Precisamos
falar sobre isso...
Por
Alessandra Leles Rocha
Com o fim do ciclo Elizabetano é,
de certa forma, natural que as discussões sobre o colonialismo encontrem campo
para reacender no mundo. O despertar da consciência de que a sociedade
contemporânea tem nas raízes coloniais as sementes das suas mais diversas
mazelas se torna bastante perceptível.
A indisposição em lançar sob os
tapetes da história questões importantes como o racismo, a misoginia, a
intolerância religiosa, a xenofobia, as desigualdades sociais, o mau uso dos
recursos pelas nações, são alguns dos exemplos de um movimento que tende a se
recrudescer.
Mas, se engana quem pensa que
isso é ruim! Muito pelo contrário! Essa é a grande oportunidade para se
vislumbrar um rearranjo das relações sociais ajustado efetivamente às demandas
que se impõem no contexto vigente. Não dá mais para a humanidade tentar se
equilibrar entre dois mundos totalmente diferentes! Nem tampouco para fechar os
olhos para as cicatrizes profundas que vieram marcando a história colonial e
pós-colonial ao redor do planeta.
Portanto, esse é o momento de
entender e de admitir que “A política do
colonialismo é a política do medo. É criar o ‘outro’, criar corpos desviantes e
dizer que eles são assustadores e terríveis e que nós temos que defender-nos
deles como barreiras como passaportes e fronteiras” (Grada Kilomba – artista
multidisciplinar portuguesa).
Afinal, o medo, seja por quem ou
pelo o que for, contribui para invisibilizar a história colonial em todas as
suas formas e conteúdos. O medo vigia. O medo controla. O medo pune. O medo se
encaixa satisfatoriamente dentro dos interesses das classes e grupos
dominantes.
Do ponto de vista daqueles que
herdaram diretamente os frutos vistosos e doces, tanto materiais quanto
imateriais do colonialismo e do pós-colonialismo, ou seja, as elites
aristocráticas de ideologias de direita e seus simpatizantes, certamente,
haverá desconforto e manifestações contrárias a esse movimento de contestação
colonial. Imagina, alguém se atrever a
incomodá-los na sua zona de conforto tão bem estabelecida!
Acontece que a lei da ação e da
reação é implacável! Pode ser difícil. Pode demorar. Pode até parecer
impossível. Mas, um dia, as conjunturas se moldam para reparar os erros, as
injustiças, os absurdos, as violências, à revelia de quem quer que seja. Porque
no grande quebra-cabeças da vida nenhuma peça pode ficar fora de lugar ou em
posição desajustada.
E analisando a situação por essa
perspectiva, uma esperança de que novos ares soprem sobre o mundo é
acalentadora. Paira sobre a humanidade uma necessidade urgente de colocar
certos pingos nos is, de romper com certos paradigmas obsoletos, de interromper
certos abusos, para que o progresso e o desenvolvimento possam, de fato, se
estabelecer.
Na maioria do tempo, o que nossa
visão teima em oferecer como ínfimo recorte da realidade é somente uma gota em
um oceano de calamidades. As sucessivas sobreposições de camadas de problemas
vieram secularmente soterrando e anestesiando a capacidade social crítico-reflexiva,
a tal ponto que as pessoas passaram a dissociar os fatos como se não fizessem
parte de um todo.
Vejam só, o exemplo, da recente
notícia a respeito de uma fábrica brasileira de vacinas que está em construção
há 30 anos, em Xerém, no bairro de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Já foram
gastos mais de R$40 milhões, sem que nenhum imunizante tenha sido produzido no
local. E a notícia só veio à tona, em razão da falta do imunizante BCG, que
previne a tuberculose, no país.
De modo que, sendo a Fundação
Ataulpho de Paiva (FAP) a única responsável pela produção do mesmo, no Brasil,
e seus trabalhos terem sido interrompidos por questões de inadequação sanitária
apontadas pela Agência de Vigilância Sanitária (ANVISA) 1,
descobriu-se que ela também é a responsável pela construção do tal complexo, em
Duque de Caxias 2.
Esse trato irresponsável,
negligente, imprudente, com os recursos públicos, caro (a) leitor (a), é
herança colonial! Acontece que não se restringe apenas ao desperdício e/ou a
explícita ausência de planejamento. Nesse caso específico, tomamos ciência dos
impactos sobre um viés da saúde pública nacional.
Afinal de contas, segundo consta
no próprio site do Ministério da Saúde, “O
Relatório Mundial da Tuberculose 2019, da Organização Mundial da Saúde (OMS),
relata que aproximadamente 10 milhões de casos de tuberculose são registrados
todos os anos no mundo. Dados do último relatório da OMS indicam que a
tuberculose é a doença infecciosa que mais mata jovens e adultos, ultrapassando
o HIV/AIDS. No Brasil, em 2020, foram notificados aproximadamente 69 mil casos
novos e 4,5 mil mortes em decorrência da doença” 3.
Essas informações são
importantes, porque a tuberculose é de transmissão pulmonar ou laríngea, ou
seja, pela tosse, espirro, fala e/ou contato direto com pessoas ou objetos de
uso pessoal contaminados. Portanto, o tempo de permanência do indivíduo com
tuberculose seja no mesmo domicílio, local de trabalho ou dividindo o mesmo
ambiente, especialmente aqueles com menor ventilação, amplia a probabilidade de
infecção pelo bacilo (bactéria).
Mas, tudo isso seria facilmente
evitado mediante a imunização com a BCG. No Brasil, o protocolo de vacinação
prevê a sua administração em crianças de até cinco anos de idade; mas, de
preferência, em recém-nascidos. São previstas três doses – aos dois, aos quatro
e aos seis meses de vida, com intervalo de sessenta dias entre elas. As mesmas
são oferecidas, gratuitamente, nas Unidades Básicas de Saúde.
Infelizmente, como se vê as
consequências e os desdobramentos das práxis colonialistas permanecem reverberando
entre nós. A gastança desmedida, por exemplo, que no fim do século XVIII
explodiu na Revolução Francesa, não ficou retida nas páginas da história.
Quantos gastos públicos injustificados e perdidos são denunciados todos os
anos, no Brasil, sem que ninguém consiga reaver os prejuízos para o erário?
O acumulado de heranças coloniais
malditas formou sim, uma teia perversa e cruel sobre a população. O país
continua vivendo de acordo com os caprichos de uma minoria, esquecendo-se dos
riscos que isso representa para a estabilidade e a sobrevivência de toda
estrutura social. Haja vista o que foi, e tem sido, a saga nacional em relação
a inesperada epidemia do Sars-Cov-2.
No entanto, a saúde é só um viés
desse imenso leque de mazelas que nos aprisionam no passado colonial. São
muitas as nossas correntes! O que explica porque parecemos estar sempre andando
em círculos sem sair do lugar, numa tentativa desesperada de trivializar e
banalizar certas situações para não ter que agir, tomar quaisquer providências
a respeito. E quanto mais isso acontece, mais os silêncios gritam!
É preciso entender que as
metamorfoses do mundo acontecem porque ele se expande em termos populacionais e
dessa forma, os desafios e as necessidades também se tornam maiores e mais intensos.
Nesse sentido, um movimento de desconstrução e ressignificação ideológica e
comportamental entra em curso, sacudindo as poeiras, revirando os baús, e
despertando uma certa criticidade reflexiva.
De repente, não dá mais para
fechar os olhos! Não dá mais para desconversar! Como escreveu o psiquiatra e
filósofo político Frantz Fanon, “A
destruição do mundo colonial não é mais nem menos que a abolição de uma zona,
seu enterro nas profundezas da terra ou sua expulsão do país”.
Só assim, “desperto um belo dia no mundo e me atribuo um único direito: exigir do outro um comportamento humano. Um único dever: o de nunca, através de minhas opções, renegar minha liberdade” (Frantz Fanon – Black Skin, White Masks 4). A partir daí, dessa consciência, a realidade pulsa. E nesse pulsar ela acaba expurgando velhos fantasmas e se desvencilhando das antigas amarras.
1 https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2022/05/20/vacina-bcg-com-fabrica-nacional-parada-ministerio-pede-que-estados-racionem-imunizante.htm
2 https://g1.globo.com/saude/noticia/2022/09/02/governo-ja-repassou-r-28-milhoes-para-nova-fabrica-da-vacina-contra-tuberculose-que-esta-em-construcao-desde-1989.ghtml
4 Pele negra, Máscaras brancas - https://www.ubueditora.com.br/pele-negra-mascaras-brancas.html