domingo, 28 de agosto de 2022

As dores que deveriam ser nossas; mas, não são


As dores que deveriam ser nossas; mas, não são.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A notícia publicada, ontem, dizia: “‘Índio do buraco’: Último de sua etnia, indígena que vivia sozinho é encontrado morto em Rondônia” 1. Mas, quantos episódios mais, nesse contexto, a sociedade brasileira vai conviver sem se colocar a permanecer relativizando as barbáries e as violências, hein?

Não, não vamos tampar o Sol com uma peneira a respeito. Relativizamos sim. Os impactos da nossa herança colonial eurocêntrica criaram no inconsciente nacional um mecanismo de categorizar a importância ou a desimportância dos acontecimentos, segundo as personagens participantes do processo. Por isso, não é difícil entender que a Guerra na Ucrânia, por exemplo, possa causar mais comoção do que a dizimação de um cidadão indígena brasileiro.

Infelizmente, fomos adestrados pelo colonialismo a acreditar que algumas vidas têm valor, enquanto que outras, não. Assim, o estereótipo do homem branco, de descendência europeia, de base religiosa cristã, letrado e culturalmente instruído, bem-sucedido economicamente é que constitui a parcela significativa da sociedade e, por essa razão, detém as regalias e os privilégios de influenciar e decidir, além de reger os caminhos do poder.

O restante da sociedade, que significa, em linhas gerais, as minorias, é sumariamente lançado a condição de inferior. Portanto, submetido ao controle e vigilância do estrato dominante, a fim de servi-lo, segundo seus interesses e vontades, dentro do mais absoluto padrão de subserviência, de obediência, sob pena de represálias e castigos no caso de eventuais oposições e contestações.

Portanto, esse viés desqualifica, negligencia e cancela a importância da diversidade humana e da contribuição do seu caráter multicultural, para se limitar a um padrão minoritário preestabelecido. Pela fúria dessa barbárie e dessa violência, que acomete milhares de cidadãos ao longo dos séculos, as identidades nacionais vão se esfacelando e fragilizando a sua própria sustentação que depende dos seus conhecimentos originários.

Daí a impossibilidade de um olhar superficial e inconsistente sobre esse fenômeno de extermínio social. A questão não é só a morte, ou a perda, de inúmeros indígenas. Acima dela está o sentimento eurocêntrico de propriedade. Esse homem branco, de descendência europeia, de base religiosa cristã, letrado e culturalmente instruído, bem-sucedido economicamente, se entende dono de pessoas, de bens, de terras, de tudo.

Uma propriedade legitimada discursivamente por valores e princípios forjados tanto política quanto religiosamente, os quais vêm se perpetuando de geração em geração, independentemente, das próprias transformações jurídicas. O que significa que essas pessoas se enxergam, de fato, em um patamar de superioridade e de importância que nada, e nem ninguém, pode interferir ou questionar.

Muitos pensam que essas investidas brutais e perversas contra os indígenas sejam pelo fato de que eles são defensores ardorosos da natureza, do meio ambiente onde sempre viveram fixados. Só que não. O ponto de partida desse comportamento é a reafirmação dessa ideia de propriedade pelo homem branco, ou seja, o indígena lhe pertence, as terras lhe pertencem, as riquezas naturais lhe pertencem. Portanto, eles podem fazer o que quiser a respeito.

Trata-se de um sentimento de propriedade que ultrapassa, portanto, quaisquer fronteiras objetivas expressas nos documentos de registro de posse, na medida em que esses títulos estão juridicamente condicionados aos demais instrumentos legais que se relacionam ao assunto. De modo que o título de posse não subtrai ou elimina o papel das legislações ambientais, agrárias, etc.etc.etc. Mas, no contexto do modus operandi empregado cria-se a falsa ideia de que essas pessoas podem tudo, dada a dimensão do poder e da influência que elas acreditam desfrutar.

É lamentável; mas, não se aprendeu nada em pouco mais de 500 anos de história! Pois é, visando a manutenção de um padrão social quase eugenista, o Brasil perdeu-se de si mesmo, das suas raízes, das suas origens, ao ponto de impor a necessidade de criar uma versão idealizada da sua própria história. Afinal, ele destruiu suas fontes humanas, sua biblioteca natural de conhecimentos, sua enorme riqueza imaterial.

Então, a cada árvore que verte ao chão, a cada indivíduo pertencente aos povos originários que tem seus olhos fechados pela morte perversamente súbita, a cada espécie animal que precisa se deslocar do habitat natural para não sucumbir, ... nos deparamos com a inconteste verdade de que permanecemos andando em círculos, repetindo velhos padrões.

O Brasil não vive no passado e nem tampouco no presente.  Está desalinhado, desajustado, perdido, incapaz de rever seus pontos de vista, suas práxis. Não sabe quem é. Não sabe o lugar que ocupa. Não sabe... Move-se de maneira autômata pela força de uma ganância e cobiça tóxicas, que o isola do mundo, da vida, do desenvolvimento e do progresso.

Caso ainda considere tudo isso chocante demais, absurdo demais, pare por um instante, nesse domingo, e se permita ouvir o velho clássico “Que país é este” (1987) 2, da Legião Urbana. A atemporalidade contida em cada palavra além de explicar com requintes de franqueza e de lucidez essa engenhosa máquina chamada Brasil, nos permite a cada vez que ouvimos, descer um pouco mais nos abismos da realidade; sobretudo, a atual.

Afinal, “Alguém já disse que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas: quem não tem princípios morais costuma se enrolar em uma bandeira, e os bastardos sempre se reportam à pureza da sua raça. A identidade nacional é o último recurso dos deserdados. Muito bem, o senso de identidade se baseia no ódio, no ódio por quem não é idêntico” (Umberto Eco – O cemitério de Praga, 2010, 528p.).

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