terça-feira, 15 de novembro de 2022

O mundo. O Brasil. Os Muros.


O mundo. O Brasil. Os Muros.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Muro de Berlim. Muro de Israel. Muro do México. Muro de Ceuta e Melilla. Muro do Chipre. Muros... Estiveram, ou ainda estão, presentes na história da humanidade, sem que na maioria das vezes, não sejam sequer percebidos e/ou questionados. Sob o pretexto da segurança, da defesa territorial, da soberania geográfica, a maioria deles emerge, quase que de maneira subliminar, do desejo de segregar, de banir, de ocultar, tudo aquilo que é incômodo, indesejável, de algum modo perturbador. Acontece que falar de muros ultrapassa as fronteiras da materialidade arquitetônica para alcançar a subjetividade dos preconceitos, das intolerâncias, das violências.

Infelizmente, os muros não precisam de cimento e de tijolos para serem erguidos. Por mais absurdo que possa parecer, o mundo globalizado contemporâneo é o espaço geográfico mais delimitado por muros abstratos que se possa imaginar. Muros erguidos pelo fanatismo ideológico, pela mitificação desenfreada, pela idealização alienadora, que fazem com que os indivíduos busquem, tanto em argumentos inconsistentes e banais quanto em pessoas, a legitimação daquilo que não são capazes de admitir e sustentar publicamente. Afinal, cerrar fileira parece bem mais fácil do que tomar para si a responsabilidade a respeito de uma ideia ou situação.

Nesse sentido, então, os muros na contemporaneidade não só delimitam o trânsito social dos indivíduos; mas, funcionam como bons anteparos para proteger uns e outros de eventuais questionamentos ideológicos e comportamentais. Entre muros o retrógrado, o ultrapassado, o involuído, como queira chamar, se mantém dormente na sua zona de conforto, impedindo quaisquer rupturas ou transformações que possam abalar suas crenças, convicções, princípios e regalias.

Acontece que falta combinar tudo isso com a vida, com a dinâmica da existência humana sobre o planeta. A teoria na prática é bem outra. Como bem escreveu Arthur Schopenhauer, em 1851, através do Dilema do Porco-Espinho, não resta a nenhum ser humano outra possibilidade de convivência e coexistência senão a busca por um denominador comum suficientemente capaz de transformar as diferenças em algo passível de agregação. É, a sobrevivência humana está condicionada a acontecer sem muros! Quanto mais se erguem muros, mais a humanidade anula a sua capacidade de somar esforços, de unir talentos e capacidades para trabalhar em prol do bem-estar comum.

A perspectiva de entender o outro como inimigo, como adversário, como concorrente, é que está levando o planeta a sucumbir. Os vetores de força estão se anulando drasticamente e a incapacidade de reverter as crises, sejam de que natureza forem, é a mais pura realidade. Haja vista a situação da pandemia de COVID-19 a se arrastar pelos últimos três anos. Já parou para pensar como os muros materiais e imateriais têm peso na permanência da doença, na disseminação do vírus Sars-Cov-2 e de suas variantes, na baixa distribuição de vacinas e imunização das pessoas, na construção de uma rede perversa de teorias negacionistas? Pois é, eles têm sim. Sobretudo, os muros imateriais.

Então, de que adiantam os muros? Tantos deles são erguidos diariamente e o deslocamento humano pelo mundo segue o seu calvário, os eventos extremos do clima assolam o planeta sem piedade, as doenças se proliferam sem cerimônia, a iminência de mais guerras e conflitos paira no ar como uma espada apontada sobre 8 bilhões de cabeças 1... No fundo é extremamente paradoxal falar sobre muros, quando o mundo contemporâneo vive ansioso na sua reafirmação de liberdade sem limites. Como compatibilizar liberdade e muro? Liberdade e segurança? Muro e desenvolvimento? Muro e inovação?

Avise-me se souber explicar, porque eu não consigo! Aliás, discutir sobre muros me causa uma profunda fadiga emocional, porque eles me fazem pensar sobre uma vida interrompida, uma vida que não segue o seu fluxo natural, que é triste, melancólica, pela constante presença da falta. Há sempre uma ausência demarcada dentro e fora do muro, como se a esperança, a criatividade, o futuro, tivessem o seu crescimento podado à revelia de si mesmos. Talvez, por isso, onde há muros há sempre alguém querendo erguer-se além do topo, transpor aquele obstáculo, descobrir o que há mais adiante, respirar uma liberdade que não é possível de ver.

Como escreveu Clarice Lispector, “Perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova da solidão de não pertencer começou a me invadir como heras num muro” (A descoberta do mundo, 1984), desde que tomei consciência de quantos muros se erguiam conscientes e inconscientes pelo mundo. Muros que impedem seres humanos de ser, de estar, de permanecer, de continuar, de se tornar, de andar, ... de viver. Por isso, eles jamais me fizeram quaisquer sentidos e, desse modo, sempre me pareceram tão inúteis, tão imbecis, tão antiproducentes, tão ridículos, que eu me esgoto, me canso, só de pensar a respeito.