sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Quem disse que o riso não chora?


Quem disse que o riso não chora?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quem disse que o riso não chora? Chora sim. Chora quando uma lágrima teimosa condensa todas as melhores lembranças e memórias de si mesmo, porque sabe que ali é o ponto final. Acabou. Não haverá novamente. Haverá apenas o que resistiu impregnado no tempo material e imaterial.  

Certamente, para algumas gerações mais do que para outras, isso faz um imenso sentido. Simplesmente, porque elas, de algum modo, tiveram sua capacidade mais genuína de rir lapidada por um ser humano incrível, popularmente conhecido como Jô Soares 1.

Não se manteve restrito o seu talento ao exercício das artes; mas, nessa capacidade única, a qual talvez nem ele mesmo se dava conta, que era fazer do riso um mecanismo de reflexão. Um jeito lúdico de olhar para os extremos da vida e entender além das próprias entrelinhas.

Daí o fato de ele ter letrado milhões de brasileiros e brasileiras quanto a sua própria identidade cidadã, a sua humanidade, através de suas personagens, de suas entrevistas, de seus livros. A cada frouxo de risos, uma lição atingia o alvo da consciência de um inconsciente coletivo, tão constantemente alvejado por forças de vigilância e controle social.   

Como ele sabia olhar para ver o brasileiro na sua brasilidade mais intensa e profunda, suas personagens eram precisamente diretas. E mesmo quando se transmutou dos programas humorísticos para o Talk Show, ele permanecia fazendo do riso a sua arma mais potente para dialogar de maneira didática com o telespectador.

Em décadas, ele jamais se perdeu na possibilidade de dissociar a realidade do riso. Ele sabia que o riso não existia só na ilusão, não se nutria só do imaginário. Ele entendia que o riso era a lente fundamental para se enxergar com precisão as minúcias do cotidiano, por mais duro, áspero e cruel que ele pudesse se configurar, sem criar para tanto um ranço de banalização, de normalização, de indiferença.

Como se o riso tivesse mesmo a capacidade de decompor o prisma da realidade e trazer à tona impressões e percepções que com os olhos marejados, a alma embargada pela desilusão e/ou o sofrimento, não seria possível de se ver.

Seu papel principal era de um verdadeiro domador das palavras. Como poucos, ele sabia dizer o mais difícil com sua particular suavidade apimentada de ironia. Para isso, ele contava com a preparação dos corações e mentes através de um sorriso que se desdobraria em milhares de risos. Algo que anestesiava quaisquer possibilidades de um impacto ruim; mas, era incapaz de entorpecer os sentidos.

Sim, porque a conexão era imediata. Não dava para titubear a compreensão sobre o que ele estava dizendo ou querendo dizer. Estava ali, na sutileza firme e direta da sua linguagem verbal e não verbal. Afinal de contas, Jô também se valia dos gestos, das expressões faciais, do corpo para dar o seu recado.

Egoisticamente, não queria que essa fonte de sabedoria algum dia secasse. Estava sempre à espera de mais. Tinha crescido aprendendo a esperar por mais de Jô Soares, do seu vasto lastro de possibilidades artísticas e culturais. Mas, o que fazer se a vida é assim!

Por isso, o riso chora. Sabe, lá no fundo, que não é possível a garantia da imortalidade materializada no indivíduo. A partida do homem é sempre o voo que consolida a imortalidade do legado, da obra, das memórias, de tudo que foi construído na sua existência; mas é só. Sendo assim, o riso sabe que sua chama perdeu parte do brilho, da intensidade, do calor, pois, o vazio da presença humana tem dessas coisas.

No entanto, perder parte não é perder-se por inteiro. Ainda bem! Pelo menos isso! O que existiu de concreto permanece guardado, especialmente, para quem se permitiu aprender a ser um pouco mais gente à luz de Jô Soares. Em muitos de nós, queiram ou não admitir, haverá sempre um traço desse aprendizado que faz do riso algo bem maior do que uma expressão, para se tornar um estopim da análise, da criticidade e da reflexão nacional. 

E assim, entre as lágrimas que o riso jamais gostaria de verter, conseguimos a precisão do entendimento das palavras de João Guimarães Rosa de que “As pessoas não morrem, ficam encantadas... a gente morre é para provar que viveu”. No caso de Jô Soares, ele nem precisaria disso! Porque morrer só serviu como uma contraprova de uma existência extraordinariamente incrível!