Água
e sal. O gosto da desigualdade.
Por
Alessandra Leles Rocha
Como era de se esperar, a
desigualdade cobrou a fatura! Não foi surpresa a decisão do Supremo Tribunal
Federal (STF) sobre a suspensão do pagamento do piso salarial para a enfermagem
1. Os argumentos apontados pelos
ministros parecem eloquentes. Mas, só parecem. Porque, na verdade, eles omitem
a saga de uma história que se desenhou para que certas profissões no país
vivessem as agonias impostas pela desigualdade.
Na medida em que o Brasil nunca
se preocupou, de fato e de direito, nem com a construção de uma política
trabalhista mais justa, mais humanitária, mais digna para seus cidadãos, nem
com o desenvolvimento de uma política econômica saudável e próspera, é óbvio
que a desigualdade seguiria confortável. O não pensar e o não agir acabam
nisso!
E diante de uma crise econômica,
pela qual passa o país e o mundo, nesse momento, mais uma vez são
trabalhadores, como esses da enfermagem, os que mais sofrem com os impactos no
seu dia a dia. A insuficiência da sua remuneração, que conta a peregrinação de
inúmeros profissionais que precisam triplicar turnos para tentar equilibrar o orçamento
e as despesas, se torna muito mais insustentável, para não dizer completamente
desumana.
Essa é uma situação que coloca o
dedo em uma ferida secularmente aberta. Não dá para fechar os olhos e esquecer
de que o Brasil continua privilegiando os trabalhadores do topo da sua pirâmide
social com as melhores remunerações. Esse é um viés perverso da concentração de
renda no país e que só existe, porque há um interesse claro em que a
desigualdade socioeconômica não seja mitigada.
Há no pensamento da elite
brasileira a ideia de uma correlação direta entre redução da desigualdade e a
mobilidade social. E é justamente isso, o que justifica o empenho extremado de
diversas forças dessa elite para que não aconteçam transformações. A velha
herança colonial não quer a mistura entre os estratos sociais. Não quer dividir
os mesmos espaços. Não quer dividir o centro das atenções. Não quer ser
confrontada nos seus pseudopoderes. Não quer perder a sua hegemonia capital.
Basta ver as recentes notícias socioeconômicas
em torno do trabalho no Brasil. O quanto as relações trabalhistas estão sendo
massacradas pela precarização em diferentes formas e conteúdos 2. O quanto os salários foram achatados 3 e depois, consumidos pela inflação, que
retornou galopante ao cenário nacional. O trabalho não é mais a porta de
ascensão, é menos do que uma janela de sobrevivência.
Mas, é isso ou a indigência. Considerando
que as políticas públicas de amparo e assistência social foram transformadas em
projetos inconsistentes, insuficientes, mal planejados, que não alcançam
propósitos definidos e trazem uma insegurança social imensa, especialmente, aos
mais vulneráveis. O Mapa da Fome é a mais perfeita tradução desse movimento 4. Uma fome que forma uma corrente brutal
com o desabrigo, o desemprego, o desalento.
Sim, porque as ruas, as esquinas,
as praças, em todos o país, não estão repletas apenas de moradores habituais.
Hoje, elas são o retrato de famílias inteiras que perderam a luta pela
sobrevivência no mercado de trabalho e se encontram, muitas vezes, a mercê da
fé e da própria sorte. A sua cidadania foi reduzida à indignidade humana. E a
perda geracional que esse fenômeno promove é incalculável. Afinal, ali estão
crianças e adolescentes crescendo à margem de seus direitos fundamentais, sem
quaisquer perspectivas.
No fim das contas, é como
escreveu Bertolt Brecht, “Para quem tem
boa posição social, falar de comida é coisa baixa. É compreensível: eles já
comeram”. Nesse caso, é bem mais do que comida, é a desigualdade em todas
as suas mais angustiantes faces. A vida humana nunca esteve tão ranqueada entre
os que importam e os que não importam. Os que podem e os que não podem. Os que
merecem e os que não merecem. Os que têm acesso e os que não têm. Dizia Rui
Barbosa que “A miopia intelectual é a
mais constante geradora do egoísmo”, porque ela acaba nos conduzindo a
certeza de que “A justiça tardia nada
mais é do que injustiça institucionalizada”.
Enquanto as discussões em torno
de todas as camadas que compõem a desigualdade no país não forem exaustivamente
conduzidas à busca de uma solução minimamente razoável ao equilíbrio, havemos
de nos deparar com decisões que nos apequenam e nos constrangem como coletivo
social. Isso me remete imediatamente às palavras de Martin Luther king Jr., “Nunca se esqueça de que tudo o que Hitler
fez na Alemanha era legal”.
Por isso, “Eu não acredito em caridade. Eu acredito em solidariedade. Caridade é tão vertical: vai de cima para baixo. Solidariedade é horizontal: respeita a outra pessoa e aprende com o outro. A maioria de nós tem muito o que aprender com as outras pessoas” (Eduardo Galeano); sobretudo, como elas se mantêm em tempos de controvérsia e desafio. Aí, quem sabe, entenderemos o significado de que “A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo o lugar” (Martin Luther King Jr.).
1 https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/09/15/maioria-do-stf-vota-para-manter-suspenso-piso-enfermagem.ghtml
2 https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/09/13/alta-do-emprego-esta-concentrada-em-vagas-de-baixa-escolaridade-e-expoe-precarizacao-diz-dieese.ghtml