O
Brasil entre a esmola e a transferência de renda
Por
Alessandra Leles Rocha
É muito importante que as pessoas
entendam que não é possível dissociar o curso histórico das análises sociais. Afinal,
a vida não pode ser vista pela perspectiva de fotografias. Ela é um filme,
longo e contínuo, no qual desconsiderar qualquer pedaço da história é
comprometer o achado de seus resultados parciais.
Esclarecido esse aspecto, esta é a
razão pela qual aponto sempre, nos meus textos, uma conexão com o período
colonial brasileiro. Ainda que passados mais de 500 anos, o arraigamento às
estruturas que fundamentaram a história nacional, dentro desse contexto, permanecem
reverberando o seu ranço sobre a sociedade contemporânea.
Haja vista quem são os devotados
simpatizantes da direita brasileira, ou seja, os descendentes diretos da
nobreza e da aristocracia colonial. Isso explica porque não são raros os
momentos em que a história se repete com tamanha fidedignidade, reafirmando
mazelas que já poderiam ter sido devidamente resolvidas e superadas.
Pois é, poderia; mas, não foi! Exemplos
não faltam a esse respeito. Distribuição de renda desigual. Obstaculização a
mobilidade social. Racismo. Intolerância Religiosa. Trabalho análogo à
escravidão. Organização patriarcal. Desigualdade educacional. ... Daí o país
estar sempre na contramão da história, do desenvolvimento, do progresso, da
consolidação do seu próprio protagonismo.
Então, é fundamental trazer essa
reflexão à tona; sobretudo, em tempos de eleição. Recentemente, por exemplo, o
país foi impactado por uma série de benesses de puro oportunismo de ocasião, as
quais podem sim, ser definidas dessa maneira se confrontadas com a total inação
e negligência que se operou, em relação à construção de políticas públicas, ao
longo da atual gestão governamental.
A questão é que esse tipo de
bondade tem um preço alto demais. Primeiro, porque nasce de um imediatismo
imprevidente e irracional que carece do mais absoluto planejamento e critério,
onerando irresponsavelmente as contas públicas a perder de vista. Segundo,
porque tem na sua gênese um caráter pejorativo de esmola, de donativo, de
agrado, que impõe nas suas entrelinhas a gratidão subserviente, que nesse caso
se traduziria no voto. Por fim, porque ela é como chuva de verão que dá e logo
passa, mal chega a molhar.
De modo que esse movimento socioeconômico,
no frigir dos ovos, não diz nada para coisa nenhuma. Aliás, diz sim. Diz às
camadas mais privilegiadas, ou em melhor situação econômica, que elas é quem
pagarão por essa conta, estimulando o ciclo do ódio colonial aporofóbico no
país. Um ciclo que culpabiliza com total severidade as camadas mais vulneráveis
e desassistidas pelo seu próprio infortúnio social.
Curioso, não é? Não aparece
ninguém da direita, nessas horas, para fazer mea-culpa! E deveriam! O que não
faltam são notícias e mais notícias demonstrando, por a mais b, como o atual
governo, contando com o total apoio dessas pessoas, conseguiu em quatro anos
devolver o país ao mapa da fome, ao baixo desenvolvimento econômico, à
precarização do trabalho, a uma inflação de dois dígitos, etc.etc.etc.
Pois é, não foi culpa das camadas
mais vulneráveis e desassistidas a reafirmação do seu infortúnio social! O que
elas poderiam fazer? Elas não têm poder.
Elas não têm dinheiro. Elas não são donas dos meios de produção. Elas não fazem
as leis. São apenas peças no imenso tabuleiro da sociedade, manipuladas à
vontade de uns e outros, à mercê da própria sorte. Infelizmente, uma realidade
que não se resume ao Brasil; mas, a tantos outros países de histórico colonial.
Estamos, então, diante de uma
questão extremamente desumana e complexa, cujas raízes parecem longe de serem
extirpadas. No entanto, isso não significa um sinal de clemência ou absolvição
para a inação governamental. Muito pelo contrário. Trata-se da consciência da
impossibilidade de agir nesse caso sem método, sem planejamento, sem organização,
dada a dimensão e a extensão das demandas.
Daí o ponto de partida serem os programas
de transferência de renda. Pois é, eles tratam da questão da pobreza e da
extrema pobreza a partir da transferência direta de recursos, embasada na condicionalidade
de compromissos que as famílias assumem em relação à Educação, Saúde e Assistência
Social; bem como, de programas complementares que promovem o desenvolvimento
das famílias para a superação do contexto de vulnerabilidade.
Portanto, eles não são gastos,
são investimentos. Eles retroalimentam positivamente o ciclo econômico. Um ser
humano que tem efetivada a sua acessibilidade aos direitos sociais, é um agente
de transformação do país. Ele produz mais. Ele consome mais. Ele sonha mais. Ele
aspira mais.
Isso quer dizer que os programas
de transferência de renda não são o dinheiro pelo dinheiro. Mas, o dinheiro
como via de estruturação e reorganização para inserção digna do cidadão à
sociedade, a fim de que ele construa um caminho de autonomia e independência do
próprio programa. Ele pegue pelas mãos as rédeas da sua cidadania.
Porém, isso só faz sentido no
contexto de uma economia estável e distante dos rompantes inflacionários que
consomem os recursos e os conduzem a mais completa insuficiência e ineficiência.
Lamentavelmente, esse não é o retrato do Brasil atual.
Além da crise econômica interna,
gerada por uma condução equivocada da Economia, as repercussões internacionais
comprometem a estabilização socioeconômica, em curto prazo, por aqui. Como sabemos,
a Pandemia deslocou a realidade global para um novo eixo e, antes de qualquer
retomada, foi novamente impactada pela Guerra na Ucrânia e todos os seus
desdobramentos.
Apesar dos pesares, isso não quer
dizer, em hipótese alguma, que a ideia dos programas de transferência de renda não
continue sendo de extrema importância. Certamente, precisarão de ajustes e
balizamentos mais realistas para serem colocados em prática; mas, precisarão
existir para não ampliar e aprofundar ainda mais o contexto de indignidade
humana de milhares de cidadãos.
Essa é uma dívida histórica que o
Brasil precisa pagar a uma gigantesca massa da sua população. Uma dívida que
deveria envergonhar, constranger, humilhar, na medida em que estampa a
deformidade ética e moral deixada pela herança colonial do país para quem quiser
ver.
De modo que não adianta
participar desse ou daquele evento global. Não adianta ser signatário desse ou
daquele documento internacional e depois ratificá-lo. Palavras. Discursos.
Narrativas. Não convencem. Não encobrem os pecados.
As conjunturas contemporâneas trabalham
cada vez mais com a exigência de uma excelência nas ações, nos compromissos,
nas atitudes, nos comportamentos. O tempo urge e afirma que as vidas humanas
importam. Porque o mundo sem pessoas, na sua mais ampla diversidade, é árido, é
improdutivo.
Então, já passou da hora de fazer os recursos econômicos circularem com mais igualdade e equidade a fim de garantir mais do que sobrevivência; mas, a existência de milhões de seres humanos. Uma existência pautada em todos os pilares fundamentais da dignidade humana. Afinal, como escreveu o filósofo alemão, Friedrich Nietzsche, “A desigualdade dos direitos é a primeira condição para que haja direitos”.