sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Água e sal. O gosto da desigualdade.


Água e sal. O gosto da desigualdade.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Como era de se esperar, a desigualdade cobrou a fatura! Não foi surpresa a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a suspensão do pagamento do piso salarial para a enfermagem 1. Os argumentos apontados pelos ministros parecem eloquentes. Mas, só parecem. Porque, na verdade, eles omitem a saga de uma história que se desenhou para que certas profissões no país vivessem as agonias impostas pela desigualdade.

Na medida em que o Brasil nunca se preocupou, de fato e de direito, nem com a construção de uma política trabalhista mais justa, mais humanitária, mais digna para seus cidadãos, nem com o desenvolvimento de uma política econômica saudável e próspera, é óbvio que a desigualdade seguiria confortável. O não pensar e o não agir acabam nisso!

E diante de uma crise econômica, pela qual passa o país e o mundo, nesse momento, mais uma vez são trabalhadores, como esses da enfermagem, os que mais sofrem com os impactos no seu dia a dia. A insuficiência da sua remuneração, que conta a peregrinação de inúmeros profissionais que precisam triplicar turnos para tentar equilibrar o orçamento e as despesas, se torna muito mais insustentável, para não dizer completamente desumana.

Essa é uma situação que coloca o dedo em uma ferida secularmente aberta. Não dá para fechar os olhos e esquecer de que o Brasil continua privilegiando os trabalhadores do topo da sua pirâmide social com as melhores remunerações. Esse é um viés perverso da concentração de renda no país e que só existe, porque há um interesse claro em que a desigualdade socioeconômica não seja mitigada.

Há no pensamento da elite brasileira a ideia de uma correlação direta entre redução da desigualdade e a mobilidade social. E é justamente isso, o que justifica o empenho extremado de diversas forças dessa elite para que não aconteçam transformações. A velha herança colonial não quer a mistura entre os estratos sociais. Não quer dividir os mesmos espaços. Não quer dividir o centro das atenções. Não quer ser confrontada nos seus pseudopoderes. Não quer perder a sua hegemonia capital.

Basta ver as recentes notícias socioeconômicas em torno do trabalho no Brasil. O quanto as relações trabalhistas estão sendo massacradas pela precarização em diferentes formas e conteúdos 2. O quanto os salários foram achatados 3 e depois, consumidos pela inflação, que retornou galopante ao cenário nacional. O trabalho não é mais a porta de ascensão, é menos do que uma janela de sobrevivência.

Mas, é isso ou a indigência. Considerando que as políticas públicas de amparo e assistência social foram transformadas em projetos inconsistentes, insuficientes, mal planejados, que não alcançam propósitos definidos e trazem uma insegurança social imensa, especialmente, aos mais vulneráveis. O Mapa da Fome é a mais perfeita tradução desse movimento 4. Uma fome que forma uma corrente brutal com o desabrigo, o desemprego, o desalento.

Sim, porque as ruas, as esquinas, as praças, em todos o país, não estão repletas apenas de moradores habituais. Hoje, elas são o retrato de famílias inteiras que perderam a luta pela sobrevivência no mercado de trabalho e se encontram, muitas vezes, a mercê da fé e da própria sorte. A sua cidadania foi reduzida à indignidade humana. E a perda geracional que esse fenômeno promove é incalculável. Afinal, ali estão crianças e adolescentes crescendo à margem de seus direitos fundamentais, sem quaisquer perspectivas.

No fim das contas, é como escreveu Bertolt Brecht, “Para quem tem boa posição social, falar de comida é coisa baixa. É compreensível: eles já comeram”. Nesse caso, é bem mais do que comida, é a desigualdade em todas as suas mais angustiantes faces. A vida humana nunca esteve tão ranqueada entre os que importam e os que não importam. Os que podem e os que não podem. Os que merecem e os que não merecem. Os que têm acesso e os que não têm. Dizia Rui Barbosa que “A miopia intelectual é a mais constante geradora do egoísmo”, porque ela acaba nos conduzindo a certeza de que “A justiça tardia nada mais é do que injustiça institucionalizada”.

Enquanto as discussões em torno de todas as camadas que compõem a desigualdade no país não forem exaustivamente conduzidas à busca de uma solução minimamente razoável ao equilíbrio, havemos de nos deparar com decisões que nos apequenam e nos constrangem como coletivo social. Isso me remete imediatamente às palavras de Martin Luther king Jr., “Nunca se esqueça de que tudo o que Hitler fez na Alemanha era legal”.

Por isso, “Eu não acredito em caridade. Eu acredito em solidariedade. Caridade é tão vertical: vai de cima para baixo. Solidariedade é horizontal: respeita a outra pessoa e aprende com o outro. A maioria de nós tem muito o que aprender com as outras pessoas” (Eduardo Galeano); sobretudo, como elas se mantêm em tempos de controvérsia e desafio. Aí, quem sabe, entenderemos o significado de que “A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo o lugar” (Martin Luther King Jr.).