quinta-feira, 3 de março de 2022

O mundo das fronteiras, dos limites, das faixas amarelas...


O mundo das fronteiras, dos limites, das faixas amarelas...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Falar sobre guerra não é um assunto agradável e, nem tampouco, fácil. Mas, apesar de todos os pesares, nas suas linhas e entrelinhas ela sempre tem muito a dizer, muito a ensinar, muito a fazer pensar.

Portanto, a guerra em solo ucraniano expande o nosso olhar em relação às suas fronteiras, quando nos faz enxergar essa apropriação indébita pela Rússia, e faz descobrir até que ponto os seres humanos são capazes de ir para usar, ocupar e se apropriar da geografia do mundo.

A natureza nômade que habita os seres humanos foi, com o passar do tempo, mesclando as formas de existência sobre o planeta e criando possibilidades de estar e de transitar pelos lugares, segundo interesses, vontades e necessidades.

Sem rigores protocolares, as descobertas nesse contexto apontaram para a desobrigação de permanecer em um único lugar para sempre ou viver vagando sem destino certo. Assim, o mundo poderia ser explorado sem limites.

No entanto, outras demandas existenciais, certamente, bem mais profundas e complexas, fizeram descobrir que nossa identidade precisava ter um ponto de referência, um ponto de partida para explicar socialmente um pedaço importante de nós.

Algo para dar sentido às nossas origens, às nossas crenças, aos nossos valores, aos nossos princípios, à nossa cultura, ... enfim, o nosso habitat. Aquele lugar que nos conecta às pessoas, aos espaços, ao cotidiano, à história.

E por mais que ainda se pense assim, no curso das mudanças promovidas pelas Revoluções Industriais, as quais trouxeram um movimento de demandas e consumos impensados, o uso e ocupação do solo pelos seres humanos sofreu um impacto bastante significante e devastador.

A começar pelo fato de o habitat, que é o espaço onde os seres vivem e se desenvolvem, ter se tornado insuficiente para os desejos e aspirações humanas. Com o crescimento populacional estimulado pelos interesses das tais revoluções, logicamente, expandiu-se a necessidade de espaço.

Cidades foram criadas, ou cresceram demasiadamente, para atender aos contingentes em franco desenvolvimento. A cada ano e ciclo populacional vai se apresentando o surgimento de mais moradias, mais infraestruturas, mais serviços, mais comércios, mais indústrias, ...

Não mais que de repente, então, o uso e ocupação exacerbada do solo, que ocorre na maioria das vezes sem planejamento, sem critérios, sem as devidas análises, vai mostrando a sua verdadeira face de horror através da degradação do meio ambiente.

Retiram-se as coberturas vegetais das encostas para a construção de empreendimentos imobiliários, sem grandes preocupações com a necessidade de projetos técnicos que apontem sua viabilidade ou não.

Alteram-se cursos hídricos para dar lugar as vias de transporte. Exploram-se recursos minerais à exaustão e à custa de construção de barragens inadequadas e susceptíveis a transbordamentos e rupturas. Reduzem-se as áreas verdes nativas para ocupação por grandes empreendimentos urbanos. ...

Tudo porque o ser humano só quer satisfazer a si mesmo, na medida das possibilidades que a sociedade de consumo lhe instiga os desejos.

Não, não basta só a casa de morada. É preciso a casa de campo, a casa na praia, a casa nas montanhas. Isso sem contar os condomínios verticais e horizontais a se proliferar.

Transporte público? Não. Jamais. Tem que ter carro para cada membro da família. Daí a necessidade, cada vez maior, de vias de escoamento para o trânsito fluir a contento.

Shoppings, galerias, grandes conglomerados comerciais? Sim. Muitos. Para garantir o entretenimento e a intensa renovação das aspirações através das compras.  ...

Então, quando essa lógica se transporta da perspectiva dos indivíduos para os países, chega-se ao ponto de as fronteiras geográficas serem usurpadas.

É a satisfação maior em estado bruto, ou seja, usar, ocupar e se apropriar de espaços e lugares que pertencem objetiva e subjetivamente a outros.

Não podendo adquirir pelo princípio mercantil da compra, alguns governos se apropriam, valendo-se da beligerância. Não é uma questão de almejar para dar continuidade ou melhoria a um determinado lugar. Não, é só a satisfação de tomar para si.

Por isso, não importa a destruição, ou a carnificina instituída, ou o futuro daquela população, ... não importa absolutamente nada. É como se a “Síndrome do Imperador” saltasse da infância para ganhar a dimensão do adulto. Porém, um adulto à frente de um governo, de uma liderança.    

No caso das guerras, essa síndrome se expressa por um comportamento governamental que insiste em subjugar os demais governos. A começar, por aquele ao qual refere-se o objeto territorial de conquista.

Tudo tem que acontecer segundo os ditames e as idealizações do “Imperador”. De modo que ele exaure os esforços diplomáticos de todas as maneiras possíveis. Fake News. Convocatórias para diálogo inócuas. Condutas inesperadas. Persuasão psicológica. E por aí vai.

Então, os oponentes tendem a se cansar e, muitas vezes, flexibilizar as pautas de negociação. Acontece que, diante desse panorama, ele passa a acreditar que pode mais e segue a sua incursão conquistadora, até quando as conjunturas lhe permitirem.

Então, respirando fundo e parando por alguns segundos, é possível começar a perceber a dimensão dos desdobramentos que vêm acontecendo em decorrência do histórico processo de uso e ocupação territorial.

Sobre esse modus operandi, então, não pensem que eu não saiba que ele vigora desde muito antes das Revoluções Industriais. Sim, desde sempre, ele é uma prática habitual da história humana. No entanto, ninguém duvida do quanto ele se agravou a partir delas.

Afinal de contas, não só houve um acréscimo significativo do poderio financeiro; como, também, do desenvolvimento de instrumentos, tanto qualitativa quanto quantitativamente, importantes para a dinâmica dessas conquistas.   

De modo que para usar, ocupar e se apropriar da geografia do mundo, quando o assunto são as guerras, o enfrentamento contemporâneo dispõe de meios tecnológicos, armamentistas, nucleares, biológicos e químicos, de alto poder de destruição. Uma jogada só pode ser, portanto, fatal para a humanidade.

E tudo porque, por trás desse uso e ocupação do solo, está pesando o fato de que “Não se pode escapar do consumo: faz parte do seu metabolismo! O problema não é consumir; é o desejo insaciável de continuar consumindo... Desde o paleolítico os humanos perseguem a felicidade... Mas os desejos são infinitos. As relações humanas são sequestradas por essa mania de apropriar-se do máximo possível de coisas” (Zygmunt Bauman 1).

O resultado disso, então, é que “Jamais houve na história um período em que o medo fosse tão generalizado e alcançasse todas as áreas da nossa vida: medo do desemprego, medo da fome, medo da violência, medo do outro” (Milton Santos 2).

Afinal de contas, esse uso e ocupação territorial inadvertido, tantas vezes conseguido através das guerras, não nos permite apenas cruzar limites estritamente geográficos. Cruzamos, principalmente, limites da alma.

Não é à toa que Martha Medeiros escreveu, “[...]Mantenha-se atrás da faixa amarela, não chegue muito perto, não acerque-se de meus traumas, não invada meus mistérios, não atrite-se com meu passado, não tente entender nada: é proibido tocar no sagrado de cada um” 3.

Porque em nós e no mundo, aqui, ali e acolá, há sempre faixas amarelas, visíveis e invisíveis, impondo respeito aos limites ainda que nem saibamos, exatamente, quantos e quais seriam eles.