quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Licença para a grosseria


Licença para a grosseria

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Está o Brasil sob o manto de uma licença para a grosseria? A pergunta não é por acaso, seu fundamento se faz a partir das recentes hostilidades e violências que têm sido intensificadas contra a classe jornalística nacional; sobretudo, em relação às mulheres que atuam na área.

De modo que a resposta é sim. O Brasil está sob o manto de uma licença para a grosseria. Mas, não se engane, o caso do jornalismo é só a ponta do iceberg. Agredir, ofender, humilhar, desqualificar jornalistas, com ênfase misógina, não responde tudo sobre essa licença para a vulgaridade, a deselegância, a inconveniência, o disparate.

Depois de muito observar e refletir sobre o recorte temporal, desses quase quatro anos de governo, creio que encontrei a ponta do fio dessa meada. Os fatos mais horrendos, os acontecimentos mais constrangedores, tudo gira em torno da negação. Negar não foi só uma ideia estapafúrdia que se disseminou no atual governo; mas, uma política de estado. Que chegou totalmente estruturada, com método, com propósito.  

Mas, por que negar? Porque a negação sustenta satisfatoriamente a construção de um mundo idealizado, de uma realidade idealizada. Quem nega admite que não aceita a verdade dos fatos; mas, a verdade que se constitui a partir da sua própria perspectiva. Portanto, ele (a) quer fazer da sua verdade a realidade absoluta, custe o que custar.

Trata-se de um narcisismo tão exacerbado que extrapola as fronteiras para além de si mesmo, na idealização do próprio cotidiano. Esses indivíduos se julgam tão perfeitos, tão incríveis, que não cogitam sequer a possibilidade de o mundo em que vivem não ser da mesma forma. Por isso, eles (as) negam tudo o que for na contramão desse pensamento, dessa idealização.

Então, por trás dessa licença para a grosseria que se viu repetir inúmeras vezes, por diferentes figuras ligadas direta ou indiretamente ao governo, a síntese foi sempre a mesma, a negação. Negaram vacinas. Negaram oxigênio. Negaram a ineficácia de medicamentos para o tratamento da COVID-19. Negaram a desaceleração da economia. Negaram o retorno triunfante da fome. Negaram o apoio do Estado a uma criança grávida, vítima de estupro de vulnerável. Negaram...

E aí, você me pergunta, onde se encaixa a questão dos jornalistas dentro desse movimento negacionista? Ora, o jornalismo é o bastião da resistência. O jornalismo é a luz do candeeiro que ilumina a realidade dos fatos, a verdade nua e crua. O jornalismo é o contraponto às arbitrariedades, às barbaridades, às enganações, às Fake News. Ele afronta o discurso negacionista de maneira implacável, trazendo as verdades a um campo bastante indigesto.

Nesse sentido, no caso dos traços misóginos presentes na maioria dos ataques, não se trata apenas de uma busca por um oponente supostamente mais frágil. A verdade é que quaisquer representantes das minorias sociais que estivessem exercendo um trabalho jornalístico poderiam ser alvos, pelo simples fato de que sua presença em si manifesta uma discordância à idealização social de quem os agride.

Vejam que o próprio governo desqualificou as estatísticas sobre o mapa da fome no país. E por que o fez? Porque na sua realidade, no seu mundo paralelo, não podem existir pobres, miseráveis, famintos. Só faltou dizer “se não tem pão que comam brioches”, não é mesmo?! Portanto, o foco das ofensas, das beligerâncias, é amplo. Basta um senão de desacordo à idealização, e só.

Acontece que cada dia mais tudo parece pretexto suficiente para desagradar, para perturbar, para incomodar o sossego do governo e de seus simpatizantes. É como se vivessem procurando pelos em ovos. Amanhecem e adormecem vigilantes ao que possa melindrar as suas narrativas, deixando de cabelos em pé, no ápice da exaustão, suas equipes de elaboração de Fake News para combater de pronto a verdade. Afinal de contas, são as mentiras, as inverdades, as distorções o carimbo oficial dessa licença para as grosserias, vigente no Brasil contemporâneo.

Portanto, mais do que uma questão político-partidária, essa é uma questão psico-comportamental. Valendo-se de características próprias à contemporaneidade, dentre elas as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), os negacionistas não só conseguiram terreno fértil para disseminar as suas ideologias e propagar os seus efeitos deletérios sobre o país, como, também, espaço para reafirmação da sua verdade idealizada.  

A ausência de uma percepção clara e contundente sobre esse movimento, postergou muito uma reação de contenção e dissolução desse movimento que fosse realmente eficaz. Daí a quantidade de danos sociais que o país vem convivendo! É preciso reconhecer, especialmente do ponto de vista das autoridades competentes, que houve sim, uma relativização quanto às Fake News e às violências reais e virtuais. E essa demora contribuiu para a legitimação da licença para a grosseria no país.

Entretanto, como eu sempre gosto de considerar, as conjunturas do mundo são implacáveis. Às vezes, elas não agem na velocidade temporal que nos parece necessária; mas, isso não significa que não estejam agindo. Na verdade, as mudanças, as metamorfoses sempre estiveram em curso! E o grande indicador disso é que a consciência sobre a dinâmica cotidiana foi despertada e as atenções estão mais ativas do que nunca.

De modo que a euforia da permissividade que a licença para a grosseria causou no país começa a dar sinais de arrefecimento. A paciência com certos hábitos e comportamentos se esgota pelo próprio nível de desgaste social que eles promovem. E a impaciência resultante desse cansaço se coloca mais pujante, mais convicta, mais ciente das obrigações e compromissos humanos e cidadãos.

Assim, antes do que se possa imaginar, devemos estar sob a vigência da licença para a civilidade. Vivendo no mundo real. Sem idealizações absurdas. Sem narcisismos egocêntricos. Sem distorções e manipulações da verdade. E aí, entenderemos que “Nada denuncia mais o grau de civilidade de um país e de um povo do que o modo de tratar a coisa pública e a coletividade” (Glória Kalil – jornalista).