Olhe
para cima!
Por
Alessandra Leles Rocha
Como sempre digo, não adianta negar
o que está bem diante do nariz porque a negação, qualquer que seja ela, não
muda os fatos. A notícia de que “Lixo
espacial cai na Austrália e vira alvo de investigação. ” 1 é um bom motivo para alavancar essa reflexão.
Afinal de contas, a postura assumida pela sociedade a partir das suas relações
de consumo precisa de uma desconstrução e uma ressignificação, com vistas a
caber na realidade contemporânea do mundo.
Desde a segunda metade do século
XVIII, a raça humana vem sendo moldada pelos apelos do consumo trazidos pela
Revolução Industrial. Inebriados pela oferta de bens, produtos e serviços
emergidos da produção em larga escala, as pessoas deixaram as prioridades de
lado para se renderem ao novo que surgia a cada piscar de olhos, sem quaisquer
preocupações se esse movimento poderia resultar em consequências desastrosas
para a sociedade.
O lixo que, até então, era basicamente
orgânico começou a sua saga de diversificação e demasiada ampliação
quantitativa, passando a constituir presença constante na insalubridade urbana,
no fomento de epidemias, na mensuração das desigualdades sociais, ... tudo
porque, doutrinados pelo verbo “consumir”, os seres humanos passaram a se entender
socialmente pela capacidade de aquisição. O status vinculado ao TER, não mais,
ao SER.
De modo que se chegou a um certo
ponto do desenvolvimento social, que ele ultrapassou as fronteiras do planeta
para alcançar o espaço sideral. Mais uma vez, encantados e hipnotizados pelos
feitos da corrida espacial, ocorrida entre as décadas de 50 e 70, em tempos de
Guerra Fria, os pobres mortais humanos sequer cogitaram a possibilidade de que
aqueles artefatos iriam se tornar lixo espacial.
Pois é, faltou a básica analogia
de pensar que se os automóveis se transformam em sucatas inúteis com o passar
do tempo e o avanço tecnológico, isso inevitavelmente aconteceria com os
foguetes, cápsulas e satélites lançados ao espaço. A efervescência dos
discursos e das narrativas vaidosas em torno da capacidade criativa, inventiva,
engenhosa da humanidade fez com que todos se perdessem na imensidão do céu, com
olhos fixos em um deslumbramento futurista que só tinha espaço para o lado
bonito da questão.
Mas, como na vida nada é de graça
e para toda ação há milhares de consequências e desdobramentos, depois de
infestar o planeta dos mais terríveis tipos de resíduos e efluentes, temos a
certeza que o mesmo propósito foi alcançado no espaço. E do mesmo modo que
aqui, lá ele também não se decompõe, fica vagando, vagando, até ser capturado
pela força de atração de algum planeta, como acontece com a Terra. Quem diria!
A estratégia do negar, do
invisibilizar, não funcionou! Só que, agora, não bastassem as toneladas de resíduos
e de efluentes despejados nos mais recônditos lugares do planeta, o ser humano
está à mercê da imprevisibilidade em relação a entrada do seu lixo espacial na
órbita da Terra. Ninguém sabe a dimensão do que pode cair, quando pode cair,
onde pode cair. Por enquanto os episódios aconteceram em áreas de baixíssima densidade
populacional; mas, ...
A questão do lixo, na concepção
que ele compreende, é um problema social, é uma criação do próprio ser humano. Lixo
não é uma mera questão de consumo, como tentam fazer parecer. A verdade absoluta
é que ele é fruto da vaidade humana, da sua prepotência, da sua imprevidência,
da sua ganância. E o ponto nevrálgico disso tudo é que depois de criado pelo
ser humano, este não tem sequer a intenção de se responsabilizar a respeito. E
sempre que penso sobre isso, me recordo da leitura de Frankenstein ou o Prometeu Moderno 2,
de Mary Shelley.
Afinal, como escreveu a autora, “Não pode a busca do saber ser levada à
conta de exceção a essa regra. Se o estudo, por qualquer forma, tende a
debilitar nossas afeições, nosso gosto pelos prazeres simples, trata-se então
de uma atividade ilícita, que não se ajusta ao espírito humano. Se essa norma
fosse sempre observada, se todo homem estabelecesse um limite entre seus
misteres e sua vida afetiva, a Grécia não teria sido escravizada, César teria poupado
sua pátria, a América teria sido colonizada sem maiores conflitos, e os
impérios dos astecas e dos incas não teriam sido aniquilados” (p.54).
E dessa percepção em torno do desequilíbrio
entre o SER e o TER, gerado a partir do afã científico e tecnológico da
personagem Victor Frankenstein, tem-se as seguintes palavras, “Senti o gosto amargo da decepção. Sonhos que
me haviam embalado por tanto tempo eram, repentinamente, transformados numa
realidade infernal” (p.57). Exatamente o que temos, na contemporaneidade,
diante da relação entre o potencial cientifico e tecnológico e a preservação
socioambiental. A atemporalidade da linguagem como um espelho para um novo
Narciso.
Vale ressaltar que as notícias
envolvendo o lixo espacial colocam, de certa forma, “água no chope” de muita gente por aí, criando um certo obstáculo,
talvez, para dar materialidade ao texto de Drummond intitulado “O Homem, as viagens” 3,
o qual dizia com todas as letras a intenção do ser humano em desbravar o
espaço para não se comprometer com as próprias responsabilidades inerentes a
sua condição existencial. Mas, agora, sabendo que a sua displicência
voluntária, a sua negligência e a sua irresponsabilidade já foram tão longe, a
empreitada parece ter perdido o sentido, não é mesmo?
Afinal, você acaba de ser arrebatado pela certeza de que não são só as vias públicas, os rios, os mares, as matas, os parques, as florestas, que estão repletos de lixo. Esses lugares que você faz tanta questão de não dar a menor importância! O perigo não está só no raio de visão dos seus olhos. É preciso olhar para cima! Dessa vez, não é um cometa, não é um pássaro, não é um avião, não é o Super-Homem, é somente lixo espacial vindo em direção à Terra! Que pode causar estrago! Que pode ferir, ou até matar, alguém! Já pensou? Então, é bom começar a mudar seus conceitos.
1 https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2022/08/02/lixo-espacial-da-spacex-cai-na-australia-e-vira-alvo-de-investigacao.htm
2 SHELLEY, M.
Frankenstein ou o Prometeu Moderno. Traduzido por
Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2011. 244p. (Edição Especial)