, de cobrança, de total desconforto psicológico e emocional.

E tudo isso acontecendo, logo depois de uma pandemia! Uma experiência que, para muitos especialistas e estudiosos sobre a infância e a educação, trouxe marcas geracionais profundas. A expressão da infância foi comprometida pelo isolamento, pelo distanciamento e por um sentimento de medo, de perda, de saudade, de tristeza, muito acentuado. O processo de aprendizagem foi sumariamente trazido para as telas, de modo que, tamanha novidade, não pode satisfazer a todas elas, por razões distintas do seu próprio contexto social.

Agora, que elas começam a trilhar por caminhos de identificação com o ambiente escolar, na medida em que, para muitas, a escola era uma novidade a ser desvendada, experimentada pela primeira vez; ou de buscar a recuperação e a recomposição da sua aprendizagem, eis que se deparam com a beligerância político-partidária em plena sala de aula.

Assim, como é que fica a aplicação do Princípio II, da Declaração Universal dos Direitos da Criança, que afirma, com todas as letras, que A criança gozará de proteção especial e disporá de oportunidade e serviços, a serem estabelecidos em lei por outros meios, de modo que possa desenvolver-se física, mental, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade”, hein?

Ai, ai, ai! A realidade contemporânea não está fácil para ninguém; mas, para as crianças me parece ainda pior. A ausência de bom senso, de discernimento, de respeito, de responsabilidade, por parte dos adultos, está comprometendo visivelmente “o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade, das crianças e adolescentes” (ECA), a tal ponto que se torna impossível dimensionar os prejuízos futuros decorrentes desse processo.

Sim, porque crianças e adolescentes negligenciados e invisibilizados pelo próprio Estado, têm sim, maiores chances de que esses desdobramentos se reflitam, por exemplo, em elevadas taxas de suicídio, de consumo abusivo de álcool e drogas, de depressão e outros transtornos psicoemocionais, de evasão escolar e de precarização da mão de obra na fase adulta.

Portanto, bastaria olhar para o mundo, nesse exato momento, e perceber como ele está repleto de situações de deslocamento humano forçado, de guerras e conflitos armados, de eventos climáticos extremos, de miséria, de insegurança alimentar, de epidemias, de dor e sofrimento expresso em diferentes formas e conteúdos, para parar de se abster de pensar e de fazer algo a respeito. Nesse cenário caótico estão milhões de crianças e adolescentes a mercê da empatia, da alteridade, da fraternidade humana.

A médica e pedagoga italiana, Maria Montessori, afirmava que “A paz não escraviza o homem, pelo contrário, ela o exalta. Não o humilha, muito ao contrário, ela o torna consciente de seu poder no universo. E porque está baseada na natureza humana, ela é um princípio universal e constante que vale para todo ser humano. É esse princípio que deve ser nosso guia na elaboração de uma ciência da paz e na educação dos homens para a paz”.

Sendo assim, a ideia de restabelecer a convivência e a coexistência pacífica, no Brasil e no mundo, passa inevitavelmente pela atenção que é dada às crianças e aos adolescentes, na sua formação humana, naquilo que irá compor suas crenças, seus valores e seus princípios humanitários. Afinal de contas, “O futuro dependerá daquilo que fazemos no presente” (Mahatma Gandhi) e isso depende da inteira compreensão de que “As pessoas educam para a competição e esse é o princípio de qualquer guerra. Quando educarmos para cooperarmos e sermos solidários uns com os outros, nesse dia estaremos a educar para a paz” (Maria Montessori).