terça-feira, 5 de abril de 2022

Quando a vida se resume em expectativas...


Quando a vida se resume em expectativas...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Sempre pensei que a defesa da vida estivesse acima de rótulos e convenções. Não, porque a Constituição assim se manifeste. Ou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ou quaisquer outros instrumentos organizadores dos indivíduos enquanto coletivo denominado humanidade. Mas, porque viver é o primeiro direito/obrigação que se recebe ao fincar os pés nesse planeta.

Mulheres, homens, LGBTQIA+, crianças, jovens, idosos, indígenas, negros, brancos, pardos, mestiços, pobres, ricos, ignorantes, letrados, obesos, magros, baixos, altos, ... enfim, se estão por aí, é porque estão vivos. Algo possibilitou que a sua jornada desde a concepção se prologasse pelos dias a fio. Então, é sobre esse ponto que eu proponho uma reflexão profunda e sincera.

Não é surpresa para ninguém que a vida e a morte disputam as faces de uma mesma moeda. Para morrer basta estar vivo. E ninguém sabe de antemão qual é o ponto final da sua própria história, ou seja, quando e como será a sua conclusão. Mas, sabe bem que além dos próprios esforços empenhados em fazer valer esse direito, muitas variáveis estão soltas pelo caminho para interferir diretamente na dinâmica natural e interromper o fluxo.

De modo que o direito à vida não se sustenta por si mesmo, você o recebeu e pronto. Não. Não é bem assim. Sei que muita gente pensa dessa maneira. Mas, seja antes ou depois do nascimento, toda vida pede condições fundamentais para constituir o seu desenvolvimento e dar-lhe continuidade. Pelo menos em tese deveria ser assim.

Não há lugar nenhum do planeta em que a vida humana não seja marcada pela desigualdade. Algo que começa a ser percebido pelas discrepâncias da expectativa de vida, a qual representa uma análise estatística que busca estimar o tempo de sobrevivência das pessoas em um determinado espaço geográfico. No Brasil, por exemplo, segundo dados de 2020, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a expectativa de vida média é de 76,8 anos 1.

Acontece que isso muda mão apenas de cidade para cidade ou de gênero para gênero; mas, em razão do acesso à saúde física, mental e odontológica, da atividade profissional exercida, da renda disponível para a sobrevivência, da qualidade de habitação e saneamento básico, de exposição a riscos sociais, ... , ou seja, uma infinidade de fatores previsíveis e imprevisíveis, como tem sido a pandemia do Sars-Cov-2. Isso significa que essa vida se alongar ou não, não depende exclusivamente do seu próprio beneficiário. A sociedade, como um todo, acaba desempenhando um papel direto ou indireto, bastante significativo, nesse processo.

Veja o caso do jovem de 17 anos, estudante, praticante de artes marciais, trabalhador, que foi baleado no peito, na comunidade de Dourados, Cordovil, Zona Norte do Rio de Janeiro, na noite de ontem 2. Mais uma vida ceifada, entre tantas com o mesmo perfil socioeconômico, no Brasil. O que nos leva a pensar sobre os mecanismos que agem sobre as conjunturas sociais determinando quais vidas devem ser ou não importantes, quais podem ter ou não o direito de desfrutar uma existência plena e longa.

Ora, cada manchete publicada pelos veículos de informação e comunicação deixam evidenciadas as dissonâncias que regem a manutenção da vida do cidadão brasileiro. E nem se trata de uma interpretação contextualizada na contemporaneidade. Sempre foi assim.  Nem é preciso recorrer aos meios de comunicação para se deparar com um amontoado de notícias seculares; pois, a própria literatura nacional faz justiça aos relatos em diversos de seus títulos. O Cortiço (1860), de Aluísio Azevedo. Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha. Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos. Morte e Vida Severina (1955), de João Cabral de Melo Neto. Quarto de despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus. E tantos outros.

A síntese que se extrai dessa história repetitiva, não deixa dúvidas ao senso comum de que o brasileiro é mesmo um bravo, para resistir a tantas adversidades cravadas na base de um imobilismo social que resiste e persiste nas suas muitas formas e conteúdos. Que expectativa de vida, então, consegue ser párea aos flagelos da desigualdade? Nenhuma. Sobretudo às camadas mais desassistidas e vulneráveis, a vida é afrontada desde cedo para não lograr êxito. Por mais que tentem, se esforcem, que lutem com unhas e dentes, tudo faz parecer que eles foram mesmo marcados para morrer.

Já dizia João Cabral de Melo Neto, “A vida não se resolve com palavras”. Talvez, por isso, não é fácil chorar a perda, porque antes dela se chora a indignação, o descaso, a omissão, o desrespeito, o desprezo, a anticidadania, diante de tanto por se fazer. Afinal, essa crueldade acintosa desconstrói todos os discursos e narrativas que permeiam o inconsciente coletivo brasileiro, quando tentam convencê-lo de que nesse país a vida importa. Que vida, cara pálida? Uma breve passada de olhos pelas estatísticas da segurança pública para se deparar com um verdadeiro massacre que acomete as minorias, ou seja, negros, indígenas, imigrantes, mulheres, LGBTQIA+, idosos, moradores de comunidades, portadores de deficiências, moradores de rua.

Assim, aproveitando as considerações expressas acima; bem como, os ares de uma eleição que se aproxima, deixo como uma síntese oportuna, as seguintes palavras de Bertolt Brecht, que apesar de duras, cruas, de certo modo grosseiras, são diretas e objetivas para não deixar quaisquer dúvidas pairando no ar.

Segundo ele, “O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo”. E são pessoas assim, caro (a) leitor (a), que desconhecem o significado de defender a vida, de defender o ser humano.