Licença
para a grosseria
Por
Alessandra Leles Rocha
Está o Brasil sob o manto de uma
licença para a grosseria? A pergunta não é por acaso, seu fundamento se faz a
partir das recentes hostilidades e violências que têm sido intensificadas
contra a classe jornalística nacional; sobretudo, em relação às mulheres que
atuam na área.
De modo que a resposta é sim. O
Brasil está sob o manto de uma licença para a grosseria. Mas, não se engane, o
caso do jornalismo é só a ponta do iceberg.
Agredir, ofender, humilhar, desqualificar jornalistas, com ênfase misógina, não
responde tudo sobre essa licença para a vulgaridade, a deselegância, a
inconveniência, o disparate.
Depois de muito observar e
refletir sobre o recorte temporal, desses quase quatro anos de governo, creio
que encontrei a ponta do fio dessa meada. Os fatos mais horrendos, os
acontecimentos mais constrangedores, tudo gira em torno da negação. Negar não
foi só uma ideia estapafúrdia que se disseminou no atual governo; mas, uma
política de estado. Que chegou totalmente estruturada, com método, com
propósito.
Mas, por que negar? Porque a
negação sustenta satisfatoriamente a construção de um mundo idealizado, de uma
realidade idealizada. Quem nega admite que não aceita a verdade dos fatos; mas,
a verdade que se constitui a partir da sua própria perspectiva. Portanto, ele
(a) quer fazer da sua verdade a realidade absoluta, custe o que custar.
Trata-se de um narcisismo tão
exacerbado que extrapola as fronteiras para além de si mesmo, na idealização do
próprio cotidiano. Esses indivíduos se julgam tão perfeitos, tão incríveis, que
não cogitam sequer a possibilidade de o mundo em que vivem não ser da mesma
forma. Por isso, eles (as) negam tudo o que for na contramão desse pensamento,
dessa idealização.
Então, por trás dessa licença
para a grosseria que se viu repetir inúmeras vezes, por diferentes figuras
ligadas direta ou indiretamente ao governo, a síntese foi sempre a mesma, a
negação. Negaram vacinas. Negaram oxigênio. Negaram a ineficácia de
medicamentos para o tratamento da COVID-19. Negaram a desaceleração da
economia. Negaram o retorno triunfante da fome. Negaram o apoio do Estado a uma
criança grávida, vítima de estupro de vulnerável. Negaram...
E aí, você me pergunta, onde se
encaixa a questão dos jornalistas dentro desse movimento negacionista? Ora, o
jornalismo é o bastião da resistência. O jornalismo é a luz do candeeiro que
ilumina a realidade dos fatos, a verdade nua e crua. O jornalismo é o
contraponto às arbitrariedades, às barbaridades, às enganações, às Fake News. Ele afronta o discurso
negacionista de maneira implacável, trazendo as verdades a um campo bastante
indigesto.
Nesse sentido, no caso dos traços
misóginos presentes na maioria dos ataques, não se trata apenas de uma busca
por um oponente supostamente mais frágil. A verdade é que quaisquer
representantes das minorias sociais que estivessem exercendo um trabalho
jornalístico poderiam ser alvos, pelo simples fato de que sua presença em si
manifesta uma discordância à idealização social de quem os agride.
Vejam que o próprio governo
desqualificou as estatísticas sobre o mapa da fome no país. E por que o fez?
Porque na sua realidade, no seu mundo paralelo, não podem existir pobres,
miseráveis, famintos. Só faltou dizer “se
não tem pão que comam brioches”, não é mesmo?! Portanto, o foco das
ofensas, das beligerâncias, é amplo. Basta um senão de desacordo à idealização,
e só.
Acontece que cada dia mais tudo
parece pretexto suficiente para desagradar, para perturbar, para incomodar o
sossego do governo e de seus simpatizantes. É como se vivessem procurando pelos
em ovos. Amanhecem e adormecem vigilantes ao que possa melindrar as suas
narrativas, deixando de cabelos em pé, no ápice da exaustão, suas equipes de
elaboração de Fake News para combater
de pronto a verdade. Afinal de contas, são as mentiras, as inverdades, as
distorções o carimbo oficial dessa licença para as grosserias, vigente no
Brasil contemporâneo.
Portanto, mais do que uma questão
político-partidária, essa é uma questão psico-comportamental. Valendo-se de
características próprias à contemporaneidade, dentre elas as Tecnologias da
Informação e Comunicação (TICs), os negacionistas não só conseguiram terreno
fértil para disseminar as suas ideologias e propagar os seus efeitos deletérios
sobre o país, como, também, espaço para reafirmação da sua verdade idealizada.
A ausência de uma percepção clara
e contundente sobre esse movimento, postergou muito uma reação de contenção e
dissolução desse movimento que fosse realmente eficaz. Daí a quantidade de
danos sociais que o país vem convivendo! É preciso reconhecer, especialmente do
ponto de vista das autoridades competentes, que houve sim, uma relativização
quanto às Fake News e às violências
reais e virtuais. E essa demora contribuiu para a legitimação da licença para a
grosseria no país.
Entretanto, como eu sempre gosto
de considerar, as conjunturas do mundo são implacáveis. Às vezes, elas não agem
na velocidade temporal que nos parece necessária; mas, isso não significa que
não estejam agindo. Na verdade, as mudanças, as metamorfoses sempre estiveram em
curso! E o grande indicador disso é que a consciência sobre a dinâmica
cotidiana foi despertada e as atenções estão mais ativas do que nunca.
De modo que a euforia da
permissividade que a licença para a grosseria causou no país começa a dar
sinais de arrefecimento. A paciência com certos hábitos e comportamentos se
esgota pelo próprio nível de desgaste social que eles promovem. E a impaciência
resultante desse cansaço se coloca mais pujante, mais convicta, mais ciente das
obrigações e compromissos humanos e cidadãos.
Assim, antes do que se possa
imaginar, devemos estar sob a vigência da licença para a civilidade. Vivendo no
mundo real. Sem idealizações absurdas. Sem narcisismos egocêntricos. Sem
distorções e manipulações da verdade. E aí, entenderemos que “Nada denuncia mais o grau de civilidade de
um país e de um povo do que o modo de tratar a coisa pública e a coletividade”
(Glória Kalil – jornalista).