Será
que um coração morto pode fazer pulsar a consciência???
Por
Alessandra Leles Rocha
Enquanto uns e outros discutem em
torno da funesta e onerosa ideia de trazer o coração embalsamado de D. Pedro I
para uma exposição comemorativa aos 200 anos da independência 1, eu prefiro analisar tudo por uma
perspectiva mais profunda e pragmática.
Não questiono, em absoluto, as referências
aos fatos históricos. O que aconteceu, aconteceu. E tem sempre muito a dizer e
explicar sobre os caminhos que lhe antecederam e sucederam, como uma corrente
em que cada elo tem a sua importância para o todo. De modo que os nossos feriados
nacionais têm por finalidade esse papel.
Contudo, isso não os exime de um
olhar menos romantizado para ganhar uma análise mais pragmaticamente histórica.
Entendo que, para muitas gerações, as narrativas constituídas para a história
brasileira lhes parecem agradáveis, cabendo perfeitamente nas suas expectativas
e idealizações.
A questão é que, sem se darem
conta, elas subtraem sutilmente do cidadão a sua própria cidadania, na medida
em que lhes retira a inteireza do conhecimento sobre seu próprio país. Mantendo-o
à distância dos questionamentos e reflexões que deveriam surgir naturalmente
desse processo. Fazendo da história uma estória inventada e modelada para ficar
ali nas páginas dos livros, satisfazendo a curiosidade dentro de certos
limites.
Então, voltemos as atenções para
a independência do Brasil. Do ponto de vista prático, o ato de D. Pedro I, mais
dia menos dia iria acontecer, pela própria força do desmantelamento da estrutura
monárquico-absolutista, que já se disseminava pela Europa desde a Revolução
Francesa, em 1789.
Nessas alturas do campeonato, as
grandes metrópoles da época já estavam às voltas com os feitos da Revolução
Industrial, da urbanização, do consumo em larga escala e, principalmente, com a
influência de uma nova classe social, a Burguesia. Então, ainda que muitas ex-colônias
só tenham conseguido sua emancipação das suas metrópoles no início do século XX,
o feito brasileiro foi ter conseguido a façanha mais cedo e sem maiores turbulências
beligerantes.
O que do ponto de vista
burocrático proporcionou o efeito midiático esperado. Pena, que isso seja pouco
para um país que deveria esperar mais da sua independência. Como ocorreu em tantas
outras ex-colônias, o ato em si não afetou a população a ponto de transformá-la
em nível de ideologia, de comportamento, de organização.
Tornaram-se independentes de uma
outra nação a partir do papel decisório de um ou de alguns indivíduos ligados
ao poder colonial; mas, não da população em si. A independência chegou,
portanto, de cima para baixo, como se deu toda a governança colonial. Afinal, o
Brasil se tornava independente; mas, permanecia uma monarquia. Só em 1889, 67
anos depois da independência, é que o regime de governo se tornaria a
República.
E tudo isso é sim, muito
emblemático, porque ao falar de independência, logo se faz uma associação
direta com liberdade. Mas, que liberdade é essa que não acolheu a integralidade
da população brasileira, na medida em que muitos de seus filhos permaneciam
cativos, segregados, alijados de seus direitos fundamentais?
Os ares da independência não
venceram o racismo, a intolerância religiosa, o patriarcalismo, e tantos outros
males nefastos emergidos da condição colonial. Por ato simbólico e por decreto
não éramos mais colônia da Metrópole portuguesa. Mas, na essência, na
identidade, mal sabíamos que iríamos seguir assim, cativos a um modelo de
organização social dividido entre a dominação e a subserviência.
E voltando ao coração de Pedro I,
deixem-no em paz! Não façam de sua presença, mais uma cortina de fumaça, para a
nossa eterna dependência ao constrangimento! Sua permanência em solo
brasileiro, enquanto vivo, foi suficiente para não ser esquecido; bem como, todos
os seus atos aqui realizados. De modo que os 200 anos da independência deveriam
se restringir ao marco temporal, e só.
O bom da História é justamente
isso. O que foi, foi! Quando trazida à tona pela perspectiva da realidade nua e
crua, ela cumpre o seu papel de luzir e aprimorar a cidadania. Nenhum país
precisa de história perfeita, de heróis e vilões de almanaque, de fatos descritos
com requintes de imaginação. História são fatos que se costuram como uma imensa
colcha de retalhos.
No caso do colonialismo
brasileiro, ele foi o retrato de um tempo histórico no mundo. De grandes nações
que não se dedicaram a estabelecer uma análise crítica e reflexiva do curso da
história ao ponto de desconstruir certos paradigmas, os quais poderiam
interromper com a saga da barbárie, por exemplo. O tempo das monarquias absolutistas,
infelizmente e mais uma vez na história da humanidade, se corrompeu pela ganância,
pela cobiça, pelo poder.
Daí a necessidade de conhecer a
história para não se deixar repetir os velhos hábitos. E esse é o nosso “Tendão
de Aquiles”! Na medida em que mais de 500 anos de história não se mostraram,
ainda, suficientes para transformar a nossa consciência, a nossa cidadania, a
nossa identidade cultural.
Afinal, as mudanças que chegaram
pelas mãos das conjunturas, por mais importantes e significativas, não se mostraram
capazes de nos tornar independentes das sombras da nossa herança colonial. Como
se, por aqui, velhos hábitos realmente não pudessem jamais morrer! Talvez, por
isso, o coração de D. Pedro I seja só um detalhe, a mais, para compor o
contexto bizarro que nos acostumamos a cultuar.