quarta-feira, 18 de maio de 2022

Qualificação precarizada ou precarização da qualificação???


Qualificação precarizada ou precarização da qualificação???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É curioso como as mazelas brasileiras se enovelam e se associam de uma maneira muito particular. Mas, por trás de uma aparente complexidade a verdade que se esconde é genuinamente simples. Pois é, foi assistindo a matéria “Mutirão de emprego no Centro de SP atrai milhares de pessoas; candidatos dormiram na fila em busca de vaga” 1, exibida há dois dias, que despertei para uma constrangedora conjuntura que une educação e (des)emprego no Brasil.

Bem, não é de hoje que se fala sobre uma carência de mão de obra qualificada no país em paralelo as estatísticas atormentadoras do desemprego nacional. Enquanto a Educação padece as suas desgraças e infortúnios, o Trabalho rodopia na sua espiral de insuficiência e ineficiência para atender minimamente a dignidade do cidadão brasileiro.

Assim, apesar de dois temas exaustivamente apresentados pelos veículos de informação e comunicação, dessa vez, uma camada um pouco mais profunda foi dissecada e trouxe à tona uma verdade bastante indigesta. Ouvindo com atenção aos depoimentos dos entrevistados, a pluralidade das falas convergia para um mesmo ponto comum, ou seja, o trânsito contínuo por experiências profissionais diversas.

Sem perceber ele se torna um multitarefas, um generalista superficial, um acrobata que salta de assunto em assunto, para ver se consegue se firmar profissionalmente. No entanto, em meio a todo esse movimento frenético, ele se esquece de considerar a existência de outros milhões pessoas impulsionadas pela mesma necessidade, pela mesma realidade.

Então, por mais que o cidadão tente investir autonomamente na sua qualificação para acessar a tão sonhada vaga nesse mercado, que diz demandar de “9,6 milhões de trabalhadores em ocupações industriais até 2025” 2, na prática ele parece remar, remar e morrer na praia.

Afinal de contas, os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística relatam o terrível quadro de que “mais de 3,4 milhões de brasileiros estão na fila do desemprego há mais de 2 anos. Um número que corresponde a 29% do total de desempregados no país que, ao final do 1º trimestre de 2022, somavam cerca de 11,9 milhões” 3.

O que parece ser “a dança das cadeiras” imposta pelo mercado de trabalho brasileiro, ou seja, alguém vai ficar de fora em decorrência da lei da oferta e da procura, na verdade é algo muito mais cruel e perverso.  

Tendo em vista de que é pública e notória a certeza de que a Educação transforma e eleva um país, ninguém duvida da sua importância na construção da dignidade e da cidadania. Entretanto, essa consciência ainda não conseguiu edificar a ponte para a consolidação de um sistema educacional, no Brasil, que se mostrasse suficiente e eficiente tanto na formação cognitiva e intelectual quanto cidadã.

Daí tanta evasão escolar, tanto analfabetismo funcional, tanta fragilidade nos multiletramentos convencionais e digitais/tecnológicos, tantas pessoas despreparadas para enfrentar a vida contemporânea em todo o seu leque de possibilidades.

A escola no Brasil frustra. Professores. Alunos. Funcionários. Cidadãos. Mercado de Trabalho. Mas, é uma frustração tão cronificada, tão cristalizada, que ela já se trivializou e “os últimos moicanos” lutadores nessa luta inglória são insuficientes para fazer ouvir seus clamores e desejos de transformação.

Porém, é com base nessa narrativa idealista de que “só a Educação transforma o país” e diante de um gargalo empregatício que não dispõe de quaisquer perspectivas de esgotamento, que a narrativa em torno da qualificação profissional emerge como um oásis de esperança. Só que não.

O cidadão desempregado, pelo menos aquele que ainda pode se dar ao luxo desse sacrifício, embarca numa odisseia de qualificações e qualificações até descobrir que o tanto que ele se dedicou em aprender, em adquirir novas habilidades e competências profissionais, nunca é o bastante.

Ele tem a nítida sensação de estar sempre dois passos atrás do tão sonhado emprego.  Sempre lhe falta alguma coisa. Às vezes ele é muito para aquela determinada vaga. Outras ele é pouco. Às vezes ele não se enquadra no “perfil”. Enfim... Enquanto isso, o mercado continua a sua eterna lamúria pela insuficiência de mão de obra qualificada.

Então, chega-se a um momento em que esse cidadão desiste de estudar, de se qualificar, de investir um dinheiro e um tempo que ele sequer dispõe, para uma empreitada incerta. Primeiro, porque, assim como ele, há no mínimo 12 milhões de pessoas almejando o mesmo propósito.  

Depois, porque se qualificar sem ter como sobreviver é quase um suicídio social. Ora, a fome tem pressa. As obrigações cotidianas têm pressa. A dignidade tem pressa. ... Não dá para ficar idealizando em torno do incerto.

Isso explica, pelo menos em parte, o porquê de a informalidade no país ter tido um boom nos últimos anos. Basta observar que “O número de trabalhadores por conta própria aumentou, foi de 22,5% para 26,5% do total de ocupados. [...] entre 2014 a 2022, a taxa de ocupação no país cresceu 4,1% (3,8 milhões de pessoas a mais), ou seja, a expansão do mercado de trabalho tem sido puxada pela informalidade e pelo chamado empreendedorismo de necessidade” 4.

Trata-se de algo que não está atrelado necessariamente à Educação, nem a qualificação, considerando que muitas das atividades desenvolvidas não demandam grandes conhecimentos. Esse é só um dos caminhos da precarização trabalhista no país, que acende um importante sinal de alerta.

Vejam que “o desemprego persistente no patamar de dois dígitos e a dificuldade de absorção da mão de obra em idade de trabalhar que continua sem conseguir uma ocupação ou simplesmente deixou de procurar um emprego representa a existência de 4,6 milhões de desalentados” 5.

Portanto, nessa toada, o Brasil ganha a sua “tríplice coroa” às avessas, quando apresenta inflação, desemprego e juros na casa dos dois dígitos, o que significa que “além de impactar a renda e o consumo, a situação rara compromete o ritmo de recuperação da economia, que segue com projeções de crescimento bem abaixo da média mundial” 6.

Não, não nos deixemos, então, enganar pelos discursos inflamados, pelas narrativas envolventes. Educação e Trabalho não são pautas prioritárias no país. Não da maneira que deveriam ser. De modo que a maneira como são conduzidas essas questões só fazem colaborar significativamente para destruir, dentro de cada um, a sua identidade, a sua cidadania.  Quem disser que a precarização da Educação e do Trabalho não leva a isso, certamente estará mentindo. O pior é que mentindo para si mesmo, em primeiro lugar.