sábado, 17 de setembro de 2022

Sobre legados e rejeições...


Sobre legados e rejeições...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Mais do que nunca as pesquisas eleitorais têm sido esmiuçadas ao extremo, com vistas a traduzir um cenário de tantos vieses de atipicidade como o atual. E um dos pontos que vem perturbando, de certa forma, o sossego dos analistas, é o fato de que se estabeleceu uma disputa entre duas gestões temporalmente distintas. Algo que é no mínimo curioso, embora não seja difícil de compreender! Mais uma vez é a história que elucida tudo muito bem.

Por mais tentativas que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenha empenhado antes de lograr êxito nas eleições de 2002, no contexto político brasileiro parecia mesmo impossível que alguém, fora da bolha da direita e de seus matizes, conseguisse chegar à Presidência da República.

A providente construção narrativa das elites nacionais feita no sentido de estabelecer uma associação entre a defesa dos interesses e das necessidades das camadas mais vulneráveis e desassistidas e o “comunismo”, causava extremo desconforto e afugentava um número bastante expressivo de eleitores, sem que houvesse da parte deles uma reflexão crítica apropriada a esse respeito.

É bom que se diga que não foi apenas a força do imperialismo norte-americano sobre o Brasil, após a 2ª Guerra Mundial, que teceu essa repulsa a ideia do comunismo.  Aliás, o discurso anticomunista emergiu a partir dos acontecimentos da Revolução Russa, em 1917, e depois ganhou força no auge da Guerra Fria, sempre caindo como uma luva para os interesses da elite brasileira em não dar vez e voz aos demais estratos da pirâmide social, mantendo todas as suas regalias e privilégios constituídos a partir da herança colonial.

Não é à toa que qualquer um que se prontifique a sair em defesa contra as desigualdades socioeconômicas no país é rotulado como simpatizante do “comunismo”. O que deixa claro que os valores humanitários, no Brasil, jamais conseguiram romper a blindagem ideológica dos interesses capitais do minoritário grupo detentor dos poderes. Foi assim, na monarquia. É assim, na república. Porque em suas mentes não há razões para mudar a relação social com as camadas menos favorecidas e desprivilegiadas e, portanto, impactar a dinâmica das relações econômicas.  

Esclarecidos esses aspectos, como seria inevitável pelas próprias forças conjunturais, eis que “água mole em pedra dura tanto bate até que fura” e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, enfim, chegou lá. Elegeu-se Presidente da República Federativa do Brasil. O que parecia impossível aos olhos da elite nacional, aconteceu. O lugar de fala das minorias havia sido conquistado. Os estratos mais vulneráveis e desassistidos seriam finalmente privilegiados.

Portanto, essa foi uma ruptura profunda com diversas crenças, valores e princípios da identidade nacional que, até então, mostrava-se tendenciosamente inabalável aos domínios elitistas. Um verdadeiro divisor de águas? Sim. Como se a partir de 2003, a história brasileira pudesse ser contada em antes e depois da ascensão popular. Uma geração inteira nasceu sob um novo horizonte social e se percebeu cidadã do país. O que aconteceu foi a desconstrução da velha cidadania, da inacessibilidade dos direitos constitucionais. E isso é muito forte, muito impactante, inesquecível.  

Queiram ou não admitir a sociedade brasileira não foi mais a mesma, desde então. Daí a disputa eleitoral se desenhar da forma com a qual vem se apresentando. Ainda que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenha estado distante da visibilidade política direta, durante alguns anos, não é esse o ponto. É o legado do seu pioneirismo que não se perdeu e nem poderia. Lembre-se do disse Albert Einstein, “Algo só é impossível até que alguém duvide e acabe por provar o contrário”.  Pois é, ele provou.

E esse fato levou o país para uma outra dimensão de consciência. Quem estava a margem das discussões, das decisões, passou a se integrar e a ocupar o seu lugar de direito na cidadania nacional. Então, não cabe, nessas alturas do campeonato, querer ou acreditar que essas pessoas iriam se abster do seu protagonismo depois de terem nas mãos a oportunidade de comparar duas realidades brasileiras tão antagônicas. Isso explica porque “Se em um dia de tristezas, tiveres de escolher entre o mundo e o amor... escolhas o amor, e com ele conquiste o mundo! ” (Albert Einstein).

A atipicidade dessas eleições, então, pode ser resumida pelas palavras de George Orwell, ou seja, “Quem controla o passado dirige o futuro. Quem dirige o futuro conquista o passado”. O Brasil de 2003 não vai ser apagado. Seus registros estão além das páginas da história. Estão impressos na vida de milhões de pessoas que conquistaram o direito de serem brasileiros, segundo a Constituição Federal de 1988. O que aconteceu de bom, de extraordinário, no cotidiano delas não desaparece assim, num piscar de olhos, num agrado oportunista qualquer, numa dúzia de palavras sem sentido.

Por isso, as palavras que melhor cabem na reflexão desse contexto sejam as seguintes, “Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas. Se você se conhece, mas não conhece o inimigo, para cada vitória ganha sofrerá também uma derrota. Se você não conhece nem o inimigo e nem a si mesmo, perderá todas as batalhas” (Sun Tzu) 1. Traduzindo em miúdos, não entender isso representa a obrigação de enfrentar todas e quaisquer rejeições.  



1 Antigo general militar, estrategista e filósofo chinês da Dinastia Zhou, 543-495 a.C.