Os
pequenos reféns da beligerância contemporânea
Por
Alessandra Leles Rocha
Muito bonito o discurso de que as
crianças são o futuro do país. Pena que na prática as atitudes e comportamentos
sejam totalmente antagônicos às palavras. De modo que as crianças estejam sendo
cada vez menos crianças, na plenitude de seus direitos, os quais foram
consagrados tanto pela Declaração Universal do Direitos da Criança (1959)1 quanto pela Convenção sobre os Direitos
da Criança (1989) 2. E aqui, no Brasil, reforçados
pela Lei n. º 8.069, de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) 3.
Acontece que um movimento de
adultização, o qual vem se impondo nas últimas décadas, tem obstaculizado o
desenvolvimento pleno dessa parcela populacional, inclusive, por meio de
discursos e narrativas que não cabem à capacidade infantil de discernir e
opinar a respeito. Vejamos, por exemplo, que todo indivíduo ao nascer é um cidadão
por excelência; mas, não cabe a uma criança a integralidade do seu exercício
cidadão. Não há razões para isso!
Entretanto, esse absurdo
confronto político-partidário que se disseminou pelo país afora, tem arrastado
de maneira leviana e irresponsável, milhares de crianças e adolescentes para
essa seara, fomentando os atritos, as divergências, as segregações e, até
mesmo, as expressões mais contundentes de violência física, psíquica e
emocional.
Haja vista os diversos relatos
apresentados, nos últimos dias, a respeito dos atos antidemocráticos em que bebês
e crianças foram levadas para os bloqueios realizados nas rodovias nacionais 4. No entanto, essa prática não é a
única. O radicalismo político-partidário que vem se expressando cada vez mais
intenso, como acontece entre torcidas tradicionais no futebol, tem chegado aos
mais diversos espaços sociais, incluindo a escola.
Crianças, desde as fases
escolares iniciais, têm sido submetidas à arguição dos coleguinhas para saber em
quem os pais votaram na eleição. Mediante a resposta, elas vão se aglutinando
em grupos definidos por esse tipo de afinidade. Muitas se sentem acuadas,
constrangidas, confusas, sem saber o que responder; pois não atendem as razões
desses questionamentos, pelo simples fato de que não estão preparadas
psicologicamente para situações dessa natureza.
Além de cruel, de perverso,
trata-se de algo que chama atenção por não ser um comportamento fomentado por
uma questão própria da infância que, no caso, é a política, o pleito eleitoral.
E que pode vir, dependendo da gravidade da situação, reverberar em um
sentimento de aversão à escola, na medida em que a criança passa a associar o
ambiente de ensino-aprendizagem a um momento de tensão, de cobrança, de total
desconforto psicológico e emocional.
E tudo isso acontecendo, logo
depois de uma pandemia! Uma experiência que, para muitos especialistas e
estudiosos sobre a infância e a educação, trouxe marcas geracionais profundas. A
expressão da infância foi comprometida pelo isolamento, pelo distanciamento e
por um sentimento de medo, de perda, de saudade, de tristeza, muito acentuado. O
processo de aprendizagem foi sumariamente trazido para as telas, de modo que,
tamanha novidade, não pode satisfazer a todas elas, por razões distintas do seu
próprio contexto social.
Agora, que elas começam a trilhar
por caminhos de identificação com o ambiente escolar, na medida em que, para
muitas, a escola era uma novidade a ser desvendada, experimentada pela primeira
vez; ou de buscar a recuperação e a recomposição da sua aprendizagem, eis que
se deparam com a beligerância político-partidária em plena sala de aula.
Assim, como é que fica a
aplicação do Princípio II, da Declaração Universal dos Direitos da Criança, que
afirma, com todas as letras, que “A criança gozará de proteção especial e
disporá de oportunidade e serviços, a serem estabelecidos em lei por outros
meios, de modo que possa desenvolver-se física, mental, moral,
espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de
liberdade e dignidade”, hein?
Ai, ai, ai! A realidade contemporânea
não está fácil para ninguém; mas, para as crianças me parece ainda pior. A ausência
de bom senso, de discernimento, de respeito, de responsabilidade, por parte dos
adultos, está comprometendo visivelmente “o
desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de
liberdade e dignidade, das crianças e adolescentes” (ECA), a tal ponto que
se torna impossível dimensionar os prejuízos futuros decorrentes desse
processo.
Sim, porque crianças e
adolescentes negligenciados e invisibilizados pelo próprio Estado, têm sim,
maiores chances de que esses desdobramentos se reflitam, por exemplo, em
elevadas taxas de suicídio, de consumo abusivo de álcool e drogas, de depressão
e outros transtornos psicoemocionais, de evasão escolar e de precarização da
mão de obra na fase adulta.
Portanto, bastaria olhar para o
mundo, nesse exato momento, e perceber como ele está repleto de situações de
deslocamento humano forçado, de guerras e conflitos armados, de eventos
climáticos extremos, de miséria, de insegurança alimentar, de epidemias, de dor
e sofrimento expresso em diferentes formas e conteúdos, para parar de se abster
de pensar e de fazer algo a respeito. Nesse cenário caótico estão milhões de
crianças e adolescentes a mercê da empatia, da alteridade, da fraternidade
humana.
A médica e pedagoga italiana,
Maria Montessori, afirmava que “A paz não
escraviza o homem, pelo contrário, ela o exalta. Não o humilha, muito ao
contrário, ela o torna consciente de seu poder no universo. E porque está
baseada na natureza humana, ela é um princípio universal e constante que vale
para todo ser humano. É esse princípio que deve ser nosso guia na elaboração de
uma ciência da paz e na educação dos homens para a paz”.
Sendo assim, a ideia de restabelecer a convivência e a coexistência pacífica, no Brasil e no mundo, passa inevitavelmente pela atenção que é dada às crianças e aos adolescentes, na sua formação humana, naquilo que irá compor suas crenças, seus valores e seus princípios humanitários. Afinal de contas, “O futuro dependerá daquilo que fazemos no presente” (Mahatma Gandhi) e isso depende da inteira compreensão de que “As pessoas educam para a competição e esse é o princípio de qualquer guerra. Quando educarmos para cooperarmos e sermos solidários uns com os outros, nesse dia estaremos a educar para a paz” (Maria Montessori).