quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Precisamos falar sobre isso...


Precisamos falar sobre isso...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Com o fim do ciclo Elizabetano é, de certa forma, natural que as discussões sobre o colonialismo encontrem campo para reacender no mundo. O despertar da consciência de que a sociedade contemporânea tem nas raízes coloniais as sementes das suas mais diversas mazelas se torna bastante perceptível.

A indisposição em lançar sob os tapetes da história questões importantes como o racismo, a misoginia, a intolerância religiosa, a xenofobia, as desigualdades sociais, o mau uso dos recursos pelas nações, são alguns dos exemplos de um movimento que tende a se recrudescer.

Mas, se engana quem pensa que isso é ruim! Muito pelo contrário! Essa é a grande oportunidade para se vislumbrar um rearranjo das relações sociais ajustado efetivamente às demandas que se impõem no contexto vigente. Não dá mais para a humanidade tentar se equilibrar entre dois mundos totalmente diferentes! Nem tampouco para fechar os olhos para as cicatrizes profundas que vieram marcando a história colonial e pós-colonial ao redor do planeta.

Portanto, esse é o momento de entender e de admitir que “A política do colonialismo é a política do medo. É criar o ‘outro’, criar corpos desviantes e dizer que eles são assustadores e terríveis e que nós temos que defender-nos deles como barreiras como passaportes e fronteiras” (Grada Kilomba – artista multidisciplinar portuguesa).

Afinal, o medo, seja por quem ou pelo o que for, contribui para invisibilizar a história colonial em todas as suas formas e conteúdos. O medo vigia. O medo controla. O medo pune. O medo se encaixa satisfatoriamente dentro dos interesses das classes e grupos dominantes.

Do ponto de vista daqueles que herdaram diretamente os frutos vistosos e doces, tanto materiais quanto imateriais do colonialismo e do pós-colonialismo, ou seja, as elites aristocráticas de ideologias de direita e seus simpatizantes, certamente, haverá desconforto e manifestações contrárias a esse movimento de contestação colonial.  Imagina, alguém se atrever a incomodá-los na sua zona de conforto tão bem estabelecida!

Acontece que a lei da ação e da reação é implacável! Pode ser difícil. Pode demorar. Pode até parecer impossível. Mas, um dia, as conjunturas se moldam para reparar os erros, as injustiças, os absurdos, as violências, à revelia de quem quer que seja. Porque no grande quebra-cabeças da vida nenhuma peça pode ficar fora de lugar ou em posição desajustada.

E analisando a situação por essa perspectiva, uma esperança de que novos ares soprem sobre o mundo é acalentadora. Paira sobre a humanidade uma necessidade urgente de colocar certos pingos nos is, de romper com certos paradigmas obsoletos, de interromper certos abusos, para que o progresso e o desenvolvimento possam, de fato, se estabelecer.

Na maioria do tempo, o que nossa visão teima em oferecer como ínfimo recorte da realidade é somente uma gota em um oceano de calamidades. As sucessivas sobreposições de camadas de problemas vieram secularmente soterrando e anestesiando a capacidade social crítico-reflexiva, a tal ponto que as pessoas passaram a dissociar os fatos como se não fizessem parte de um todo.

Vejam só, o exemplo, da recente notícia a respeito de uma fábrica brasileira de vacinas que está em construção há 30 anos, em Xerém, no bairro de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Já foram gastos mais de R$40 milhões, sem que nenhum imunizante tenha sido produzido no local. E a notícia só veio à tona, em razão da falta do imunizante BCG, que previne a tuberculose, no país.

De modo que, sendo a Fundação Ataulpho de Paiva (FAP) a única responsável pela produção do mesmo, no Brasil, e seus trabalhos terem sido interrompidos por questões de inadequação sanitária apontadas pela Agência de Vigilância Sanitária (ANVISA) 1, descobriu-se que ela também é a responsável pela construção do tal complexo, em Duque de Caxias 2.

Esse trato irresponsável, negligente, imprudente, com os recursos públicos, caro (a) leitor (a), é herança colonial! Acontece que não se restringe apenas ao desperdício e/ou a explícita ausência de planejamento. Nesse caso específico, tomamos ciência dos impactos sobre um viés da saúde pública nacional. 

Afinal de contas, segundo consta no próprio site do Ministério da Saúde, “O Relatório Mundial da Tuberculose 2019, da Organização Mundial da Saúde (OMS), relata que aproximadamente 10 milhões de casos de tuberculose são registrados todos os anos no mundo. Dados do último relatório da OMS indicam que a tuberculose é a doença infecciosa que mais mata jovens e adultos, ultrapassando o HIV/AIDS. No Brasil, em 2020, foram notificados aproximadamente 69 mil casos novos e 4,5 mil mortes em decorrência da doença” 3.

Essas informações são importantes, porque a tuberculose é de transmissão pulmonar ou laríngea, ou seja, pela tosse, espirro, fala e/ou contato direto com pessoas ou objetos de uso pessoal contaminados. Portanto, o tempo de permanência do indivíduo com tuberculose seja no mesmo domicílio, local de trabalho ou dividindo o mesmo ambiente, especialmente aqueles com menor ventilação, amplia a probabilidade de infecção pelo bacilo (bactéria). 

Mas, tudo isso seria facilmente evitado mediante a imunização com a BCG. No Brasil, o protocolo de vacinação prevê a sua administração em crianças de até cinco anos de idade; mas, de preferência, em recém-nascidos. São previstas três doses – aos dois, aos quatro e aos seis meses de vida, com intervalo de sessenta dias entre elas. As mesmas são oferecidas, gratuitamente, nas Unidades Básicas de Saúde.  

Infelizmente, como se vê as consequências e os desdobramentos das práxis colonialistas permanecem reverberando entre nós. A gastança desmedida, por exemplo, que no fim do século XVIII explodiu na Revolução Francesa, não ficou retida nas páginas da história. Quantos gastos públicos injustificados e perdidos são denunciados todos os anos, no Brasil, sem que ninguém consiga reaver os prejuízos para o erário?

O acumulado de heranças coloniais malditas formou sim, uma teia perversa e cruel sobre a população. O país continua vivendo de acordo com os caprichos de uma minoria, esquecendo-se dos riscos que isso representa para a estabilidade e a sobrevivência de toda estrutura social. Haja vista o que foi, e tem sido, a saga nacional em relação a inesperada epidemia do Sars-Cov-2.

No entanto, a saúde é só um viés desse imenso leque de mazelas que nos aprisionam no passado colonial. São muitas as nossas correntes! O que explica porque parecemos estar sempre andando em círculos sem sair do lugar, numa tentativa desesperada de trivializar e banalizar certas situações para não ter que agir, tomar quaisquer providências a respeito. E quanto mais isso acontece, mais os silêncios gritam!

É preciso entender que as metamorfoses do mundo acontecem porque ele se expande em termos populacionais e dessa forma, os desafios e as necessidades também se tornam maiores e mais intensos. Nesse sentido, um movimento de desconstrução e ressignificação ideológica e comportamental entra em curso, sacudindo as poeiras, revirando os baús, e despertando uma certa criticidade reflexiva.

De repente, não dá mais para fechar os olhos! Não dá mais para desconversar! Como escreveu o psiquiatra e filósofo político Frantz Fanon, “A destruição do mundo colonial não é mais nem menos que a abolição de uma zona, seu enterro nas profundezas da terra ou sua expulsão do país”.

Só assim, “desperto um belo dia no mundo e me atribuo um único direito: exigir do outro um comportamento humano. Um único dever: o de nunca, através de minhas opções, renegar minha liberdade” (Frantz Fanon – Black Skin, White Masks 4). A partir daí, dessa consciência, a realidade pulsa. E nesse pulsar ela acaba expurgando velhos fantasmas e se desvencilhando das antigas amarras.