quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Olhe para cima!


Olhe para cima!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Como sempre digo, não adianta negar o que está bem diante do nariz porque a negação, qualquer que seja ela, não muda os fatos. A notícia de que “Lixo espacial cai na Austrália e vira alvo de investigação. ” 1 é um bom motivo para alavancar essa reflexão. Afinal de contas, a postura assumida pela sociedade a partir das suas relações de consumo precisa de uma desconstrução e uma ressignificação, com vistas a caber na realidade contemporânea do mundo.

Desde a segunda metade do século XVIII, a raça humana vem sendo moldada pelos apelos do consumo trazidos pela Revolução Industrial. Inebriados pela oferta de bens, produtos e serviços emergidos da produção em larga escala, as pessoas deixaram as prioridades de lado para se renderem ao novo que surgia a cada piscar de olhos, sem quaisquer preocupações se esse movimento poderia resultar em consequências desastrosas para a sociedade.

O lixo que, até então, era basicamente orgânico começou a sua saga de diversificação e demasiada ampliação quantitativa, passando a constituir presença constante na insalubridade urbana, no fomento de epidemias, na mensuração das desigualdades sociais, ... tudo porque, doutrinados pelo verbo “consumir”, os seres humanos passaram a se entender socialmente pela capacidade de aquisição. O status vinculado ao TER, não mais, ao SER.

De modo que se chegou a um certo ponto do desenvolvimento social, que ele ultrapassou as fronteiras do planeta para alcançar o espaço sideral. Mais uma vez, encantados e hipnotizados pelos feitos da corrida espacial, ocorrida entre as décadas de 50 e 70, em tempos de Guerra Fria, os pobres mortais humanos sequer cogitaram a possibilidade de que aqueles artefatos iriam se tornar lixo espacial.

Pois é, faltou a básica analogia de pensar que se os automóveis se transformam em sucatas inúteis com o passar do tempo e o avanço tecnológico, isso inevitavelmente aconteceria com os foguetes, cápsulas e satélites lançados ao espaço. A efervescência dos discursos e das narrativas vaidosas em torno da capacidade criativa, inventiva, engenhosa da humanidade fez com que todos se perdessem na imensidão do céu, com olhos fixos em um deslumbramento futurista que só tinha espaço para o lado bonito da questão.

Mas, como na vida nada é de graça e para toda ação há milhares de consequências e desdobramentos, depois de infestar o planeta dos mais terríveis tipos de resíduos e efluentes, temos a certeza que o mesmo propósito foi alcançado no espaço. E do mesmo modo que aqui, lá ele também não se decompõe, fica vagando, vagando, até ser capturado pela força de atração de algum planeta, como acontece com a Terra. Quem diria!

A estratégia do negar, do invisibilizar, não funcionou! Só que, agora, não bastassem as toneladas de resíduos e de efluentes despejados nos mais recônditos lugares do planeta, o ser humano está à mercê da imprevisibilidade em relação a entrada do seu lixo espacial na órbita da Terra. Ninguém sabe a dimensão do que pode cair, quando pode cair, onde pode cair. Por enquanto os episódios aconteceram em áreas de baixíssima densidade populacional; mas, ...

A questão do lixo, na concepção que ele compreende, é um problema social, é uma criação do próprio ser humano. Lixo não é uma mera questão de consumo, como tentam fazer parecer. A verdade absoluta é que ele é fruto da vaidade humana, da sua prepotência, da sua imprevidência, da sua ganância. E o ponto nevrálgico disso tudo é que depois de criado pelo ser humano, este não tem sequer a intenção de se responsabilizar a respeito. E sempre que penso sobre isso, me recordo da leitura de Frankenstein ou o Prometeu Moderno 2, de Mary Shelley.

Afinal, como escreveu a autora, “Não pode a busca do saber ser levada à conta de exceção a essa regra. Se o estudo, por qualquer forma, tende a debilitar nossas afeições, nosso gosto pelos prazeres simples, trata-se então de uma atividade ilícita, que não se ajusta ao espírito humano. Se essa norma fosse sempre observada, se todo homem estabelecesse um limite entre seus misteres e sua vida afetiva, a Grécia não teria sido escravizada, César teria poupado sua pátria, a América teria sido colonizada sem maiores conflitos, e os impérios dos astecas e dos incas não teriam sido aniquilados” (p.54).

E dessa percepção em torno do desequilíbrio entre o SER e o TER, gerado a partir do afã científico e tecnológico da personagem Victor Frankenstein, tem-se as seguintes palavras, “Senti o gosto amargo da decepção. Sonhos que me haviam embalado por tanto tempo eram, repentinamente, transformados numa realidade infernal” (p.57). Exatamente o que temos, na contemporaneidade, diante da relação entre o potencial cientifico e tecnológico e a preservação socioambiental. A atemporalidade da linguagem como um espelho para um novo Narciso.

Vale ressaltar que as notícias envolvendo o lixo espacial colocam, de certa forma, “água no chope” de muita gente por aí, criando um certo obstáculo, talvez, para dar materialidade ao texto de Drummond intitulado “O Homem, as viagens” 3, o qual dizia com todas as letras a intenção do ser humano em desbravar o espaço para não se comprometer com as próprias responsabilidades inerentes a sua condição existencial. Mas, agora, sabendo que a sua displicência voluntária, a sua negligência e a sua irresponsabilidade já foram tão longe, a empreitada parece ter perdido o sentido, não é mesmo?

Afinal, você acaba de ser arrebatado pela certeza de que não são só as vias públicas, os rios, os mares, as matas, os parques, as florestas, que estão repletos de lixo. Esses lugares que você faz tanta questão de não dar a menor importância! O perigo não está só no raio de visão dos seus olhos. É preciso olhar para cima! Dessa vez, não é um cometa, não é um pássaro, não é um avião, não é o Super-Homem, é somente lixo espacial vindo em direção à Terra! Que pode causar estrago! Que pode ferir, ou até matar, alguém! Já pensou? Então, é bom começar a mudar seus conceitos.



2 SHELLEY, M. Frankenstein ou o Prometeu Moderno. Traduzido por Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2011. 244p. (Edição Especial)