quinta-feira, 30 de junho de 2022

Chega de silêncio!


Chega de silêncio!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não, não é de hoje. Tudo começou com os homens das cavernas puxando suas mulheres pelo cabelo e não parou mais. O trato objetificado da mulher foi diversificando a sua manifestação, foi aprimorando a sua brutalidade; mas, o que é pior, foi se legitimando socialmente.

Pois é, tratar mulheres como objeto, como mercadoria, se tornou parte do cotidiano. E não se engane, pensando que apenas as menos privilegiadas socialmente são o alvo. Nesse assunto, mulheres estão postas no mesmo patamar. A forma com a qual o assunto é discutido ou omitido é que faz a diferença.

Aliás, quem nunca ouviu falar sobre o pagamento do dote, no casamento?!Famílias abastadas precificavam suas filhas, pagando ao futuro marido, no dia do casamento, quantias polpudas e outros bens.  A prática acabou se alastrando pelos estratos sociais e se moldando as realidades socioeconômicas de cada grupo sem, no entanto, perder a essência perversa e cruel da objetificação feminina.

E a partir disso é que se torna possível entender o modelo de formação social feminino. Quanto mais bem-educadas, prendadas, recatadas, mais elas agregavam valor ao seu dote. Beleza, nesses tempos, nem era tão fundamental assim! O que contava mesmo era o porte, a desenvoltura, a delicadeza, a submissão em cada gesto e palavra; pois, não poderiam envergonhar o “nome” da família.  

Portanto, as mulheres sempre foram objetificadas pela perspectiva do papel que deveriam desempenhar na sociedade. Sempre estiveram um passo atrás, um degrau abaixo dos homens, nesse mundo que eles tanto se orgulham em dominar. Prontas a servi-los. A ser, pensar, agir, segundo o que eles desejam, esperam e precisam. Afinal, como escreveu Simone de Beauvoir, “A representação do mundo é operação dos homens; eles o descrevem do ponto de vista que lhes é peculiar e que confundem com a verdade absoluta” 1.

Mesmo com todas as evoluções e revoluções do mundo, essa marca resiste e insiste em se manter presente, porque, querendo ou não, as rédeas dos poderes ainda estão nas mãos deles. De tal maneira que se sua domesticação primitiva já não lhes permite sair em público arrastando uma mulher pelos cabelos, isso não significa que não possam exercer outras formas de servidão, de tirania, de subordinação, de submissão, de obediência, de resignação.

Não é à toa que uma das mais importantes expressões desse poder masculino sobre as mulheres se encontra na desigualdade salarial frente ao mesmo exercício profissional que um homem. No universo do mercado de trabalho ainda que as mulheres sejam sabidamente mais qualificadas, com mais anos de estudo e formação profissional, elas são constantemente submetidas aos mais rigorosos escrutínios para, no final das contas, serem preteridas nas escolhas. Especialmente para os cargos de chefia e de liderança.

Infelizmente, elas têm sempre que provar a sua capacidade, o seu talento, a sua aptidão, a sua competência, a todo instante. Acontece que, como diria Eduardo Galeano, “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar” 2.  

Então, ainda que essas palavras inspirem pela beleza da poesia nelas contidas, temos que refletir o quão desnecessário e absurdo é esse movimento inglório das mulheres na busca pelo seu espaço, igualitariamente humano, na sociedade. Porque ele acaba sendo um misto de luta e preservação, dada a fúria da dominação masculina no sentido de impedi-las de qualquer êxito.

A humanidade precisa entender que os casos de abuso, de assédio, de violência sexual, de desqualificação moral e intelectual, que sempre permearam, e ainda permeiam, os caminhos das mulheres são frutos desse processo. Os homens não veem sentido algum em abdicar da sua hegemonia sobre os espaços sociais para compartilhá-los com as mulheres.

Eles entendem isso como um ato de inferiorização; visto que, eles próprios construíram todo um discurso histórico em que se considera as mulheres seres inferiores, menores, incapazes. Abrir espaço para coexistir e compartilhar com elas seria se permitir nivelar por baixo e, por consequência, fragilizar o seu poder, a sua influência, a sua importância social, o seu raio de dominação.

Sem contar que circula pelo inconsciente coletivo uma ideia de que o poder justifica tudo, tanto no campo do Bem quanto do Mal. De modo que permitir às mulheres exercerem também esse poder significaria que elas poderiam ser, pensar e agir como eles, tanto no campo do Bem quanto do Mal. Isso significa que só lhes restariam ou a possibilidade de viver pacífica e harmonicamente ou em franca beligerância e destruição pela impossibilidade de escravizarem-se entre si.

Daí a importância de não silenciar e de nomear corretamente os acontecimentos presentes nas relações humanas. Porque o caminho da transformação nessa seara não é simples e nem rápido. Há a necessidade de contar com as ferramentas da Justiça, da Educação, da Comunicação, para desconstruir os paradigmas e instaurar uma nova concepção de igualdade social, onde ninguém seja mais ou menos.

Não se esqueça, “Toda vez que uma mulher se defende, sem nem perceber que isso é possível, sem qualquer pretensão, ela defende todas as mulheres” (Maya Angelou 3). A relevância desse entendimento se dá pelo fato de que a construção narrativa em desfavor das mulheres, performada pelos homens, trouxe também à tona uma disparidade das realidades sociais.

Isso quer dizer que na hora de discutir os casos de abuso, de assédio, de violência sexual, de desqualificação moral e intelectual, a sociedade, por conta do seu próprio histórico colonial, tende a enviesar para um feminismo branco e ocidental, excluindo dessa equação perversa as mulheres negras, indígenas e pobres, como se elas simplesmente não existissem.  

A questão é que “o falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir”; pois, “O feminismo deve contemplar todas as mulheres, é necessário perceber que não dá pra lutar contra uma opressão e alimentar outra” (Djamila Ribeiro 4).

Então, para que todas as mulheres existam, de fato e de direito, é fundamental a consciência de “que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância, já que viver é ser livre” (Simone de Beauvoir). Simplesmente, porque “Eu não sou livre enquanto alguma mulher não o for, mesmo quando as correntes dela forem muito diferentes das minhas” (Audre Lorde 5).



1 Escritora, Intelectual, Filósofa Existencialista, Ativista Política, Feminista e Teórica Social francesa.

2 Fernando Birri citado por Eduardo Galeano em “Las palavras andantes” (p.310), de Eduardo Galeano e José Borges, publicado por Siglo XXI, 1994.

3 Escritora e poetisa norte-americana negra.

4 Filósofa, Feminista negra, Escritora e acadêmica brasileira.

5 Escritora Feminista, Ativista dos Direitos Civis e Homossexuais norte-americana de descendência caribenha. 

quarta-feira, 29 de junho de 2022

Terra de Cego. ...


Terra de Cego. ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Diante dos recentes acontecimentos no país, não pude deixar de me lembrar do antigo provérbio “Em terra de cego quem tem um olho é rei”, porque ele traz a dimensão exata da realidade brasileira na expressão da sua frágil e inconsistente identidade cidadã.  

Pois é, não é por acaso que temos visto tantas interpretações enviesadas e tendenciosas, quase verdadeiras aberrações jurídicas, acontecendo bem em frente aos nossos olhos. Afinal de contas, é com base nesse modus operandi que se torna possível tecer discursos e narrativas capazes de exercer o controle social esperado.

Ora, quando o cidadão desconhece a sua própria cidadania, no campo dos seus direitos e deveres, ele é facilmente enganado e manipulado por quem conhece e habilmente sabe se valer disso. Sim, porque ele tem dois caminhos. Ou ele acredita piamente no outro, ou ele busca por si mesmo a verdade dos fatos.

Acontece que depois de mais de 500 anos de história, a legitimidade discursiva das classes dominantes sobre as classes dominadas ainda resiste como palavra final, como decisão inquestionável.

De modo que muitos não se sentem no direito de discutir ou argumentar, porque se entendem em posição social desfavorável. Além disso, há de se considerar também que as deficiências e as insuficiências de sua escolaridade não lhes permitem rebater a convicção de palavras aparentemente pomposas e firmes, fazendo-os, então, optar pelo silêncio subserviente.

E assim, se institucionaliza a tal “terra de cegos”; pois, como escreveu José Saramago, “O medo cega... são palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos” (Ensaio sobre a Cegueira, 1995).

Aliás, um exemplo disso foi o que aconteceu “em audiência pública sobre ‘manual’, em que o governo refuta o aborto como questão de saúde pública e diz que todos são ‘crime” 1, apesar de especialistas manifestarem que “o documento gera ‘insegurança jurídica’ e está em desacordo com a legislação” 2. Ao disseminar a ideia da criminalização, inevitavelmente, gera-se o medo e a insegurança na população.

Portanto, não se trata necessariamente de uma cegueira, de uma incapacidade de ver e compreender os acontecimentos; mas, de ter que fechar os olhos pela força das conjunturas opressoras e abusivas impostas pelos interesses de uma classe dominante. O que faz dessa “cegueira” o mais importante caminho para a vulnerabilização social.

Por isso, quando os veículos de comunicação e informação tentam fazer parecer que a população tem poder de escolha, fico me questionando se eles realmente acreditam nisso.

Escolher, decidir em sentido pleno e absoluto demanda necessariamente uma fundamentação ampla e sem ingerências externas, sabendo apontar e medir exatamente o peso dos prós e dos contras.

Mas, não é isso o que acontece amiúde entre nós brasileiros. Dos tempos coloniais até aqui, nada mudou no sentido de recebermos “goela abaixo” as imposições diversas advindas das classes dominantes. E estas, cientes da nossa “cegueira”, consideram desperdício de tempo e dinheiro abrir as discussões, as deliberações, as consultas, à participação popular.

Afinal, o que importa é o que elas querem, como elas querem, quando elas querem, e ponto final. Porque são elas que mandam. Elas que têm o poder capital.

De modo que a todo instante a grande massa de cidadãos é arrastada pelas correntes da manipulação controladora, a qual se vê ainda mais poderosa nos tempos da alta Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC).

Os tais algoritmos não estão a serviço do indivíduo; mas, de satisfazer aos interesses das classes dominantes. Esse é um caminho sutil de vigilância e controle que possibilita desvendar o grau de relevância dos assuntos para os diversos estratos sociais e/ou induzir a interação das pessoas com esses assuntos.

No entanto, em momento algum, há uma preocupação com o grau de conhecimento do cidadão a respeito; bem como, não é dada a oportunidade de ele depurar as informações com tempo hábil.

Tudo é rápido, instantâneo, para que o elevado nível de cansaço e de estresse informativo faça com que as pessoas se rendam a armadilha de um senso comum, na verdade, já preestabelecido. Então, elas pensam que fizeram uma escolha. Só que não.

E assim, os mais diversos espaços da vida cotidiana são controlados e manipulados, graças ao favorecimento promovido pela ignorância de um grande contingente populacional. A fragilização das bases educacionais, culturais e científicas de um país representam, portanto, a consolidação dessa “terra de cegos”.

Porque ela inviabiliza não só a construção de melhores níveis de conhecimento sobre os mais diferentes assuntos; mas, também, o desenvolvimento da capacidade de análise crítica e reflexiva, que permite a elaboração de opiniões próprias, de pontos de vista pessoais.

Isso significa que essa “cegueira” impede o cidadão de construir suas crenças e valores para viver sob a homogeneização das crenças e valores alheios.

Desse modo, pode-se dizer que a síntese desse processo está no fato de que “O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas covardias do cotidiano, tudo isso contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses” (José Saramago, Diário de Notícias / Lisboa, 2009).  

terça-feira, 28 de junho de 2022

Ser ou não ser? Os dilemas da identidade...


Ser ou não ser? Os dilemas da identidade...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Diante do modo como o mundo contemporâneo tem se comportado, talvez, eu não me surpreenda com um decreto proibindo a presença do arco-íris depois da chuva. Pois é, cada dia mais me convenço de que entre os seres humanos cresce uma indisposição terrível contra tudo que seja belo, que seja diverso, que seja plural.

Ordens do individualismo vigente? Pode ser. Ordens do conservadorismo hipócrita? Quem sabe? Fato é que os pudores opressores andam à solta por aí, tentando criar uma ordem que destoa por completo da expressão da vida. Ainda que possa não parecer, o planeta Terra é sim, um lugar belíssimo e constituído na essência das diferenças. Cores, formas, odores, dimensões, expressões, um coletivo em franca expansão adaptativa para compor as odes em torno das diferenças, das diversidades, das pluralidades.

Porque nelas reside a coragem de ser, na mais genuína expressão identitária que não se faz por imposição; mas, na simplicidade do fluir da vida. Ser ... Uma essência combustível que move o indivíduo e lhe permite refletir imagens sem a necessidade de espelhos. De modo que nada do que o mundo faça ou fale a respeito consegue impedir que essa realidade exista.

Daí qualquer discussão em torno das questões de gênero expressar uma estupidez absurda. Um pouquinho mais de atenção às páginas da história da humanidade para se deparar com gays, lésbicas e simpatizantes, protagonizando a coexistência que devem desfrutar os seres humanos 1. Dentro de uma civilidade sem tensões, sem conflitos, sem beligerância.

O que fez tudo mudar, foi a tentativa de estabelecer uma homogeneização social que atendesse aos interesses e aos privilégios das classes dominantes. Um padrão a seguir seguido. Um protocolo a ser cumprido. De modo que as diferenças, as diversidades, as pluralidades tivessem que ser contidas, escondidas, negadas, suprimidas, ainda que a um custo sócioexistencial incomensurável.

Acontece que o ser humano nasceu para ser o que é. Em algum momento essa identidade escapa das amarras, das pressões, das opressões e voa rumo a sua liberdade. Sem ato falho. Sem desculpa. Sem pretexto. Simplesmente, ela se liberta de um armário metafórico que é a sua própria alma, para dar vazão a um pedaço muito importante de si mesma.

Afinal, os gêneros exprimem apenas uma parte do ser humano que tem muita importância. Mas, o que os indivíduos são a luz da sua compreensão sobre o seu gênero, não interfere e nem obstaculiza o restante. Competências. Habilidades. Talentos. Criatividade. Autonomia. ... e muito mais, simplesmente acontecem na fluidez do seu cotidiano.

O que faz do olhar humanizado e não estereotipado o ponto de partida de um mundo com bem menos desarmonia, desavença, intolerância e preconceito. Não importa ser lésbica, gay, bissexual, transexual ou transgênero, queer, intersexo ou assexual. O que conta sempre é ser humano, em constante busca pelo equilíbrio entre virtudes e defeitos, pelo justo, pelo belo e pelo melhor que a vida possa oferecer.

No entanto, não é pelo justo, pelo belo e pelo melhor que vemos a humanidade se unir. A saga da homogeneização social permanece em curso. Por isso, as inúmeras tentativas de se conter a influência que as diferenças, as diversidades e as pluralidades exercem na sociedade, na medida em que elas podem abrir precedentes considerados perigosos demais aos interesses e privilégios das classes dominantes.

Aliás, é fundamental entender que em tempos de Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), que favorecem a exposição e construção de novos caminhos pelo mundo real e virtual, todos os ataques, agressões, vilipêndios, desqualificações de todas as formas às questões de gênero, buscam basicamente criar discursos e narrativas que se incorporem no inconsciente coletivo e exerçam uma força contrária e repulsiva a liberdade existencial.

Para os interesses e os privilégios das classes dominantes, indivíduos que têm consciência e plenitude da sua identidade não cabem nos seus propósitos de dominação, de subjugação, de escravização social. De modo que ao agirem com extrema violência, tanto no mundo real quanto virtual, eles trazem o terror e o temor do cancelamento, da marginalização, da estereotipização negativa, por meio da manipulação pejorativa do gênero.

Se tiverem oportunidade, assistam “Stonewall: Onde o orgulho começou” (2015), ou “Flores raras” (2013), ou “A garota dinamarquesa” (2016), ou “Divinas Divas” (documentário de 2016); mas, não como mero entretenimento. O interessante dessa experiência é dissecar, por uma perspectiva humana, as entrelinhas das histórias. Puxar pela empatia, pela solidariedade, pela cidadania, todo o sofrimento, as angústias, os desafios, que a vida em sociedade impõe a qualquer um que não se submeta a se ajustar ao tal “modelo padrão”.

Porque a verdade, nua e crua, é que o mundo contemporâneo não anda querendo suportar ninguém. Tudo é motivo, é pretexto, é desculpa, para banir sumariamente. Se é gordo ... Se é magro ... Se é baixo ... Se é alto ... Se é feio ... Se é bonito ... Se é pobre ... Se é rico ... Se é ignorante ... Se é letrado ...

Daí não caber “ais” e “uis”, narizes torcidos, comentários ferinos, execrações públicas. Enquanto você aponta um dedo, outros três se viram contra você, esqueceu?! Qualquer um pode ser a bola da vez, nesse mundo insano! Como escreveu magistralmente Caio Fernando Abreu, “E da janela do quarto, vendo uma vida de estrelas passarem por seus olhos, algo lhe dizia: - Tá vendo aquele mundo lá fora? É seu, vai pegar”.

Então, para de infernizar a vida dos outros e vai ser feliz, antes que alguém decida cortar as suas asinhas! Como disse Coco Chanel, ou pelo menos é atribuído a ela, “Não importa o lugar de onde você vem. O que importa é quem você é! E quem é você? Você sabe? ”.

domingo, 26 de junho de 2022

Nem te conto! ...


Nem te conto! ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Sei que muitos não vão admitir, mas entre os ônus e os bônus que as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) trouxeram para a realidade contemporânea está a disseminação irrefletida e cruel da vida alheia.

Eu sei que os tais “mexericos da Candinha”  1, os quais se popularizaram na forma dos fuxicos nas rodas sociais e depois se alastraram pelos veículos tradicionais de comunicação, especialmente as revistas especializadas nesse viés, existem há tempos. Portanto, o X da questão não me parece ser essa práxis em si; mas, o que se esconde na sua própria tecitura.

Já passou de a hora da sociedade admitir que a vida alheia, como pauta de notícias, só flui porque ela dispõe de público consumidor. Infelizmente, fofoca, disse me disse, telefone sem fio, ... e tantas outras estratégias vulgarmente deploráveis rendem economicamente aos veículos que se prestam a esse papel, ou seja, suprir de informações vazias e inúteis a curiosidade de gente desocupada, frustrada, infeliz com a própria realidade.

Aliás, com um bocadinho a mais de foco, é fácil perceber como esse caminho foi, de certa forma, um trampolim também para as atuais Fake News. Sim, porque das fofocas que circulam por aí, uma imensa maioria é fruto de distorções, invenções ou más interpretações de fatos ocorridos (ou não) com gente em evidência. Palavrórios apimentados no devido ponto, para render mais tempo no imaginário coletivo.

E nesse trágico viés se proliferam criaturas deploráveis e oportunistas, quase como verdadeiros abutres, que se dizem fazer tudo isso por ofício, por necessidade da profissão. Mas será? É fato que o contexto dos avanços tecnológicos nos colocaram a viver entre dois mundos, um real e outro virtual; mas, na medida em que o ser humano é parte integrante e integrada desse processo, as regras, os protocolos, as legislações, todo o ordenamento ético e moral que existe em um se aplica também ao outro.

Não é porque os reality shows, por exemplo, estão por aí destacados como o novo mote do entretenimento, que tudo possa caber nesse contexto. Trata-se de uma experiência midiática que parte da adesão voluntária dos participantes e contemplada por um rigoroso contrato estabelecendo as regras, os direitos, as obrigações entre eles e o veículo de comunicação. Portanto, nada em comum com a vida cotidiana de ninguém.

Isso significa que o exercício da comunicação não tem seus limites estendidos ou flexibilizados porque acontece nesse ou naquele ambiente tecnológico. Do mesmo modo, a privacidade do indivíduo ainda é um direito a ser resguardado em qualquer circunstância, mesmo que sua profissão lhe exija uma visibilidade e uma publicidade mais significativa do que acontece em outras profissões.

Fora dos holofotes, dos flashes, das entrevistas, dos contratos de trabalho, dos eventos publicitários, há pessoas de carne e osso que merecem o seu descanso, a sua privacidade, a sua individualidade, a sua intimidade, preservados. Ninguém, absolutamente ninguém, tem o direito de transgredir, de ultrapassar essa linha limítrofe sem o consentimento, sem autorização expressa do outro.

O que me faz recordar imediatamente que, em uma das suas brilhantes crônicas, Martha Medeiros escreveu com profunda sensibilidade, “Mantenha-se atrás da faixa amarela, não chegue muito perto, não acerque-se de meus traumas, não invada meus mistérios, não atrite-se com o meu passado, não tente entender nada: é proibido tocar no sagrado de cada um” (Não pode tocar, 2004).

Qualquer que seja a forma de desrespeitar essa máxima tão simples e direta significa, nada mais nada menos, impor ao outro o reverberar de uma dor, de um sofrimento, de uma angústia, na expressão de uma cicatriz oculta que sangra incontidamente. É lançar sobre os ombros alheios a experienciação repetida em múltiplas formas e conteúdos de um passado que necessita ser apaziguado na alma. E de pés fincados nesse mundo, quem de nós não tem nada no campo desse sagrado?

Pensar que pessoas fazem isso por dinheiro, por notoriedade, por visibilidade, e até mesmo, por prazer, abala momentaneamente a minha fé no ser humano. Mas, é breve a minha decepção. Porque o mundo dá voltas e mais voltas e os arranjos das conjunturas trazem consigo o peso de uma imprevisibilidade perversa. Como será o amanhã? Ninguém sabe. E não há dinheiro que compre a resposta.

E a cada novo episódio desse comportamento horrível, que mais parece um chafurdar na carniça, eis que o vocabulário das virtudes ganha espaço no calor das emoções. De repente, alguns se dão conta de que deveria ser básico a qualquer ser humano exercitar a benevolência, a bondade, a justiça, a responsabilidade, a sabedoria, o respeito, a prudência, a honra, o desapego, a empatia, a sensatez, a compaixão, a solidariedade, ...

Pena, que isso só parece afetar alguns. Como se sabe? Com base nos níveis de deterioração do comportamento humano que se apuram pelas mídias sociais e veículos de comunicação e informação. O hábito de comprazer na desgraça alheia, em se debruçar sobre especulações em torno da vida do outro, ainda é a válvula do escapismo social mais utilizada. Como se isso fosse resolver alguma coisa!

Eis, o tamanho exato do ser humano! O bárbaro que a vida continua tentando domesticar sem muito sucesso. O selvagem que subtrai suas virtudes para se vangloriar dos seus defeitos. Que deixa rastros de malfeitos para justificar sua presença, sua existência mesquinha e vulgar nesse mundo. Que se preocupa com a aparência externa quando deveria cuidar bem mais da própria alma, no que diz respeito às suas crenças, valores e princípios. Que no fim das contas, embora saiba falar, só consegue se expressar comunicativamente pela ânsia compulsiva da verborragia.   



1 Alusão à canção “Mexerico da Candinha” (1965), de Roberto Carlos e Erasmo Carlos. 

sábado, 25 de junho de 2022

Ladeira a baixo...


Ladeira a baixo...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Ladeira a baixo é uma boa expressão para definir o momento atual. As tentativas do fundamentalismo contemporâneo protagonizadas pelas diversas correntes da direita global podem fortalecer uma nova ordem social no mundo; mas, não exatamente como elas acreditam e almejam.

Enquanto se digladiam dentro de suas próprias fronteiras, e algumas vezes fora delas, o que muitos países, talvez, não tenham se dado conta (ou não queiram admitir) é o fato de que toda essa instabilidade é a tempestade perfeita para suas próprias derrocadas.    

Aqui, por exemplo, o esfacelamento das instituições às vésperas do pleito eleitoral é bastante emblemático. Suspeitas, investigações, prisões, orbitam o universo da corrupção, do tráfego de influências e outros “pecados” inconfessáveis, como se o país não pudesse virar as páginas da sua própria história.

Então, ele se repete, se repete, se repete, ... enquanto vê quaisquer perspectivas de estabilidade e progresso desaparecerem no horizonte, como miragem no deserto.

Nos EUA, a grande potência mundial, são as recentes decisões da Suprema Corte que criam uma aura de instabilidade social gravíssima, em meio ao caos que a própria economia foi submetida em decorrência tanto da Pandemia da COVID-19 quanto da recente Guerra na Ucrânia.

Trata-se de um retrocesso judiciário tão significativo que pode sim, afetar as bases da Democracia, da Liberdade e da prosperidade econômica, que eles sempre se orgulharam em defender.   

A história ensina, “grandes impérios um dia acabam ruindo”. Mas, isso vale também para os pseudoimpérios, que estão distribuídos, por aí, pela exacerbação narcísica de governos medíocres e instituições demasiadamente frágeis.

Simplesmente, porque seu excesso de certezas e convicções absurdas os fazem, mais dia menos dia, acabarem tropeçando no próprio cadarço.

Sabe aquela história de grandes marcas que sempre depositaram sua força e hegemonia no nome de mercado e acabaram sendo surpreendidas pelos concorrentes?

Pois é. Nome não ganha jogo. Nome não sustenta poder. É assim que o mundo funciona. Essa é a insígnia do desenvolvimento, da evolução.

Portanto, aqueles que trabalharam em favor das micro e macro estabilidades tendem a despontar no panorama de uma nova ordem global. Aliás, o ponto de vista desses bravos previdentes é bastante simples.

Pautas ideológicas comportamentais não colocam comida na mesa, não garantem empregos, não movimentam as bases econômicas, não impulsionam o protagonismo de mercado, não alinhavam credibilidade nas relações diplomáticas e de comércio exterior, não criam estruturas de avanço científico e tecnológico.  E países precisam disso, não é mesmo?

De modo que não se pode retirar o foco das demandas prioritárias, justamente em um momento em que o mundo ensaia uma retomada, depois de três anos difíceis de sobrevivência, diante da Pandemia.

Os prejuízos foram sentidos em cada canto do planeta, dentro das especificidades próprias das nações. Pior para alguns. Menos pior para outros. Mas, todos, sem exceção, não fugiram do impacto das adversidades.

Então, não dá para “procurar pelo em ovo” em torno de questões que estão longe de ser um consenso, que criam muito mais dissidência do que harmonia.

Esses são tempos para deixar o curso natural da história fluir e criar uma certa estabilização, ainda que temporária, para em momento mais oportuno buscar uma solução verdadeiramente profícua.

Agora, segundo analistas e especialistas, no campo da Economia, a realidade indica uma necessidade de coesão e coerência na tomada de decisões, na construção de planejamentos estratégicos, para se aguardar o processo de recuperação socioeconômica que aponta para um movimento gradual e lento.

Inclusive, torcendo para que nenhuma outra manifestação do imponderável, nenhuma imprevisibilidade mais arrasadora, se apresente e coloque o jogo na iminência de novos rearranjos e organizações.

Por isso, nesses tempos bicudos, como diz o provérbio, “Prudência e caldo de galinha não faz mal a ninguém”. Não é hora de ousar, de fazer graça, de brincar, de instigar a discordância, de desarmonizar o ambiente. O medo da recessão global tensiona o mundo.

E se a economia vai mal, os humores sociais se desestabilizam muito mais rapidamente e com muito mais intensidade. É o medo da inflação. O medo do desemprego. O medo da fome. O medo do empobrecimento. O medo do adoecimento. O medo em todas as suas formas e conteúdos.

Isso significa que as investidas do fundamentalismo contemporâneo, a partir de pautas conservadoras extremistas, é um desserviço aos países em que elas têm acontecido. Ora, a dignidade de sobrevivência humana é o que está em jogo.

Assim, é impossível pensar que ao limitar, retirar, proibir ou tolher direitos já, de certo modo, consagrados, a maioria da população vai aceitar isso pacificamente.

Principalmente, considerando que estas decisões são tomadas pela perspectiva minoritária de alguns em detrimento da maioria, que sustenta a base da pirâmide social.   

Querendo ou não, estamos no século XXI, em plena Era das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). O mundo convive e coexiste pelo toque nas telas. Tudo acontece, portanto, na velocidade da luz.

De modo que os conhecimentos são repartidos e compartilhados aos milhões por segundo, reduzindo, de algum modo, a impossibilidade de controle ao acesso das pessoas nesse universo virtual.

Enquanto, aqui ou ali as guerras travadas se baseiam em discussões, quase medievais, outros aproveitam a oportunidade para travar suas guerras pelo protagonismo e hegemonia global, tendo a tecnologia como a grande arma de dominação.

Não se esqueça de que o mundo vive a realidade da chamada Revolução Industrial 4.0! Com seus sistemas Ciber-físicos, com a internet das coisas, com a computação em nuvem, com a Inteligência Artificial (IA).  

Os países antenados a esse movimento já entenderam que o domínio da geografia do mundo não necessita mais de grandes exércitos, de invasões sangrentas, de arsenais sofisticados, de bombas aqui e ali.

O domínio do mundo está ao alcance das mãos, no olhar atento as telas, nas informações computadorizadas. Quem souber mais, quem desenvolver mais, quem criar mais, quem surpreender mais, vence o jogo. Porque vai se impor nos mercados do mundo. Vai fazer riqueza. Vai estabelecer dependência e domínio tecnológico. Vai dar as cartas.  Simples assim!

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Heróis “de papel”. Pessoas “de bem”. E tantas outras reflexões contemporâneas.


Heróis “de papel”. Pessoas “de bem”. E tantas outras reflexões contemporâneas.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Basta abrir os olhos pela manhã, para que todas as certezas e as convicções se desfaçam pelo sopro do imponderável, do imprevisível. Os super-heróis e super-heroínas só existem mesmo nas páginas dos cartoons, nas histórias em quadrinhos. De resto, somos mortais, falíveis, vulneráveis, prontos para sermos vítimas das violências que andam por aí, com a nossa anuência.

Aliás, isso me faz lembrar uma canção que compôs a trilha sonora da novela “Roque Santeiro”, entre 1985/1986. “Verdades e Mentiras” 1, de Sá & Guarabyra, é um excelente ponto de partida para essa reflexão. A letra coloca cada palavra no seu devido lugar.  

Sim, porque dessa discussão indigesta, que se formou em torno de mais um episódio de violência e abuso sexual contra uma criança, é preciso tratar as “verdades” e as “mentiras” de maneira bem mais ampla e menos conservadoramente hipócrita. Afinal, esse é um caso de exercício profundo de empatia e de respeito. Não dá para analisá-lo estritamente do prisma da violência pela violência.

Apesar de não ser a raiz da questão, a Pandemia da COVID-19 desnudou a realidade da violência doméstica no Brasil. A ex-colônia que adora bradar a máxima da “Tradição, Família e Propriedade”, infelizmente, se encolhe diante do que isso significa no silêncio restrito das casas.

O poder patriarcal é uma ameaça constante aos lares brasileiros, especialmente, em relação às mulheres, desde a mais tenra idade. O poder que vigia. O poder que pune. O poder que subjuga. O poder que estabelece e institui as regras da convivência e da coexistência intra e extrafamiliar. O poder que invisibiliza as violências no espaço social.

Portanto, não é só o patriarcado do ponto de vista do pai, do chefe da família. É o patriarcado de qualquer figura masculina que exerça influência ou poder dentro de um certo grupo social. É o patriarcado que se sustenta na imagem constituída a partir de valores e princípios reconhecidamente consagrados, tais como respeito, seriedade, compromisso.  

De modo que são as correntes ideológicas extremistas e conservadoras que tecem o arcabouço de sustentação para esse processo. Por isso, se engana quem pensa, ou quer acreditar, que a violência e o abuso sexual; sobretudo, em relação às crianças e as adolescentes, seja caso restrito a Segurança.

Não. É caso de Educação, de Saúde pública, de Assistência Social, de Economia, ... Que explica e dá a devida dimensão do porquê temos que falar sobre o desmantelamento da estrutura do Estado, favorecendo abertamente ao descumprimento das obrigações constitucionais. Quando essas ideias tortas pairam no ar, o desarranjo da sociedade, no que tange ao seu desenvolvimento, progresso e bem-estar, acontece e repercute seu gigantesco prejuízo a todos. 

Coexistir e conviver sob uma atmosfera de tensão, de medo, de pavor, de insegurança, de iminência de morte, impede qualquer cidadão de ser, na inteireza da sua existência. O ser humano, simplesmente, míngua e bloqueia a expressão das suas capacidades, dos seus talentos, das suas aptidões, da sua criatividade, das suas potencialidades.

Vira fantasma de gente viva! Independentemente da idade, do gênero, da religião, do grau de instrução, do saldo bancário. Porque deixa-se de ser para apenas existir, para fazer figuração ao protagonismo alheio. De modo que não se erra ao dizer que a violência e o abuso sexual sejam vieses da escravidão humana, na medida em que ela promove a servidão, o cativeiro, o servilismo, a submissão, a obediência, a resignação.

Em suma, estamos falando da expressão mais ignóbil da objetificação humana, porque anula e destrói qualquer vestígio de humanidade daquele ser. E uma pessoa nessas condições perde o sentido da vida. Porque há um esgotamento psicoemocional tão avassalador, que os dias repercutem um movimento autômato. Não há sonhos. Não há esperança. Não há planos. Não se estabelece a possibilidade de criar e fomentar quaisquer sinais de positividade e otimismo.

Dentro desse contexto, quando a população fecha os olhos para o desmantelamento da estrutura do Estado, seja ela qual for, ela lança a sociedade ao sopro do imponderável, do imprevisível. Sim, porque quando as estruturas estão presentes e ajustadas satisfatoriamente para cumprirem seus papéis, elas trazem aos cidadãos a consciência de que eles próprios são importantes para o país.

Mas, quando ele sabe, por exemplo, que a escola mal consegue atender as demandas de ensino, que não dispõem de corpos multidisciplinares (assistentes sociais, psicólogos, terapeutas ocupacionais, nutricionistas etc.), é óbvio que o cidadão se sinta vítima de outras reproduções da violência que já o acompanha diariamente. Ele não tem um espaço para manifestar as suas dores, as suas angústias, os seus sofrimentos, e encontrar o devido suporte e amparo.

Ou quando ele sabe que no próprio Sistema Único de Saúde (SUS) irá se deparar com instituições despreparadas, sucateadas, ideologizadas, totalmente incapazes de atendê-lo nas suas demandas. A violência se reverbera com o máximo de crueldade e desprezo. Como se deu no caso do não cumprimento da lei de interrupção da gravidez em vigência no país, no caso da criança de 11 anos vítima de estupro de vulnerável. Enfim...

As marcas profundas traçadas pelas desigualdades no Brasil, não podem ser homogeneizadas ou superficializadas pela perspectiva de correntes conservadoras, extremistas e desumanas, como vêm se intensificando. Porque esses discursos e narrativas necropolíticos arruínam o país não só do ponto de vista imagético, no campo das relações exteriores; mas, do ponto de vista prático do desenvolvimento socioeconômico.

Ainda que os números contabilizados pelas estatísticas oficiais sejam aterrorizantes, a verdade é que eles são a ponta de um iceberg de milhares de subnotificações 2. Portanto, as tentativas de negação e/ou de invisibilização desse movimento nefasto, que corrói o país, são inócuas.

A realidade terrível que se abate sobre nós não deixa de existir porque fechamos os olhos, os ouvidos e a boca. Ela está aí, presente na diversidade e na pluralidade social brasileira. Aliás, essa fúria, essa violência, ela é sim, bastante democrática. O que muda o seu trato, a sua percepção, é o grau de exposição do comportamento manifesto dentro dos estratos sociais.

"Pessoas “de bem” não agem assim. Pessoas “de bem” não exercem esse egoísmo tão explicitamente abjeto. Pessoas “de bem” não roubam, não matam, não tratam com indignidade e desrespeito seres humanos. Pessoas “de bem” não precisam se definir dessa maneira; afinal, “O bem não significa simplesmente não fazer o mal, mas antes não desejar fazer o mal” (Demócrito – filósofo Pré-Socrático da Grécia Antiga).

Por isso, quando se deparar com pessoas “de bem”, lembre-se de que para estabelecer qualquer diálogo “Você nunca precisará de um argumento contra o uso da violência, você precisa de um argumento para ela” (Noam Chomsky – linguista, filósofo e sociólogo norte-americano); caso contrário, entre vocês se estabelecerá o mais absoluto silêncio.

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Manda quem pode. Obedece quem tem juízo. ...


Manda quem pode. Obedece quem tem juízo. ...


Por Alessandra Leles Rocha

 

Na verdade, não se trata necessariamente de seguir o antigo provérbio espanhol “quando você ver as barbas do seu vizinho pegar fogo, ponha as suas de molho”. Não, é bem mais profundo do que isso. É perceber como as peças do tabuleiro da vida estão se movendo e sendo capazes de desconstruir as regras do jogo.

E o exemplo mais contundente a esse respeito é a investigação do Comitê do Congresso norte-americano a respeito da invasão ao Capitólio, em janeiro de 2021 1. Afinal, esta foi a maior afronta já assistida pelos norte-americanos e pelo mundo à Democracia contemporânea. Pela força e pela barbárie um coletivo de cidadãos tentou mudar a história das eleições presidenciais nos EUA.

Cada dia mais, exemplos daqui e dali nos dão conta da incapacidade do ser humano em aceitar as normas e diretrizes coletivas. A noção de limite, de respeito, de ordem, se perdeu no caos do gigantismo narcísico individualista que toma conta do mundo.

As pessoas estão afeitas a se colocarem constantemente na priorização das suas vontades e quereres em detrimento do que seja estabelecido pela manifestação democrática da maioria.

Como se cada um precisasse agir, de qualquer forma e a qualquer preço, para garantir a defesa de seus interesses particulares. Como se tivéssemos desaprendido a lógica básica do ganhar e perder. Todos só querem ganhar. E buscam pretextos diversos para se manterem inebriados por essa sensação. Porque ganhar implica em experenciar um extremo prazer.

Portanto, não é o bom senso o que comanda esse movimento. Não está na capacidade analítica, crítica e/ou reflexiva a tomada de decisão e posicionamento. Aliás, chego a pensar que eles não têm a menor ideia do porquê estão agindo dessa ou daquela maneira. Trata-se de algo instintivo, impulsivo, desorientado, que só busca o resultado final expresso no que entendem como vitória.

Isso significa que não é apenas a Democracia que se encontra ameaçada por essa situação. São todos os pilares que vieram sendo milenarmente erguidos para a manutenção do equilíbrio da convivência e coexistência social que estão em iminente perigo.

São as leis, os códigos, as doutrinas, os conhecimentos, que estão sendo sumariamente confrontados e desafiados pela exacerbação do individualismo nas expressões mais absurdas dos pseudopoderes.

Não é uma questão de rever conceitos, de quebrar paradigmas obsoletos, de arejar o pensamento, de alinhar as ideias ao movimento natural da própria sociedade. O que se vê é a destruição daquilo que serve e que não serve mais para a humanidade, em estado genuinamente bruto, sem qualquer sinal de ponderação. Há um imediatismo pulsando essa efervescência.

Entretanto, é preciso dizer que os regentes desse processo não são pessoas que se rebelaram ao longo do tempo, depois de sentirem o amargor das injustiças, das desigualdades, das opressões e/ou das omissões.

Na verdade, toda essa tensão desestabilizadora chega pelas mãos de quem sempre esteve no topo da pirâmide social e que ainda consegue exercer influência, controle e poder sobre o mundo. Aqueles que têm o poder do e sobre o capital.

De certa forma, como sempre esteve a cargo deles a construção e a deliberação das regras do jogo, eles se sentem perfeitamente confortáveis em mudar tudo, da noite para o dia, à revelia dos demais.

Acostumados com o mundo se curvando às suas alterações de humor e de interesses, eles não se constrangem ou se intimidam em impor, até com certa violência, os seus pontos de vista e desejos.

O que não se pode esquecer é de que gente assim, com esse perfil, se encontra em todo canto do mundo. Desse modo, quando menos se espera, a continuar nessa sanha, eles acabarão digladiando entre si por espaços sociais e geográficos cada vez maiores.

O que significa que a deflagração de conflitos pode se decompor em uma beligerância descomunal e fora de controle. Cada um dispondo das armas mais potentes e destruidoras que se possa imaginar. Desdobramentos, consequências, repercussões, nada disso compõe o vocabulário dessas pessoas.

Desde que os seus interesses particulares estejam sendo satisfeitos, nada mais importa. Razão pela qual elas primam pela insistência, pela persistência, pela guerra de nervos que estabelecem até conseguir os seus propósitos. Quem não se lembra da Teoria do Direito Divino dos Reis 2, durante o Absolutismo? O que se vê na contemporaneidade faz jus ao passado.

Pois é, a história é mesmo cíclica. Mudam-se os cenários, as personagens, as figurações; mas, os roteiros mantêm a sua essência, porque tudo não passa da representação da eterna desigualdade socioeconômica, na qual os mais abastados precisam sempre reafirmar as suas posições sociais. Precisam deixar bem claro quem manda e quem obedece. E aí está um ponto chave para se pensar.

Afinal, dentro desse contexto, é possível encontrar pessoas aplaudindo e referendando os discursos, as narrativas e as ações desses mandatários. E por que isso acontece? O inconsciente coletivo da humanidade está impregnado pela subserviência, pela obediência. Ele aprendeu a viver das migalhas, das promessas, das esperanças.

Por isso não é difícil construir legiões de asseclas. Gente que passa uma vida esperando pela vez de protagonizar, de ser visto, de ser minimamente importante. Assim, ainda que temporariamente, se permitem esquecer de que “quem nasceu para tostão, nunca chega a dez réis”.

Paulo Freire já dizia que “A educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo”. Portanto, temos que nos reeducar, reaprender a ler o mundo nas suas linhas e entrelinhas. Parar com a preguiça de pensar e deixar a trivialização, a banalização, a normalização, tomarem conta do nosso pensamento. Precisamos questionar a vida até a última gota.

Temos nos satisfeito com as respostas que nos convêm. Temos nos solidarizado diante da rudeza da vida, segundo as convicções de uns e outros, não as nossas. Temos sido parciais onde só caberia a imparcialidade. Temos emitido opiniões sem qualquer condição de estabelecer juízo de valor a respeito. ... E assim, prestamos “voluntariamente” o serviço que esperam aqueles que se consideram os donos do mundo.

terça-feira, 21 de junho de 2022

Temos que recordar os Direitos das Crianças e dos Adolescentes


Temos que recordar os Direitos das Crianças e dos Adolescentes·

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A violência e o abuso sexual contra crianças e adolescentes são práxis antigas no Brasil. Mas, engana-se quem pensa que este é um mal restrito às camadas menos privilegiadas da população. Infelizmente, não. O que muda é a maneira como a própria sociedade enxerga e lida com o problema.

É cansativo me repetir; mas, tornou-se cada vez mais necessário. O Brasil de origem colonial é fundamentalmente controlado, ainda hoje, em pleno século XXI, pelas correntes conservadoras da direita e seus matizes.

Esse é o grupo que detém os poderes econômico, político e social no país. São eles, então, que ditam as regras do jogo, na base do “dois pesos e duas medidas”. De modo que toda e qualquer mazela social, por aqui, é tratada segundo o viés da própria desigualdade, com requintes, muitas vezes, de uma hipocrisia abjeta.

Nesse contexto, as camadas mais vulneráveis e desassistidas da população acabam sendo culpabilizadas, várias vezes, pelos infortúnios e adversidades que lhes cruzam o caminho, à revelia da sua própria responsabilidade.

Enquanto aqueles que fazem parte do topo da pirâmide social não só tratam o assunto como um desajuste de percurso, um lamentável incidente, um azar, como o resolvem à boca pequena, a fim de manter as aparências da sua pseudossuperioridade.

Acontece que esse é apenas um dos lados desse prisma que envolve o direito à vida. Porque essa é uma questão que não cabe dois ou mais lados, dois ou mais pontos de vista, duas ou mais posições distintas. Vida é um todo indivisível. Não é simplesmente deixar nascer ou deixar morrer.

Vida é um percurso biológico a ser cumprido sob o amparo da dignidade e do respeito ao ser humano. O que torna necessário, antes de tudo, o provimento de uma assistência integral que permita ao indivíduo usufruir de maneira satisfatória e plena os seus direitos sociais 1.   

Portanto, o X da questão a se questionar é: o brasileiro, sem distinção de qualquer natureza, tem seu direito à vida assegurado, respeitado? Só para refrescar a memória, nesse exato instante há mais de 33 milhões de pessoas passando fome no país.

Isso sem contar os desempregados, os que estão morando nas ruas, os vulnerabilizados pelas doenças físicas e mentais, os usuários de drogas lícitas e ilícitas, enfim. E não há atentado maior contra à vida humana do que esse, em que se permite uma vida marcada pela indignidade, pelo sofrimento, pela privação da própria sobrevivência.

Mas, na outra ponta dessa história, há também os bem-nascidos, bem-criados, bem nutridos, bem... cujo desafio, talvez, seja lidar com a fluidez contemporânea que arrasta as correntes do individualismo, do narcisismo, do consumismo, que ameaçam o equilíbrio e a estabilidade da vida a todo instante.

Não é à toa que, segundo dados da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), “Cerca de 800 mil pessoas morrem por suicídio todos os anos. Trata-se da segunda principal causa de morte entre jovens com idade entre 15 e 29 anos. E 79% dos suicídios no mundo ocorrem em países de baixa e média renda” 2.

Portanto, as ameaças contra a vida humana não pertencem a um estrato social específico. Elas decorrem de uma miscelânea de componentes que vão desde os psicocomportamentais até os sociais. A maneira como a sociedade brasileira vem reagindo aos episódios de violência e de abuso sexual contra crianças e adolescentes, então, não parece representar uma defesa à vida; mas, uma rasa e inconsistente oposição a prática de interrupção da gestação.

A maneira com a qual o assunto vem sendo abordado faz parecer que há um movimento social imbuído em transformar a prática de interrupção da gestação em método contraceptivo, quando não é isso. A lei brasileira é bastante clara e só permite tal prática nas seguintes situações: para salvar a vida da gestante, em caso de anencefalia do feto ou de estupro.

E olhando, com olhos de ver, a verdade é que há um fenômeno crescente de episódios de violência e de abuso sexual no país; sobretudo, em relação as crianças e adolescentes, de tal forma que os casos de estupro que culminam em gestação precisam ser amparados adequadamente.

A desatenção e a negligência a esse problema podem resultar sim, em um desafio para a saúde pública, na medida em que a desassistência do Estado e as repercussões ideologizadas dentro do contexto da opinião pública conduzem a situações extremas de risco para essas crianças e adolescentes.

Isso significa que a prática de interrupção da gestação passa a acontecer fora de ambientes médico-hospitalares, sem a observância criteriosa das medidas de higiene, sem acompanhamento psicológico, sem assistência e amparo social. À mercê da própria sorte.  

Em casos extremos, quando o medo ou a vergonha de muitas famílias domina o controle das ações e obriga a manutenção da gestação pela criança ou adolescente, os problemas decorrentes podem ser ainda mais desafiadores, pois se trata de um movimento de reafirmação da violência sofrida.

A gestação não é um processo meramente corpóreo, de transformação estritamente física, ela é também emocional e comportamental.  Assim, a infância e a juventude ao serem sumariamente ceifadas pelas imposições das obrigações e deveres intrínsecos à maternidade, moldam um indivíduo com importantes desajustamentos sociais.  

Não nos esqueçamos de que a vida humana importa. Mas, ela não é autossuficiente o bastante para resistir e sobreviver à sombra do acaso. O que adianta trazer uma vida ao mundo e impor-lhe os rigores e a crueldade das desigualdades?

Qualquer indivíduo para nascer, crescer, se reproduzir e morrer precisará de meios suficientes para fazê-lo, como explicam os estudos sobre expectativa de vida 3. Precisa de paz, de afeto, de cuidado, de proteção, ... elementos que nem sempre estão disponíveis e acessíveis a todos.

Temos que pensar que a omissão e a negligência em relação a violência e o abuso sexual contra crianças e adolescentes podem acabar se legitimando, porque obstaculiza, na maioria dos casos, o afastamento entre as vítimas e seus algozes.

Portanto, o que temos visto em relação ao trato da prática de interrupção da gestação é só mais um viés da necropolítica elitista e conservadora, nada mais. No fim das contas, é como escreveu Luis Fernando Veríssimo, “É ‘de esquerda’ ser a favor do aborto e contra a pena de morte, enquanto direitistas defendem o direito do feto à vida, porque é sagrada, e o direito do Estado de matá-lo se ele der errado”.    



1 CF de 1988, art. 6º - São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.