Ser
ou não ser? Os dilemas da identidade...
Por
Alessandra Leles Rocha
Diante do modo como o mundo contemporâneo
tem se comportado, talvez, eu não me surpreenda com um decreto proibindo a
presença do arco-íris depois da chuva. Pois é, cada dia mais me convenço de que
entre os seres humanos cresce uma indisposição terrível contra tudo que seja
belo, que seja diverso, que seja plural.
Ordens do individualismo vigente?
Pode ser. Ordens do conservadorismo hipócrita? Quem sabe? Fato é que os pudores
opressores andam à solta por aí, tentando criar uma ordem que destoa por
completo da expressão da vida. Ainda que possa não parecer, o planeta Terra é
sim, um lugar belíssimo e constituído na essência das diferenças. Cores,
formas, odores, dimensões, expressões, um coletivo em franca expansão
adaptativa para compor as odes em torno das diferenças, das diversidades, das
pluralidades.
Porque nelas reside a coragem de
ser, na mais genuína expressão identitária que não se faz por imposição; mas,
na simplicidade do fluir da vida. Ser ... Uma essência combustível que move o indivíduo
e lhe permite refletir imagens sem a necessidade de espelhos. De modo que nada do
que o mundo faça ou fale a respeito consegue impedir que essa realidade exista.
Daí qualquer discussão em torno
das questões de gênero expressar uma estupidez absurda. Um pouquinho mais de
atenção às páginas da história da humanidade para se deparar com gays, lésbicas
e simpatizantes, protagonizando a coexistência que devem desfrutar os seres
humanos 1. Dentro de uma civilidade sem tensões, sem
conflitos, sem beligerância.
O que fez tudo mudar, foi a
tentativa de estabelecer uma homogeneização social que atendesse aos interesses
e aos privilégios das classes dominantes. Um padrão a seguir seguido. Um protocolo
a ser cumprido. De modo que as diferenças, as diversidades, as pluralidades
tivessem que ser contidas, escondidas, negadas, suprimidas, ainda que a um
custo sócioexistencial incomensurável.
Acontece que o ser humano nasceu
para ser o que é. Em algum momento essa identidade escapa das amarras, das
pressões, das opressões e voa rumo a sua liberdade. Sem ato falho. Sem desculpa.
Sem pretexto. Simplesmente, ela se liberta de um armário metafórico que é a sua
própria alma, para dar vazão a um pedaço muito importante de si mesma.
Afinal, os gêneros exprimem
apenas uma parte do ser humano que tem muita importância. Mas, o que os indivíduos
são a luz da sua compreensão sobre o seu gênero, não interfere e nem
obstaculiza o restante. Competências. Habilidades. Talentos. Criatividade. Autonomia.
... e muito mais, simplesmente acontecem na fluidez do seu cotidiano.
O que faz do olhar humanizado e
não estereotipado o ponto de partida de um mundo com bem menos desarmonia,
desavença, intolerância e preconceito. Não importa ser lésbica, gay, bissexual,
transexual ou transgênero, queer, intersexo ou assexual. O que conta sempre é
ser humano, em constante busca pelo equilíbrio entre virtudes e defeitos, pelo
justo, pelo belo e pelo melhor que a vida possa oferecer.
No entanto, não é pelo justo, pelo
belo e pelo melhor que vemos a humanidade se unir. A saga da homogeneização
social permanece em curso. Por isso, as inúmeras tentativas de se conter a influência
que as diferenças, as diversidades e as pluralidades exercem na sociedade, na
medida em que elas podem abrir precedentes considerados perigosos demais aos interesses
e privilégios das classes dominantes.
Aliás, é fundamental entender que
em tempos de Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), que favorecem a
exposição e construção de novos caminhos pelo mundo real e virtual, todos os
ataques, agressões, vilipêndios, desqualificações de todas as formas às
questões de gênero, buscam basicamente criar discursos e narrativas que se
incorporem no inconsciente coletivo e exerçam uma força contrária e repulsiva a
liberdade existencial.
Para os interesses e os privilégios
das classes dominantes, indivíduos que têm consciência e plenitude da sua
identidade não cabem nos seus propósitos de dominação, de subjugação, de
escravização social. De modo que ao agirem com extrema violência, tanto no
mundo real quanto virtual, eles trazem o terror e o temor do cancelamento, da
marginalização, da estereotipização negativa, por meio da manipulação pejorativa
do gênero.
Se tiverem oportunidade, assistam
“Stonewall: Onde o orgulho começou”
(2015), ou “Flores raras” (2013),
ou “A garota dinamarquesa” (2016), ou
“Divinas Divas” (documentário de 2016);
mas, não como mero entretenimento. O interessante dessa experiência é dissecar,
por uma perspectiva humana, as entrelinhas das histórias. Puxar pela empatia, pela
solidariedade, pela cidadania, todo o sofrimento, as angústias, os desafios,
que a vida em sociedade impõe a qualquer um que não se submeta a se ajustar ao tal
“modelo padrão”.
Porque a verdade, nua e crua, é
que o mundo contemporâneo não anda querendo suportar ninguém. Tudo é motivo, é
pretexto, é desculpa, para banir sumariamente. Se é gordo ... Se é magro ... Se
é baixo ... Se é alto ... Se é feio ... Se é bonito ... Se é pobre ... Se é
rico ... Se é ignorante ... Se é letrado ...
Daí não caber “ais” e “uis”,
narizes torcidos, comentários ferinos, execrações públicas. Enquanto você aponta
um dedo, outros três se viram contra você, esqueceu?! Qualquer um pode ser a
bola da vez, nesse mundo insano! Como escreveu magistralmente Caio Fernando Abreu,
“E da janela do quarto, vendo uma vida de
estrelas passarem por seus olhos, algo lhe dizia: - Tá vendo aquele mundo lá
fora? É seu, vai pegar”.
Então, para de infernizar a vida
dos outros e vai ser feliz, antes que alguém decida cortar as suas asinhas! Como
disse Coco Chanel, ou pelo menos é atribuído a ela, “Não importa o lugar de onde você vem. O que importa é quem você é! E quem
é você? Você sabe? ”.