sexta-feira, 8 de abril de 2022

Nem isso. Nem aquilo. Na verdade, um conveniente hibridismo histórico.


Nem isso. Nem aquilo. Na verdade, um conveniente hibridismo histórico.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Por mais que insistam em dissociar o passado do presente, na prática isso não é possível. A história se propaga em ondas de desdobramentos e consequências que perduram por tempos indeterminados e, algumas vezes, permanecem para sempre. Observar, então, a contemporaneidade dá bem a dimensão dessa análise.

Seja o mundo, ou mais precisamente o nosso país, a maioria dos acontecimentos nefastos que nos atingem em cheio, diariamente, estão sim, impregnados de um ranço colonial que até aqui, não conseguiu ser superado.

A importância de compreender e aceitar esse processo está justamente no fato de expandir e aprofundar as análises e reflexões, a fim de possibilitar escolhas e decisões melhor fundamentadas.

Rompendo, dessa forma, com as superficialidades que tendem a ser tão nocivas e tão incapazes de acompanhar satisfatoriamente a velocidade das transformações e evoluções sociais.

De décadas em décadas vão se imprimindo, sob formas e conteúdos variados, as mudanças no curso da história, o que significa que as conjunturas passam a sustentar barreiras que, apesar de não impedirem a reprodução de certos movimentos, impossibilitam a obtenção dos mesmos resultados obtidos anteriormente.

Assim, sob os ventos de um pleito eleitoral que se aproxima, entendo como oportuna a discussão acerca de certos aspectos da política nacional. Chega de colocar panos quentes, de contemporizar as mais absurdas situações, de esquivar da realidade, ainda que ela seja pouco palatável.

Infelizmente, a política no Brasil não trata do Brasil. Ela diz respeito a alguns indivíduos, os quais ela transforma em heróis e vilões, segundo as correntes dos movimentos do seu populismo e do seu fisiologismo, cujas bases foram alicerçadas ainda nos tempos coloniais.

Pois é, colocando reparo nas entrelinhas da história fica evidente como o espírito republicano se ajustou tão perfeitamente ao colonial, como se uma similaridade genealógica os sobrepusesse plenamente.  

Tudo em razão da gênese das suas ideologias permanecer a mesma, ou seja, atendendo aos interesses de uma minoria privilegiada, que incluiu obviamente a classe política, em detrimento do restante da população, em qualquer tempo, em qualquer lugar.

De modo que os mandatos se perdem na fiação sucessiva das eleições, sem que nada ou muito pouco seja de fato resolvido no país. E esse processo é o que mantém a população, de geração em geração, agrilhoada e cativa as mazelas sociais.

Inclusive, porque, quando a classe política se dispõe a exercer o seu papel, ou dão com uma das mãos e retiram com a outra, ou tornam tudo ainda pior, ainda mais amargo. Não sendo à toa que tudo aquilo que seria de grande importância e interesse da população é votado às pressas, na calada da noite, longe dos holofotes e da opinião pública.

Por isso, é uma pena que muitos cidadãos ainda se deixem enganar pelo racha das narrativas e discursos sustentados pela bipolarização ideológica entre a direta e a esquerda. Nossa fundamentação política não passa de uma versão repaginada e, talvez, mais caricata da monarquia.

Dinastias que se sucedem no poder em estados e municípios brasileiros, impedindo a renovação das ideias e dos paradigmas de governança. A gastança a bel prazer. A hierarquização social muito bem definida, a fim de se evitar a mobilidade. As trocas de favores, no célebre ato do “beija-mão”. Enfim...

O que de certa forma não deixa de se confundir com o ideário de direita, embora este só tenha se estabelecido no século XVIII. Assim, seja na monarquia, seja na direita, ambas aceitam de bom grado a desigualdade social como algo inevitável, natural, normal e/ou desejável.

E é justamente a partir dessa visão que se consolidam todos os eixos da sua governança. Isso quer dizer que pautas, tais como o conservadorismo, o favorecimento ao enriquecimento cada vez maior das classes dominantes, a tributação desigual, a extinção de políticas assistencialistas, a relação direta entre privilégios e meritocracia, traçam um panorama dessa afinidade.

Lamento, mas para quem pensa que a república ao nos permitir eleger a classe política pelo voto promoveu uma mudança radical, em relação à monarquia, nada disso. Há um relativismo gritante nessa ideia.

Especialmente, quando se vasculha a história e se depara com determinadas famílias detendo todo o poder político, econômico e social em certas regiões ou cidades brasileiras, como faziam os monarcas absolutistas.

Trata-se de algo que inevitavelmente leva ao surgimento de uma manipulação da decisão popular, ao longo de décadas, na medida em que as pessoas são atraídas por promessas e benesses em troca do seu apoio eleitoral. De modo que o enviesamento decisório acaba sendo uma tendência no Brasil, em todos os tempos.

Apesar de sermos uma república presidencialista, isso também se relativiza, quando pensamos em todos os momentos em que a autocracia se fez presente na governança brasileira, ajudando a manter no poder por longos períodos indivíduos com poder irrestrito.

Embora, cenograficamente estivessem cercados por auxiliares responsáveis por cada aspecto da gestão. Nesse contexto, ou eles referendavam as decisões do presidente, sem quaisquer objeções, ou eram sumariamente substituídos, removidos de suas funções.

Vale destacar que no caso brasileiro, apesar de os poderes da República serem independentes e autônomos, seus trabalhos deveriam, pelo menos em tese, ser exercidos em harmonia com os demais.

E nesse ponto, a relação entre o Executivo e o Legislativo, talvez, desequilibre essa harmonia porque veio carregada de uma nódoa colonial, configurada pela prática do fisiologismo. Ainda que o chefe do executivo possa exercer individualmente certas funções, em outras ele depende do Legislativo, ou seja, ele não governa sozinho.

Então, o acerto de um denominador comum para as decisões de governança se transformou em um jogo de interesses fisiológico, no qual certos representantes e servidores públicos decidem a partir da conquista de vantagens pessoais ou partidárias, ainda que em detrimento do bem comum.

Pode-se dizer, então, que a República se apropriou de alguma maneira da prática monárquica do “beija-mão”; que, nada mais era, do que uma troca de interesses entre o rei e seus servos, na medida em que um consolidava o seu apoio político, através da reverência simbólica, e o outro conseguia satisfazer algum pedido importante.

Portanto, a tecitura da política nacional, no campo eleitoral, se dá verdadeiramente em uma camada bem mais profunda e invisível do que a escolha dos indivíduos que irão ocupar os cargos representativos. Ela se dá nas práxis do sistema político, tornando as pessoas envolvidas em meras peças da vilania ou do heroísmo no tabuleiro desse jogo.

O que significa que, vira daqui e mexe dali, as narrativas e discursos orbitam uma ideologia que se formou pela fusão do pensamento monárquico e direitista. As tais pautas envolvendo, por exemplo, o conservadorismo, o favorecimento ao enriquecimento cada vez maior das classes dominantes, a tributação desigual, a extinção de políticas assistencialistas, a relação direta entre privilégios e meritocracia, se apresentam impressas nas plataformas da maioria dos partidos políticos concorrentes.

Assim, mudar pessoas, como acenam as eleições, transmite a ideia de uma mudança de forma; mas, não, de conteúdo. Em nenhum momento da história as demandas do país estiveram no centro dos interesses e das ações.

Em maior ou em menor escala, todos que vieram a representar o povo brasileiro cumpriram o papel mantenedor de mais do mesmo. Tendo em vista de que as engrenagens da política brasileira foram delineadas para se ajustarem a esse script.

Ora; mas, não é só por aqui que o ranço colonial atua. Na verdade, o mundo respira as influências colonialistas, a tal ponto dessa corrente de fusão do pensamento monárquico e direitista tentar se disseminar pelo planeta. Não só pelos países que foram colônia; mas, por aqueles foram metrópoles também.

Imagine só, o tamanho dos riscos que isso representa para a humanidade! Especialmente, considerando que “mais de 780 milhões de pessoas vivem abaixo do Limiar Internacional da Pobreza (com menos de 1,90 dólar por dia)” 1.

Portanto, a principal demanda que se expõe clara e objetivamente nesse século XXI é suplantar as narrativas ideologizadas por radicalismos polarizados, para se construir uma política que coloque o ser humano e o seu bem-estar e sobrevivência no centro das discussões.

Veja que do Colonialismo a humanidade saltou para as Revoluções Industriais e não parou mais na sua sanha destrutiva de si mesma. Todas as práticas empregadas, todos os modelos desenvolvidos, tudo o que foi realizado não considerou os seres humanos, sua dignidade, seus direitos fundamentais.

Então, é preciso retomar a razão. É preciso exercer o instinto natural de sobrevivência que nos habita. É preciso quebrar os velhos paradigmas e consolidar novos. Mas, para isso é preciso calar, ouvir e pensar; mas, sobretudo, se libertar das armadilhas sociais que nos rodeiam, especialmente, as redes sociais.

Como bem considerou José Saramago, “Nada há que seja verdadeiramente livre nem suficientemente democrático. Não tenhamos ilusões, a internet não veio para salvar o mundo”.

Afinal, “[...] os homens em geral julgam mais com os olhos que com as mãos; porque todos são capazes de ver, mas poucos, de sentir; todos veem aquilo que você parece, poucos tocam aquilo que você é; e estes poucos não ousam opor-se à opinião de muitos, que contam com a majestade do Estado para defendê-los [...]” (Nicolau Maquiavel – O Príncipe).

O que em síntese aponta para o modo como as redes sociais tornara-se um campo aberto e útil para o exercício das relações sociopolíticas contemporâneas. Porque, enquanto vulnerabilizam de maneira acachapante os sentidos da sociedade, elas vigiam, controlam, manipulam e punem, segundo os interesses daqueles que, de alguma forma, detêm o poder.