sábado, 20 de agosto de 2022

O Brasil entre a esmola e a transferência de renda


O Brasil entre a esmola e a transferência de renda

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É muito importante que as pessoas entendam que não é possível dissociar o curso histórico das análises sociais. Afinal, a vida não pode ser vista pela perspectiva de fotografias. Ela é um filme, longo e contínuo, no qual desconsiderar qualquer pedaço da história é comprometer o achado de seus resultados parciais.

Esclarecido esse aspecto, esta é a razão pela qual aponto sempre, nos meus textos, uma conexão com o período colonial brasileiro. Ainda que passados mais de 500 anos, o arraigamento às estruturas que fundamentaram a história nacional, dentro desse contexto, permanecem reverberando o seu ranço sobre a sociedade contemporânea.

Haja vista quem são os devotados simpatizantes da direita brasileira, ou seja, os descendentes diretos da nobreza e da aristocracia colonial. Isso explica porque não são raros os momentos em que a história se repete com tamanha fidedignidade, reafirmando mazelas que já poderiam ter sido devidamente resolvidas e superadas.

Pois é, poderia; mas, não foi! Exemplos não faltam a esse respeito. Distribuição de renda desigual. Obstaculização a mobilidade social. Racismo. Intolerância Religiosa. Trabalho análogo à escravidão. Organização patriarcal. Desigualdade educacional. ... Daí o país estar sempre na contramão da história, do desenvolvimento, do progresso, da consolidação do seu próprio protagonismo.

Então, é fundamental trazer essa reflexão à tona; sobretudo, em tempos de eleição. Recentemente, por exemplo, o país foi impactado por uma série de benesses de puro oportunismo de ocasião, as quais podem sim, ser definidas dessa maneira se confrontadas com a total inação e negligência que se operou, em relação à construção de políticas públicas, ao longo da atual gestão governamental.

A questão é que esse tipo de bondade tem um preço alto demais. Primeiro, porque nasce de um imediatismo imprevidente e irracional que carece do mais absoluto planejamento e critério, onerando irresponsavelmente as contas públicas a perder de vista. Segundo, porque tem na sua gênese um caráter pejorativo de esmola, de donativo, de agrado, que impõe nas suas entrelinhas a gratidão subserviente, que nesse caso se traduziria no voto. Por fim, porque ela é como chuva de verão que dá e logo passa, mal chega a molhar.

De modo que esse movimento socioeconômico, no frigir dos ovos, não diz nada para coisa nenhuma. Aliás, diz sim. Diz às camadas mais privilegiadas, ou em melhor situação econômica, que elas é quem pagarão por essa conta, estimulando o ciclo do ódio colonial aporofóbico no país. Um ciclo que culpabiliza com total severidade as camadas mais vulneráveis e desassistidas pelo seu próprio infortúnio social.

Curioso, não é? Não aparece ninguém da direita, nessas horas, para fazer mea-culpa! E deveriam! O que não faltam são notícias e mais notícias demonstrando, por a mais b, como o atual governo, contando com o total apoio dessas pessoas, conseguiu em quatro anos devolver o país ao mapa da fome, ao baixo desenvolvimento econômico, à precarização do trabalho, a uma inflação de dois dígitos, etc.etc.etc.

Pois é, não foi culpa das camadas mais vulneráveis e desassistidas a reafirmação do seu infortúnio social! O que elas poderiam fazer?  Elas não têm poder. Elas não têm dinheiro. Elas não são donas dos meios de produção. Elas não fazem as leis. São apenas peças no imenso tabuleiro da sociedade, manipuladas à vontade de uns e outros, à mercê da própria sorte. Infelizmente, uma realidade que não se resume ao Brasil; mas, a tantos outros países de histórico colonial.

Estamos, então, diante de uma questão extremamente desumana e complexa, cujas raízes parecem longe de serem extirpadas. No entanto, isso não significa um sinal de clemência ou absolvição para a inação governamental. Muito pelo contrário. Trata-se da consciência da impossibilidade de agir nesse caso sem método, sem planejamento, sem organização, dada a dimensão e a extensão das demandas.

Daí o ponto de partida serem os programas de transferência de renda. Pois é, eles tratam da questão da pobreza e da extrema pobreza a partir da transferência direta de recursos, embasada na condicionalidade de compromissos que as famílias assumem em relação à Educação, Saúde e Assistência Social; bem como, de programas complementares que promovem o desenvolvimento das famílias para a superação do contexto de vulnerabilidade.  

Portanto, eles não são gastos, são investimentos. Eles retroalimentam positivamente o ciclo econômico. Um ser humano que tem efetivada a sua acessibilidade aos direitos sociais, é um agente de transformação do país. Ele produz mais. Ele consome mais. Ele sonha mais. Ele aspira mais.

Isso quer dizer que os programas de transferência de renda não são o dinheiro pelo dinheiro. Mas, o dinheiro como via de estruturação e reorganização para inserção digna do cidadão à sociedade, a fim de que ele construa um caminho de autonomia e independência do próprio programa. Ele pegue pelas mãos as rédeas da sua cidadania.

Porém, isso só faz sentido no contexto de uma economia estável e distante dos rompantes inflacionários que consomem os recursos e os conduzem a mais completa insuficiência e ineficiência. Lamentavelmente, esse não é o retrato do Brasil atual.

Além da crise econômica interna, gerada por uma condução equivocada da Economia, as repercussões internacionais comprometem a estabilização socioeconômica, em curto prazo, por aqui. Como sabemos, a Pandemia deslocou a realidade global para um novo eixo e, antes de qualquer retomada, foi novamente impactada pela Guerra na Ucrânia e todos os seus desdobramentos.

Apesar dos pesares, isso não quer dizer, em hipótese alguma, que a ideia dos programas de transferência de renda não continue sendo de extrema importância. Certamente, precisarão de ajustes e balizamentos mais realistas para serem colocados em prática; mas, precisarão existir para não ampliar e aprofundar ainda mais o contexto de indignidade humana de milhares de cidadãos.

Essa é uma dívida histórica que o Brasil precisa pagar a uma gigantesca massa da sua população. Uma dívida que deveria envergonhar, constranger, humilhar, na medida em que estampa a deformidade ética e moral deixada pela herança colonial do país para quem quiser ver.

De modo que não adianta participar desse ou daquele evento global. Não adianta ser signatário desse ou daquele documento internacional e depois ratificá-lo. Palavras. Discursos. Narrativas. Não convencem. Não encobrem os pecados.

As conjunturas contemporâneas trabalham cada vez mais com a exigência de uma excelência nas ações, nos compromissos, nas atitudes, nos comportamentos. O tempo urge e afirma que as vidas humanas importam. Porque o mundo sem pessoas, na sua mais ampla diversidade, é árido, é improdutivo.

Então, já passou da hora de fazer os recursos econômicos circularem com mais igualdade e equidade a fim de garantir mais do que sobrevivência; mas, a existência de milhões de seres humanos. Uma existência pautada em todos os pilares fundamentais da dignidade humana. Afinal, como escreveu o filósofo alemão, Friedrich Nietzsche, “A desigualdade dos direitos é a primeira condição para que haja direitos”.