Coragem...
Por
Alessandra Leles Rocha
Se tem uma coisa na vida que vem
me encantando, cada vez mais amiúde, são os de repentes. Situações, imagens,
lembranças, palavras, coisas que a gente se cansa de coexistir com elas e só em
um dado momento do curso da história nos damos conta da sua dimensão, do seu
significado, do seu papel na completude do quebra-cabeça.
Foi o que me aconteceu, ontem, em
relação a João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas 1,
quando escreveu “O correr da vida
embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega
e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. Essa citação foi
o fio condutor da minha reflexão após assistir ao filme Pureza (2022) 2, do diretor Renato Barbieri, e que foi
vencedor de 28 prêmios cinematográficos nacionais e internacionais3.
Pois é, no instante mágico em que
a minha atenção foi capturada pela saga da personagem Pureza, as palavras de
Guimarães Rosa, publicadas lá em 1956, serviram como fagulha certa para me
despertar a consciência sobre o tênue limiar em que se equilibra a coragem e a covardia
humana. E o que chamamos de coragem e de
covardia, talvez, não expresse exatamente o correto. Há um relativismo gigante no
emprego dessas terminologias!
Devotando o máximo de atenção possível
a esse mundo contemporâneo isso me parece muito claro. Começa pelo fato de que
a coragem é uma força, uma chama, que nos coloca obrigatoriamente cara a cara,
sem subterfúgios, com a realidade. Ora, muito pouca gente se dá bem com a
realidade! Na verdade, passa mais tempo da vida tecendo ilusões, fantasias, justamente
para não ter que cumprir a sina de uma existência imperfeita, difícil,
complexa, desafiadora.
No entanto, a análise não se
resume ou extingue à perspectiva do próprio indivíduo. A coragem se impõe,
também, da porta para fora, nos contextos do mundo. Aí, a coisa fica esquisita!
Porque o mundo é bruto, bárbaro, cruel, na medida do protagonismo dos seus
atores. Vamos e convenhamos que muito pouca gente aceita ou admite que somos
espelhos uns dos outros no que há de bom ou de ruim.
De modo que olhar para o mundo,
com a devida coragem, é se deparar muitas vezes com reflexos que nos pertencem
intimamente e denunciam de maneira flagrante as nossas omissões, imperfeições,
desalinhos. Um processo amargo e inevitável que nos distancia, à nossa revelia,
do eterno desejo da perfeição, da semelhança com o Sagrado, o Divino. Nos vemos
mortais, falíveis, pequenos, ignorantes. Talvez, muito mais defeitos do que
qualidades.
E aí, sem pensar muito, sem
disposição para refletir, segue-se o curso da história às carreiras. Sem muito
tempo para prestar atenção, para se questionar, para desconstruir certos valores,
para ressignificar a vida, tanto interna quanto externamente. Sem se dar conta,
muitos vão se permitindo enovelar nas teias de uma cegueira social, que tem a
capacidade de transformar o anormal, o bizarro, o hediondo, em algo natural, normal,
trivial.
Simplesmente, porque estabelece
uma desconexão, uma dissociação, com a realidade. Nesse ponto se descobre que a
coragem não passa de covardia, que ele tantas vezes se vale sob a justificativa
de que é necessário agir assim para não enlouquecer, não se curvar, não se
humilhar, ... então, veste as aparências, venda os olhos, tampa os ouvidos,
silencia e segue adiante.
Até que, vez por outra, a
realidade se torna tão insustentável que a coragem explode, sabe-se lá de onde.
Por mais que o script da vida a ser seguido tente embrulhar tudo, bem
embrulhadinho! Afinal, é um tal de “esquenta
e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta” que obriga o
sujeito a sair da zona de conforto e converter covardia em coragem, como se
fosse obra de alquimista.
Eis, então, que o mundo se
desnuda. A vida se desnuda. A beleza e o grotesco disputam o mesmo espaço nos veículos
de informação e comunicação. Ainda que se saiba que na vida nada é de graça, o
preço do sucesso, da glória, da fortuna, do poder, da influência, exibe sua
etiqueta panfletária, fazendo-se entender sem as luzes dos holofotes. Linhas e
entrelinhas do cotidiano a mostra. Verdade exibida do direito e do avesso. A revelação
da lucidez pela vertigem da cegueira.
De repente, a inquisição. O certo
e o errado. O bom e o mau. O digno e o indigno. A bondade e a maldade. O avarento
e o gastador. A justiça e a injustiça. ... Diante da verdade, os indivíduos são
medidos, julgados e considerados inocentes ou culpados pelas omissões, pelas
negligências, pelas atrocidades, pelos absurdos, pelas incivilidades, enfim.
Dentro de um tribunal que não se vê; mas, o qual habita a consciência e/ou a inconsciência de cada um. Contudo, nem por isso, é menos implacável, menos decisivo! E nesse momento, mais uma vez, tem-se a certeza de que, independente de qual seja a sentença, o resultado, não há de se escapar do fato de que “O que a vida quer da gente é coragem”.