Quando
a vida se resume em expectativas...
Por
Alessandra Leles Rocha
Sempre pensei que a defesa da
vida estivesse acima de rótulos e convenções. Não, porque a Constituição assim
se manifeste. Ou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ou quaisquer
outros instrumentos organizadores dos indivíduos enquanto coletivo denominado
humanidade. Mas, porque viver é o primeiro direito/obrigação que se recebe ao
fincar os pés nesse planeta.
Mulheres, homens, LGBTQIA+,
crianças, jovens, idosos, indígenas, negros, brancos, pardos, mestiços, pobres,
ricos, ignorantes, letrados, obesos, magros, baixos, altos, ... enfim, se estão
por aí, é porque estão vivos. Algo possibilitou que a sua jornada desde a
concepção se prologasse pelos dias a fio. Então, é sobre esse ponto que eu
proponho uma reflexão profunda e sincera.
Não é surpresa para ninguém que a
vida e a morte disputam as faces de uma mesma moeda. Para morrer basta estar
vivo. E ninguém sabe de antemão qual é o ponto final da sua própria história,
ou seja, quando e como será a sua conclusão. Mas, sabe bem que além dos próprios
esforços empenhados em fazer valer esse direito, muitas variáveis estão soltas
pelo caminho para interferir diretamente na dinâmica natural e interromper o
fluxo.
De modo que o direito à vida não
se sustenta por si mesmo, você o recebeu e pronto. Não. Não é bem assim. Sei
que muita gente pensa dessa maneira. Mas, seja antes ou depois do nascimento, toda
vida pede condições fundamentais para constituir o seu desenvolvimento e
dar-lhe continuidade. Pelo menos em tese deveria ser assim.
Não há lugar nenhum do planeta em
que a vida humana não seja marcada pela desigualdade. Algo que começa a ser
percebido pelas discrepâncias da expectativa de vida, a qual representa uma
análise estatística que busca estimar o tempo de sobrevivência das pessoas em
um determinado espaço geográfico. No Brasil, por exemplo, segundo dados de 2020,
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a expectativa de vida
média é de 76,8 anos 1.
Acontece que isso muda mão apenas
de cidade para cidade ou de gênero para gênero; mas, em razão do acesso à saúde
física, mental e odontológica, da atividade profissional exercida, da renda disponível
para a sobrevivência, da qualidade de habitação e saneamento básico, de
exposição a riscos sociais, ... , ou seja, uma infinidade de fatores previsíveis
e imprevisíveis, como tem sido a pandemia do Sars-Cov-2. Isso significa que essa
vida se alongar ou não, não depende exclusivamente do seu próprio beneficiário.
A sociedade, como um todo, acaba desempenhando um papel direto ou indireto,
bastante significativo, nesse processo.
Veja o caso do jovem de 17 anos,
estudante, praticante de artes marciais, trabalhador, que foi baleado no peito,
na comunidade de Dourados, Cordovil, Zona Norte do Rio de Janeiro, na noite de
ontem 2. Mais uma vida ceifada, entre tantas
com o mesmo perfil socioeconômico, no Brasil. O que nos leva a pensar sobre os
mecanismos que agem sobre as conjunturas sociais determinando quais vidas devem
ser ou não importantes, quais podem ter ou não o direito de desfrutar uma existência
plena e longa.
Ora, cada manchete publicada
pelos veículos de informação e comunicação deixam evidenciadas as dissonâncias que
regem a manutenção da vida do cidadão brasileiro. E nem se trata de uma
interpretação contextualizada na contemporaneidade. Sempre foi assim. Nem é preciso recorrer aos meios de
comunicação para se deparar com um amontoado de notícias seculares; pois, a própria
literatura nacional faz justiça aos relatos em diversos de seus títulos. O
Cortiço (1860), de Aluísio Azevedo. Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha. Vidas
Secas (1938), de Graciliano Ramos. Morte e Vida Severina (1955), de João Cabral
de Melo Neto. Quarto de despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus. E tantos
outros.
A síntese que se extrai dessa
história repetitiva, não deixa dúvidas ao senso comum de que o brasileiro é
mesmo um bravo, para resistir a tantas adversidades cravadas na base de um imobilismo
social que resiste e persiste nas suas muitas formas e conteúdos. Que expectativa
de vida, então, consegue ser párea aos flagelos da desigualdade? Nenhuma. Sobretudo
às camadas mais desassistidas e vulneráveis, a vida é afrontada desde cedo para
não lograr êxito. Por mais que tentem, se esforcem, que lutem com unhas e
dentes, tudo faz parecer que eles foram mesmo marcados para morrer.
Já dizia João Cabral de Melo
Neto, “A vida não se resolve com palavras”.
Talvez, por isso, não é fácil chorar a perda, porque antes dela se chora a
indignação, o descaso, a omissão, o desrespeito, o desprezo, a anticidadania,
diante de tanto por se fazer. Afinal, essa crueldade acintosa desconstrói todos
os discursos e narrativas que permeiam o inconsciente coletivo brasileiro,
quando tentam convencê-lo de que nesse país a vida importa. Que vida, cara
pálida? Uma breve passada de olhos pelas estatísticas da segurança pública para
se deparar com um verdadeiro massacre que acomete as minorias, ou seja, negros,
indígenas, imigrantes, mulheres, LGBTQIA+, idosos, moradores de comunidades,
portadores de deficiências, moradores de rua.
Assim, aproveitando as
considerações expressas acima; bem como, os ares de uma eleição que se aproxima,
deixo como uma síntese oportuna, as seguintes palavras de Bertolt Brecht, que
apesar de duras, cruas, de certo modo grosseiras, são diretas e objetivas para
não deixar quaisquer dúvidas pairando no ar.
Segundo ele, “O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem
participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o
preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio
dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se
orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que
da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de
todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos
exploradores do povo”. E são pessoas assim, caro (a) leitor (a), que desconhecem
o significado de defender a vida, de defender o ser humano.