sábado, 9 de abril de 2022

Conservadorismo e hipocrisia na trilha dos fiscais da vida alheia


Conservadorismo e hipocrisia na trilha dos fiscais da vida alheia

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Foro íntimo. Como essa expressão incomoda a humanidade desde sempre! Pois é, pensar com a própria cabeça, decidir segundo a consciência, seria mesmo capaz de subverter as pseudorregras de controle social? Para alguns parece que sim.

Dada a ausência ou inexistência de um protocolo formal a ser seguido, em relação a essas tais “regras”, o foro íntimo pode desconstruir quaisquer discursos e narrativas que venham a exceder todo o arcabouço normativo já constituído para tecer o equilíbrio da convivência e coexistência social.

Ora, e o que há de mais importante na escalada contemporânea do conservadorismo, do que estabelecer legiões de fiscais da vida alheia, hein? Sim, porque são essas pessoas que colocam em prática as ideias desse “manual de bons costumes”, que não pode, em hipótese alguma, ser infringido por ninguém, ainda que sejam questões de extremo interesse particular. Como se a presença de exceções fragilizasse a regra.

Acontece que um movimento estapafúrdio como esse, não passa de um gigantesco muro para esconder todo tipo de hipocrisia. Algo do tipo “faça o que eu falo; mas, não faça o que eu faço”. Portanto, esse é o ponto.

Quando menos se espera, eis que surge uma turba enfurecida empenhando uma verdadeira cruzada contra assuntos de foro íntimo. Tentam passar por cima de tudo e de todos como um verdadeiro rolo compressor, quando, a mais pura verdade, é que diante desse rebuliço, o palavrório só funciona como uma motivação a mais para os possíveis “rebeldes transgressores” transitarem na contramão da sua própria paz, segurança, cidadania.

Ora, ingenuidade tem limite! No fim das contas, nenhuma histeria popular é suficientemente capaz de impedir que qualquer ser humano mantenha suas convicções, seus pontos de vista, seus princípios, seus valores, suas crenças, com base em argumentos rasos e equivocados, vindos de não se sabe onde.

A verdade é que todo mundo acaba fazendo o que lhe dá na cabeça, de um jeito ou de outro. O que faz desse atentado contra o foro íntimo a mais pura exibição da hipocrisia conservadora. Todo mundo com cara de paisagem. Dissimulando a rodo. Vendendo uma imagem de “bom (a) moço (a) ”, que só funciona para os mais desavisados de plantão. Um constrangimento de dar pena!

No entanto, em meio a esse imenso “telhado de vidro”, que não se resume a uma metáfora linguística, a hipocrisia pode desencadear desfechos imprevisíveis e tão perigosos, como estilhaços dilacerantes.

Sim, porque ainda resistem indivíduos que padecem de um medo muito maior de um eventual julgamento social do que dos riscos que determinadas situações podem lhes causar. Infelizmente, o medo do cancelamento, do banimento, da indiferença, do apontamento, permanece intacto em pleno século XXI, em plena era high tech. Graças, é claro, ao conservadorismo que tenta se restabelecer novamente.

E enquanto uns fingem que não fazem isso ou aquilo, e outros fingem que acreditam, o nível de pressão psicoemocional que circula na sociedade torna-se tão acentuado, que muita gente não suporta e busca por uma válvula de escape. Drogas lícitas e/ou ilícitas. Compulsões diversas. Direção perigosa. ... Suicídio. Lançando, ainda mais, lenha na fogueira do fenômeno do adoecimento social na contemporaneidade.

No entanto, a hipocrisia conservadora permanece impedindo que se rompa com o silêncio a esse respeito e traga à tona uma discussão reflexiva; pois, isso evidenciaria a sua responsabilidade no processo. Como Pilatos, a hipocrisia lava suas mãos.

Mas, não para por aí. A cruzada contra os assuntos de foro íntimo, também, silencia e domestica as pessoas dentro de uma alienação social. As opiniões, os interesses, os gostos, tudo passa a transitar dentro de um senso comum preestabelecido.

O propósito é que não existam divergências, contestações, desalinhamentos. Como se o equilíbrio e a paz social, finalmente, tivessem se tornado possíveis. Tudo é lindo. Todas as pessoas são felizes. Não há no mundo problemas de nenhuma natureza. Esse é o resultado do efeito manada.

E para que seja assim, é preciso entender que toda essa rede de vigilância e observação, nas conjunturas atuais, conta com um instrumento facilitador importantíssimo que são as redes sociais. Quanto mais as pessoas se expõem, se visibilizam, mais elas favorecem ao controle social e colocam em xeque o seu foro íntimo.

Afinal, as várias instâncias da sua intimidade passam a estar disponíveis para um rigoroso sistema de escrutínio, por pessoas que, na maioria das vezes, nem se conhece. São parte da legião de fiscais da vida alheia, prontos para elevar seus dedos em riste e vociferar absurdos para quem ousar desafiá-los.

No entanto, ao permitir que a vida siga por esse caminho, muito em breve o ser humano deixará de saber quem é, perderá a sua identidade, será uma cópia de outros tantos por aí. A vida murchará pela ausência de diversidade, de escolhas, de antagonismos, de criatividade, de autonomia, de autoralidade.

Porque “a maneira mais eficaz de destruir pessoas é negar e obliterar a própria compreensão da história delas” (George Orwell – 1984). Por essa razão é que há tanta gente ávida em se apropriar do direito que cada um tem sobre seu foro íntimo, especialmente, quando se trata das mulheres.