segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Em tempo de redescobrir o Brasil...


Em tempo de redescobrir o Brasil...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Lamento, mas nenhum ser humano é totalmente autossuficiente! Na velha e boa gíria do futebol, “ninguém joga nas onze”! E não joga mesmo! Porque é impossível! E, talvez, essa obviedade da vida tenha sido muito bem arquitetada pelo Criador para que nos déssemos conta de que todos têm valor, todos são importantes, todos têm algo a acrescentar a esse mundo.

Daí a relevância da escolha do tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), nessa edição, ao trazer para discussão dos alunos os “Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil” 1.  Em tempos cada vez mais cruéis e perversos, em que as tentativas de invisibilizar, ou massacrar, ou destruir por completo, a diversidade e a pluralidade humana, essa é sim, uma temática vital.

Se nos dispusermos voluntariamente a uma reflexão profunda sobre a relação que temos individualmente com o coletivo social, não será impossível perceber como certos grupos passam distantes do nosso olhar, da nossa fala, da nossa percepção, como se não existissem ou não nos fosse agradável constatar a sua presença.

Como tão bem exemplificou Darcy Ribeiro, “O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, ‘democracia racial’, raramente percebem os profundos abismos que aqui separam os estratos sociais. O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres como se fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alternidade” (O Povo brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil, 1995).

É nesse ranço histórico, de base colonial, que aprendemos a ser um país desigual e a nos vangloriar, tantas vezes, dessa desigualdade, como se ela pudesse ser a materialização do status de nossos pseudopoderes. Por isso, tudo se torna pretexto, motivo e razão para banir, para segregar, para humilhar, para desqualificar muitos de nós, criando o terrível conceito de que uns são mais brasileiros do que outros.  

No entanto, isso não muda em absolutamente nada o fato de que essas pessoas estão por aí, fazendo parte da sociedade brasileira e mesmo, aos trancos e barrancos, tentando exercer a sua cidadania. Porque a dinâmica do mundo; sobretudo, o mundo contemporâneo, consumista, materialista, exige cada vez mais a presença maciça do ser humano para dar conta de mover as suas engrenagens a contento.

Por isso, no fim das contas, à revelia de vontades e quereres estapafúrdios, todos têm valor, todos são importantes, todos têm algo a acrescentar, independentemente, se uns e outros teimam em torcer o nariz, em virar o rosto, em destilar o seu ódio, em ostentar o seu desprezo infundado.

Aliás, para gostar ou não desse ou daquele indivíduo é preciso bem mais do que simpatia de primeiro encontro. Ninguém é um poço de virtudes. Ninguém é a doçura em pessoa. Somos feitos de luz e sombras, direito e avesso, qualidades e defeitos. Longe de uma distribuição equilibrada! Simplesmente, porque a nossa incompletude nos impõe exercitar a modelagem do nosso barro existencial, a fim de evoluirmos, de nos transformarmos, de alcançarmos uma condição humana melhor e mais distante do primitivo, da barbárie.

Mas, o que parece se apresentar em cada esquina brasileira, e mais amiúde, tem sido um narcisismo exacerbado que busca homogeneizar a sociedade, segundo as expectativas e os protocolos de uns e de outros. Então, tem que ser como eles (as) querem. Se não for, eles (as) rechaçam, eles (as) excluem, eles (as) negam, como se estivesse mesmo em suas mãos tamanho poder 2. Afinal, em suas mentes é possível construir um mundo idealizado e perfeito, onde não há riscos de serem irritados, frustrados, contestados.

A pergunta a se fazer é: até quando iremos aceitar tudo isso? Esse movimento absurdamente retrógrado de homogeneização social é comprovadamente improdutivo e, inúmeras vezes, criminoso. Enquanto se poupam os egos mimados de alguns, na tentativa de frear os conflitos e as beligerâncias em suas diversas formas e conteúdos, o país não sai do lugar em razão da ausência do contraditório, da discussão, da argumentação. Ele apenas permanece na inércia fria de uma igualdade mentirosa, fabricada para estabelecer o controle sobre a diversidade, a pluralidade social.

Acontece que o Brasil são muitos Brasis. Sua história é alicerçada no multiculturalismo. Somos genuinamente misturados e isso reflete diretamente na dinâmica social brasileira, no momento de trazer à tona as ideias, os pensamentos, as opiniões, as contribuições, as potencialidades para o desenvolvimento nacional.

Já passou da hora de o país abdicar da reprodução identitária alheia, a qual marcou a sua história desde sempre, para se apropriar da sua própria identidade e dela impulsionar a parte que lhe cabe no protagonismo globalizado. O progresso não precisa ser igual em todo o mundo! O que ele precisa é ser capaz de agregar as vozes num canto consoante, que contemple o máximo possível das aspirações de cada um! Portanto, “A coisa mais importante para os brasileiros (...) é inventar o Brasil que nós queremos” (Darcy Ribeiro), com base na paz e no respeito.