Qualificação
precarizada ou precarização da qualificação???
Por
Alessandra Leles Rocha
É curioso como as mazelas
brasileiras se enovelam e se associam de uma maneira muito particular. Mas, por
trás de uma aparente complexidade a verdade que se esconde é genuinamente
simples. Pois é, foi assistindo a matéria “Mutirão
de emprego no Centro de SP atrai milhares de pessoas; candidatos dormiram na
fila em busca de vaga” 1, exibida
há dois dias, que despertei para uma constrangedora conjuntura que une educação
e (des)emprego no Brasil.
Bem, não é de hoje que se fala
sobre uma carência de mão de obra qualificada no país em paralelo as estatísticas
atormentadoras do desemprego nacional. Enquanto a Educação padece as suas
desgraças e infortúnios, o Trabalho rodopia na sua espiral de insuficiência e ineficiência
para atender minimamente a dignidade do cidadão brasileiro.
Assim, apesar de dois temas
exaustivamente apresentados pelos veículos de informação e comunicação, dessa
vez, uma camada um pouco mais profunda foi dissecada e trouxe à tona uma
verdade bastante indigesta. Ouvindo com atenção aos depoimentos dos
entrevistados, a pluralidade das falas convergia para um mesmo ponto comum, ou
seja, o trânsito contínuo por experiências profissionais diversas.
Sem perceber ele se torna um multitarefas,
um generalista superficial, um acrobata que salta de assunto em assunto, para
ver se consegue se firmar profissionalmente. No entanto, em meio a todo esse
movimento frenético, ele se esquece de considerar a existência de outros milhões
pessoas impulsionadas pela mesma necessidade, pela mesma realidade.
Então, por mais que o cidadão
tente investir autonomamente na sua qualificação para acessar a tão sonhada
vaga nesse mercado, que diz demandar de “9,6
milhões de trabalhadores em ocupações industriais até 2025” 2, na prática ele parece remar, remar
e morrer na praia.
Afinal de contas, os últimos dados
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística relatam o terrível quadro de
que “mais de 3,4 milhões de brasileiros
estão na fila do desemprego há mais de 2 anos. Um número que corresponde a 29%
do total de desempregados no país que, ao final do 1º trimestre de 2022, somavam cerca de 11,9 milhões” 3.
O que parece ser “a dança das cadeiras” imposta pelo mercado
de trabalho brasileiro, ou seja, alguém vai ficar de fora em decorrência da lei
da oferta e da procura, na verdade é algo muito mais cruel e perverso.
Tendo em vista de que é pública e
notória a certeza de que a Educação transforma e eleva um país, ninguém duvida
da sua importância na construção da dignidade e da cidadania. Entretanto, essa consciência
ainda não conseguiu edificar a ponte para a consolidação de um sistema
educacional, no Brasil, que se mostrasse suficiente e eficiente tanto na
formação cognitiva e intelectual quanto cidadã.
Daí tanta evasão escolar, tanto
analfabetismo funcional, tanta fragilidade nos multiletramentos convencionais e
digitais/tecnológicos, tantas pessoas despreparadas para enfrentar a vida contemporânea
em todo o seu leque de possibilidades.
A escola no Brasil frustra. Professores.
Alunos. Funcionários. Cidadãos. Mercado de Trabalho. Mas, é uma frustração tão
cronificada, tão cristalizada, que ela já se trivializou e “os últimos moicanos” lutadores nessa luta inglória são
insuficientes para fazer ouvir seus clamores e desejos de transformação.
Porém, é com base nessa narrativa
idealista de que “só a Educação
transforma o país” e diante de um gargalo empregatício que não dispõe de
quaisquer perspectivas de esgotamento, que a narrativa em torno da qualificação
profissional emerge como um oásis de esperança. Só que não.
O cidadão desempregado, pelo
menos aquele que ainda pode se dar ao luxo desse sacrifício, embarca numa
odisseia de qualificações e qualificações até descobrir que o tanto que ele se dedicou
em aprender, em adquirir novas habilidades e competências profissionais, nunca
é o bastante.
Ele tem a nítida sensação de
estar sempre dois passos atrás do tão sonhado emprego. Sempre lhe falta alguma coisa. Às vezes ele é muito
para aquela determinada vaga. Outras ele é pouco. Às vezes ele não se enquadra
no “perfil”. Enfim... Enquanto isso, o mercado continua a sua eterna lamúria
pela insuficiência de mão de obra qualificada.
Então, chega-se a um momento em
que esse cidadão desiste de estudar, de se qualificar, de investir um dinheiro
e um tempo que ele sequer dispõe, para uma empreitada incerta. Primeiro,
porque, assim como ele, há no mínimo 12 milhões de pessoas almejando o mesmo propósito.
Depois, porque se qualificar sem
ter como sobreviver é quase um suicídio social. Ora, a fome tem pressa. As obrigações
cotidianas têm pressa. A dignidade tem pressa. ... Não dá para ficar
idealizando em torno do incerto.
Isso explica, pelo menos em
parte, o porquê de a informalidade no país ter tido um boom nos últimos anos. Basta
observar que “O número de trabalhadores
por conta própria aumentou, foi de 22,5% para 26,5% do total de ocupados. [...]
entre 2014 a 2022, a taxa de ocupação no país cresceu 4,1% (3,8 milhões de
pessoas a mais), ou seja, a expansão do mercado de trabalho tem sido puxada
pela informalidade e pelo chamado empreendedorismo de necessidade” 4.
Trata-se de algo que não está
atrelado necessariamente à Educação, nem a qualificação, considerando que muitas
das atividades desenvolvidas não demandam grandes conhecimentos. Esse é só um
dos caminhos da precarização trabalhista no país, que acende um importante sinal
de alerta.
Vejam que “o desemprego
persistente no patamar de dois dígitos e a dificuldade de absorção da mão de
obra em idade de trabalhar que continua sem conseguir uma ocupação ou
simplesmente deixou de procurar um emprego representa a existência de 4,6
milhões de desalentados” 5.
Portanto, nessa toada, o Brasil
ganha a sua “tríplice coroa” às
avessas, quando apresenta inflação, desemprego e juros na casa dos dois
dígitos, o que significa que “além de
impactar a renda e o consumo, a situação rara compromete o ritmo de recuperação
da economia, que segue com projeções de crescimento bem abaixo da média mundial”
6.
Não, não nos deixemos, então,
enganar pelos discursos inflamados, pelas narrativas envolventes. Educação e
Trabalho não são pautas prioritárias no país. Não da maneira que deveriam ser. De
modo que a maneira como são conduzidas essas questões só fazem colaborar
significativamente para destruir, dentro de cada um, a sua identidade, a sua
cidadania. Quem disser que a
precarização da Educação e do Trabalho não leva a isso, certamente estará mentindo.
O pior é que mentindo para si mesmo, em primeiro lugar.
1 https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/05/16/mutirao-de-emprego-na-vale-do-anhangabau-no-centro-de-sp.ghtml
2 https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2022/05/16/brasil-precisara-de-96-milhoes-de-trabalhadores-em-ocupacoes-industriais-ate-2025-veja-areas-com-maior-demanda.ghtml
3 https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/05/13/mais-de-34-milhoes-de-brasileiros-estao-na-fila-do-desemprego-ha-mais-de-2-anos-aponta-ibge.ghtml
4 https://mundosindical.com.br/Noticias/52501,Em-8-anos-a-precarizacao-do-trabalho-aumentou-no-Brasil#:~:text=Quando%20%C3%A9%20mostrado%20o%20n%C3%BAmero,LCA%20Consultores%2C%20autor%20do%20levantamento.