Em
tempo de redescobrir o Brasil...
Por
Alessandra Leles Rocha
Lamento, mas nenhum ser humano é
totalmente autossuficiente! Na velha e boa gíria do futebol, “ninguém joga nas onze”! E não joga
mesmo! Porque é impossível! E, talvez, essa obviedade da vida tenha sido muito
bem arquitetada pelo Criador para que nos déssemos conta de que todos têm
valor, todos são importantes, todos têm algo a acrescentar a esse mundo.
Daí a relevância da escolha do
tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), nessa edição, ao
trazer para discussão dos alunos os “Desafios
para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil” 1.
Em tempos cada vez mais cruéis e perversos, em que as tentativas de
invisibilizar, ou massacrar, ou destruir por completo, a diversidade e a
pluralidade humana, essa é sim, uma temática vital.
Se nos dispusermos
voluntariamente a uma reflexão profunda sobre a relação que temos
individualmente com o coletivo social, não será impossível perceber como certos
grupos passam distantes do nosso olhar, da nossa fala, da nossa percepção, como
se não existissem ou não nos fosse agradável constatar a sua presença.
Como tão bem exemplificou Darcy
Ribeiro, “O espantoso é que os
brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, ‘democracia racial’,
raramente percebem os profundos abismos que aqui separam os estratos sociais. O
mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo,
porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres como se
fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira
de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram
ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alternidade” (O
Povo brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil, 1995).
É nesse ranço histórico, de base
colonial, que aprendemos a ser um país desigual e a nos vangloriar, tantas
vezes, dessa desigualdade, como se ela pudesse ser a materialização do status
de nossos pseudopoderes. Por isso, tudo se torna pretexto, motivo e razão para
banir, para segregar, para humilhar, para desqualificar muitos de nós, criando
o terrível conceito de que uns são mais brasileiros do que outros.
No entanto, isso não muda em
absolutamente nada o fato de que essas pessoas estão por aí, fazendo parte da
sociedade brasileira e mesmo, aos trancos e barrancos, tentando exercer a sua
cidadania. Porque a dinâmica do mundo; sobretudo, o mundo contemporâneo,
consumista, materialista, exige cada vez mais a presença maciça do ser humano
para dar conta de mover as suas engrenagens a contento.
Por isso, no fim das contas, à
revelia de vontades e quereres estapafúrdios, todos têm valor, todos são
importantes, todos têm algo a acrescentar, independentemente, se uns e outros
teimam em torcer o nariz, em virar o rosto, em destilar o seu ódio, em ostentar
o seu desprezo infundado.
Aliás, para gostar ou não desse
ou daquele indivíduo é preciso bem mais do que simpatia de primeiro encontro.
Ninguém é um poço de virtudes. Ninguém é a doçura em pessoa. Somos feitos de
luz e sombras, direito e avesso, qualidades e defeitos. Longe de uma
distribuição equilibrada! Simplesmente, porque a nossa incompletude nos impõe
exercitar a modelagem do nosso barro existencial, a fim de evoluirmos, de nos
transformarmos, de alcançarmos uma condição humana melhor e mais distante do
primitivo, da barbárie.
Mas, o que parece se apresentar
em cada esquina brasileira, e mais amiúde, tem sido um narcisismo exacerbado
que busca homogeneizar a sociedade, segundo as expectativas e os protocolos de
uns e de outros. Então, tem que ser como eles (as) querem. Se não for, eles
(as) rechaçam, eles (as) excluem, eles (as) negam, como se estivesse mesmo em
suas mãos tamanho poder 2. Afinal,
em suas mentes é possível construir um mundo idealizado e perfeito, onde não há
riscos de serem irritados, frustrados, contestados.
A pergunta a se fazer é: até
quando iremos aceitar tudo isso? Esse movimento absurdamente retrógrado de
homogeneização social é comprovadamente improdutivo e, inúmeras vezes,
criminoso. Enquanto se poupam os egos mimados de alguns, na tentativa de frear
os conflitos e as beligerâncias em suas diversas formas e conteúdos, o país não
sai do lugar em razão da ausência do contraditório, da discussão, da
argumentação. Ele apenas permanece na inércia fria de uma igualdade mentirosa,
fabricada para estabelecer o controle sobre a diversidade, a pluralidade
social.
Acontece que o Brasil são muitos
Brasis. Sua história é alicerçada no multiculturalismo. Somos genuinamente
misturados e isso reflete diretamente na dinâmica social brasileira, no momento
de trazer à tona as ideias, os pensamentos, as opiniões, as contribuições, as
potencialidades para o desenvolvimento nacional.