Chega
de silêncio!
Por
Alessandra Leles Rocha
Não, não é de hoje. Tudo começou
com os homens das cavernas puxando suas mulheres pelo cabelo e não parou mais. O
trato objetificado da mulher foi diversificando a sua manifestação, foi
aprimorando a sua brutalidade; mas, o que é pior, foi se legitimando
socialmente.
Pois é, tratar mulheres como
objeto, como mercadoria, se tornou parte do cotidiano. E não se engane,
pensando que apenas as menos privilegiadas socialmente são o alvo. Nesse assunto,
mulheres estão postas no mesmo patamar. A forma com a qual o assunto é
discutido ou omitido é que faz a diferença.
Aliás, quem nunca ouviu falar
sobre o pagamento do dote, no casamento?!Famílias abastadas precificavam suas
filhas, pagando ao futuro marido, no dia do casamento, quantias polpudas e
outros bens. A prática acabou se
alastrando pelos estratos sociais e se moldando as realidades socioeconômicas de
cada grupo sem, no entanto, perder a essência perversa e cruel da objetificação
feminina.
E a partir disso é que se torna possível
entender o modelo de formação social feminino. Quanto mais bem-educadas,
prendadas, recatadas, mais elas agregavam valor ao seu dote. Beleza, nesses
tempos, nem era tão fundamental assim! O que contava mesmo era o porte, a
desenvoltura, a delicadeza, a submissão em cada gesto e palavra; pois, não
poderiam envergonhar o “nome” da
família.
Portanto, as mulheres sempre foram
objetificadas pela perspectiva do papel que deveriam desempenhar na sociedade. Sempre
estiveram um passo atrás, um degrau abaixo dos homens, nesse mundo que eles
tanto se orgulham em dominar. Prontas a servi-los. A ser, pensar, agir, segundo
o que eles desejam, esperam e precisam. Afinal, como escreveu Simone de
Beauvoir, “A representação do mundo é
operação dos homens; eles o descrevem do ponto de vista que lhes é peculiar e
que confundem com a verdade absoluta” 1.
Mesmo com todas as evoluções e
revoluções do mundo, essa marca resiste e insiste em se manter presente,
porque, querendo ou não, as rédeas dos poderes ainda estão nas mãos deles. De tal
maneira que se sua domesticação primitiva já não lhes permite sair em público
arrastando uma mulher pelos cabelos, isso não significa que não possam exercer
outras formas de servidão, de tirania, de subordinação, de submissão, de obediência,
de resignação.
Não é à toa que uma das mais
importantes expressões desse poder masculino sobre as mulheres se encontra na
desigualdade salarial frente ao mesmo exercício profissional que um homem. No universo
do mercado de trabalho ainda que as mulheres sejam sabidamente mais
qualificadas, com mais anos de estudo e formação profissional, elas são
constantemente submetidas aos mais rigorosos escrutínios para, no final das
contas, serem preteridas nas escolhas. Especialmente para os cargos de chefia e
de liderança.
Infelizmente, elas têm sempre que
provar a sua capacidade, o seu talento, a sua aptidão, a sua competência, a
todo instante. Acontece que, como diria Eduardo Galeano, “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois
passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu
caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que
eu não deixe de caminhar” 2.
Então, ainda que essas palavras
inspirem pela beleza da poesia nelas contidas, temos que refletir o quão
desnecessário e absurdo é esse movimento inglório das mulheres na busca pelo
seu espaço, igualitariamente humano, na sociedade. Porque ele acaba sendo um
misto de luta e preservação, dada a fúria da dominação masculina no sentido de impedi-las
de qualquer êxito.
A humanidade precisa entender que
os casos de abuso, de assédio, de violência sexual, de desqualificação moral e
intelectual, que sempre permearam, e ainda permeiam, os caminhos das mulheres são
frutos desse processo. Os homens não veem sentido algum em abdicar da sua hegemonia
sobre os espaços sociais para compartilhá-los com as mulheres.
Eles entendem isso como um ato de
inferiorização; visto que, eles próprios construíram todo um discurso histórico
em que se considera as mulheres seres inferiores, menores, incapazes. Abrir espaço
para coexistir e compartilhar com elas seria se permitir nivelar por baixo e,
por consequência, fragilizar o seu poder, a sua influência, a sua importância social,
o seu raio de dominação.
Sem contar que circula pelo
inconsciente coletivo uma ideia de que o poder justifica tudo, tanto no campo
do Bem quanto do Mal. De modo que permitir às mulheres exercerem também esse
poder significaria que elas poderiam ser, pensar e agir como eles, tanto no
campo do Bem quanto do Mal. Isso significa que só lhes restariam ou a
possibilidade de viver pacífica e harmonicamente ou em franca beligerância e
destruição pela impossibilidade de escravizarem-se entre si.
Daí a importância de não
silenciar e de nomear corretamente os acontecimentos presentes nas relações
humanas. Porque o caminho da transformação nessa seara não é simples e nem rápido.
Há a necessidade de contar com as ferramentas da Justiça, da Educação, da
Comunicação, para desconstruir os paradigmas e instaurar uma nova concepção de
igualdade social, onde ninguém seja mais ou menos.
Não se esqueça, “Toda vez que uma mulher se defende, sem nem
perceber que isso é possível, sem qualquer pretensão, ela defende todas as
mulheres” (Maya Angelou 3). A relevância
desse entendimento se dá pelo fato de que a construção narrativa em desfavor
das mulheres, performada pelos homens, trouxe também à tona uma disparidade das
realidades sociais.
Isso quer dizer que na hora de
discutir os casos de abuso, de assédio, de violência sexual, de desqualificação
moral e intelectual, a sociedade, por conta do seu próprio histórico colonial,
tende a enviesar para um feminismo branco e ocidental, excluindo dessa equação
perversa as mulheres negras, indígenas e pobres, como se elas simplesmente não
existissem.
A questão é que “o falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder
existir”; pois, “O feminismo deve
contemplar todas as mulheres, é necessário perceber que não dá pra lutar contra
uma opressão e alimentar outra” (Djamila Ribeiro 4).
Então, para que todas as mulheres
existam, de fato e de direito, é fundamental a consciência de “que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que
a liberdade seja a nossa própria substância, já que viver é ser livre” (Simone
de Beauvoir). Simplesmente, porque “Eu
não sou livre enquanto alguma mulher não o for, mesmo quando as correntes dela
forem muito diferentes das minhas” (Audre Lorde 5).
1 Escritora, Intelectual,
Filósofa Existencialista, Ativista Política, Feminista e Teórica Social francesa.
2 Fernando
Birri citado por Eduardo Galeano em “Las palavras andantes” (p.310), de Eduardo
Galeano e José Borges, publicado por Siglo XXI, 1994.
3 Escritora e
poetisa norte-americana negra.
4 Filósofa,
Feminista negra, Escritora e acadêmica brasileira.
5 Escritora Feminista, Ativista dos Direitos Civis e Homossexuais norte-americana de descendência caribenha.