Conservadorismo
e hipocrisia na trilha dos fiscais da vida alheia
Por
Alessandra Leles Rocha
Foro íntimo. Como essa expressão
incomoda a humanidade desde sempre! Pois é, pensar com a própria cabeça,
decidir segundo a consciência, seria mesmo capaz de subverter as pseudorregras
de controle social? Para alguns parece que sim.
Dada a ausência ou inexistência
de um protocolo formal a ser seguido, em relação a essas tais “regras”, o foro
íntimo pode desconstruir quaisquer discursos e narrativas que venham a exceder
todo o arcabouço normativo já constituído para tecer o equilíbrio da
convivência e coexistência social.
Ora, e o que há de mais
importante na escalada contemporânea do conservadorismo, do que estabelecer
legiões de fiscais da vida alheia, hein? Sim, porque são essas pessoas que
colocam em prática as ideias desse “manual
de bons costumes”, que não pode, em hipótese alguma, ser infringido por
ninguém, ainda que sejam questões de extremo interesse particular. Como se a
presença de exceções fragilizasse a regra.
Acontece que um movimento
estapafúrdio como esse, não passa de um gigantesco muro para esconder todo tipo
de hipocrisia. Algo do tipo “faça o que
eu falo; mas, não faça o que eu faço”. Portanto, esse é o ponto.
Quando menos se espera, eis que
surge uma turba enfurecida empenhando uma verdadeira cruzada contra assuntos de
foro íntimo. Tentam passar por cima de tudo e de todos como um verdadeiro rolo
compressor, quando, a mais pura verdade, é que diante desse rebuliço, o
palavrório só funciona como uma motivação a mais para os possíveis “rebeldes transgressores” transitarem na
contramão da sua própria paz, segurança, cidadania.
Ora, ingenuidade tem limite! No
fim das contas, nenhuma histeria popular é suficientemente capaz de impedir que
qualquer ser humano mantenha suas convicções, seus pontos de vista, seus
princípios, seus valores, suas crenças, com base em argumentos rasos e equivocados,
vindos de não se sabe onde.
A verdade é que todo mundo acaba
fazendo o que lhe dá na cabeça, de um jeito ou de outro. O que faz desse
atentado contra o foro íntimo a mais pura exibição da hipocrisia conservadora.
Todo mundo com cara de paisagem. Dissimulando a rodo. Vendendo uma imagem de
“bom (a) moço (a) ”, que só funciona para os mais desavisados de plantão. Um
constrangimento de dar pena!
No entanto, em meio a esse imenso
“telhado de vidro”, que não se resume
a uma metáfora linguística, a hipocrisia pode desencadear desfechos imprevisíveis
e tão perigosos, como estilhaços dilacerantes.
Sim, porque ainda resistem
indivíduos que padecem de um medo muito maior de um eventual julgamento social
do que dos riscos que determinadas situações podem lhes causar. Infelizmente, o
medo do cancelamento, do banimento, da indiferença, do apontamento, permanece
intacto em pleno século XXI, em plena era high
tech. Graças, é claro, ao conservadorismo que tenta se restabelecer
novamente.
E enquanto uns fingem que não
fazem isso ou aquilo, e outros fingem que acreditam, o nível de pressão
psicoemocional que circula na sociedade torna-se tão acentuado, que muita gente
não suporta e busca por uma válvula de escape. Drogas lícitas e/ou ilícitas. Compulsões
diversas. Direção perigosa. ... Suicídio. Lançando, ainda mais, lenha na
fogueira do fenômeno do adoecimento social na contemporaneidade.
No entanto, a hipocrisia
conservadora permanece impedindo que se rompa com o silêncio a esse respeito e
traga à tona uma discussão reflexiva; pois, isso evidenciaria a sua
responsabilidade no processo. Como Pilatos, a hipocrisia lava suas mãos.
Mas, não para por aí. A cruzada
contra os assuntos de foro íntimo, também, silencia e domestica as pessoas
dentro de uma alienação social. As opiniões, os interesses, os gostos, tudo
passa a transitar dentro de um senso comum preestabelecido.
O propósito é que não existam
divergências, contestações, desalinhamentos. Como se o equilíbrio e a paz social,
finalmente, tivessem se tornado possíveis. Tudo é lindo. Todas as pessoas são
felizes. Não há no mundo problemas de nenhuma natureza. Esse é o resultado do
efeito manada.
E para que seja assim, é preciso
entender que toda essa rede de vigilância e observação, nas conjunturas atuais,
conta com um instrumento facilitador importantíssimo que são as redes sociais.
Quanto mais as pessoas se expõem, se visibilizam, mais elas favorecem ao
controle social e colocam em xeque o seu foro íntimo.
Afinal, as várias instâncias da
sua intimidade passam a estar disponíveis para um rigoroso sistema de
escrutínio, por pessoas que, na maioria das vezes, nem se conhece. São parte da
legião de fiscais da vida alheia, prontos para elevar seus dedos em riste e
vociferar absurdos para quem ousar desafiá-los.
No entanto, ao permitir que a
vida siga por esse caminho, muito em breve o ser humano deixará de saber quem
é, perderá a sua identidade, será uma cópia de outros tantos por aí. A vida
murchará pela ausência de diversidade, de escolhas, de antagonismos, de
criatividade, de autonomia, de autoralidade.
Porque “a maneira mais eficaz de destruir pessoas é negar e obliterar a própria compreensão da história delas” (George Orwell – 1984). Por essa razão é que há tanta gente ávida em se apropriar do direito que cada um tem sobre seu foro íntimo, especialmente, quando se trata das mulheres.