O
mundo das fronteiras, dos limites, das faixas amarelas...
Por
Alessandra Leles Rocha
Falar sobre guerra não é um
assunto agradável e, nem tampouco, fácil. Mas, apesar de todos os pesares, nas
suas linhas e entrelinhas ela sempre tem muito a dizer, muito a ensinar, muito
a fazer pensar.
Portanto, a guerra em solo
ucraniano expande o nosso olhar em relação às suas fronteiras, quando nos faz
enxergar essa apropriação indébita pela Rússia, e faz descobrir até que ponto os
seres humanos são capazes de ir para usar, ocupar e se apropriar da geografia
do mundo.
A natureza nômade que habita os
seres humanos foi, com o passar do tempo, mesclando as formas de existência
sobre o planeta e criando possibilidades de estar e de transitar pelos lugares,
segundo interesses, vontades e necessidades.
Sem rigores protocolares, as
descobertas nesse contexto apontaram para a desobrigação de permanecer em um
único lugar para sempre ou viver vagando sem destino certo. Assim, o mundo
poderia ser explorado sem limites.
No entanto, outras demandas
existenciais, certamente, bem mais profundas e complexas, fizeram descobrir que
nossa identidade precisava ter um ponto de referência, um ponto de partida para
explicar socialmente um pedaço importante de nós.
Algo para dar sentido às nossas
origens, às nossas crenças, aos
nossos valores, aos nossos princípios, à nossa cultura,
... enfim, o nosso habitat. Aquele lugar que nos conecta às pessoas, aos espaços,
ao cotidiano, à história.
E por mais que ainda se pense
assim, no curso das mudanças promovidas pelas Revoluções Industriais, as quais
trouxeram um movimento de demandas e consumos impensados, o uso e ocupação do
solo pelos seres humanos sofreu um impacto bastante significante e devastador.
A começar pelo fato de o habitat,
que é o espaço onde os seres vivem e se desenvolvem, ter se tornado insuficiente
para os desejos e aspirações humanas. Com o crescimento populacional estimulado
pelos interesses das tais revoluções, logicamente, expandiu-se a necessidade de
espaço.
Cidades foram criadas, ou
cresceram demasiadamente, para atender aos contingentes em franco desenvolvimento.
A cada ano e ciclo populacional vai se apresentando o surgimento de mais
moradias, mais infraestruturas, mais serviços, mais comércios, mais indústrias,
...
Não mais que de repente, então, o
uso e ocupação exacerbada do solo, que ocorre na maioria das vezes sem
planejamento, sem critérios, sem as devidas análises, vai mostrando a sua
verdadeira face de horror através da degradação do meio ambiente.
Retiram-se as coberturas vegetais
das encostas para a construção de empreendimentos imobiliários, sem grandes
preocupações com a necessidade de projetos técnicos que apontem sua viabilidade
ou não.
Alteram-se cursos hídricos para
dar lugar as vias de transporte. Exploram-se recursos minerais à exaustão e à
custa de construção de barragens inadequadas e susceptíveis a transbordamentos
e rupturas. Reduzem-se as áreas verdes nativas para ocupação por grandes
empreendimentos urbanos. ...
Tudo porque o ser humano só quer
satisfazer a si mesmo, na medida das possibilidades que a sociedade de consumo
lhe instiga os desejos.
Não, não basta só a casa de
morada. É preciso a casa de campo, a casa na praia, a casa nas montanhas. Isso
sem contar os condomínios verticais e horizontais a se proliferar.
Transporte público? Não. Jamais.
Tem que ter carro para cada membro da família. Daí a necessidade, cada vez
maior, de vias de escoamento para o trânsito fluir a contento.
Shoppings, galerias, grandes
conglomerados comerciais? Sim. Muitos. Para garantir o entretenimento e a
intensa renovação das aspirações através das compras. ...
Então, quando essa lógica se
transporta da perspectiva dos indivíduos para os países, chega-se ao ponto de as
fronteiras geográficas serem usurpadas.
É a satisfação maior em estado
bruto, ou seja, usar, ocupar e se apropriar de espaços e lugares que pertencem
objetiva e subjetivamente a outros.
Não podendo adquirir pelo
princípio mercantil da compra, alguns governos se apropriam, valendo-se da
beligerância. Não é uma questão de almejar para dar continuidade ou melhoria a
um determinado lugar. Não, é só a satisfação de tomar para si.
Por isso, não importa a
destruição, ou a carnificina instituída, ou o futuro daquela população, ... não
importa absolutamente nada. É como se a “Síndrome
do Imperador” saltasse da infância
para ganhar a dimensão do adulto. Porém, um adulto à frente de um governo, de
uma liderança.
No caso das guerras, essa
síndrome se expressa por um comportamento governamental que insiste em subjugar
os demais governos. A começar, por aquele ao qual refere-se o objeto
territorial de conquista.
Tudo tem que acontecer segundo os
ditames e as idealizações do “Imperador”.
De modo que ele exaure os esforços diplomáticos de todas as maneiras possíveis.
Fake News. Convocatórias para diálogo inócuas. Condutas inesperadas. Persuasão
psicológica. E por aí vai.
Então, os oponentes tendem a se
cansar e, muitas vezes, flexibilizar as pautas de negociação. Acontece que,
diante desse panorama, ele passa a acreditar que pode mais e segue a sua
incursão conquistadora, até quando as conjunturas lhe permitirem.
Então, respirando fundo e parando
por alguns segundos, é possível começar a perceber a dimensão dos
desdobramentos que vêm acontecendo em decorrência do histórico processo de uso
e ocupação territorial.
Sobre esse modus operandi, então, não pensem que eu não saiba que ele vigora
desde muito antes das Revoluções Industriais. Sim, desde sempre, ele é uma prática
habitual da história humana. No entanto, ninguém duvida do quanto ele se
agravou a partir delas.
Afinal de contas, não só houve um
acréscimo significativo do poderio financeiro; como, também, do desenvolvimento
de instrumentos, tanto qualitativa quanto quantitativamente, importantes para a
dinâmica dessas conquistas.
De modo que para usar, ocupar e
se apropriar da geografia do mundo, quando o assunto são as guerras, o
enfrentamento contemporâneo dispõe de meios tecnológicos, armamentistas,
nucleares, biológicos e químicos, de alto poder de destruição. Uma jogada só
pode ser, portanto, fatal para a humanidade.
E tudo porque, por trás desse uso
e ocupação do solo, está pesando o fato de que “Não se pode escapar do consumo: faz parte do seu metabolismo! O
problema não é consumir; é o desejo insaciável de continuar consumindo... Desde
o paleolítico os humanos perseguem a felicidade... Mas os desejos são
infinitos. As relações humanas são sequestradas por essa mania de apropriar-se
do máximo possível de coisas” (Zygmunt Bauman 1).
O resultado disso, então, é que “Jamais houve na história um período em que
o medo fosse tão generalizado e alcançasse todas as áreas da nossa vida: medo
do desemprego, medo da fome, medo da violência, medo do outro” (Milton Santos 2).
Afinal de contas, esse uso e
ocupação territorial inadvertido, tantas vezes conseguido através das guerras,
não nos permite apenas cruzar limites estritamente geográficos. Cruzamos,
principalmente, limites da alma.
Não é à toa que Martha Medeiros
escreveu, “[...]Mantenha-se atrás da
faixa amarela, não chegue muito perto, não acerque-se de meus traumas, não
invada meus mistérios, não atrite-se com meu passado, não tente entender nada:
é proibido tocar no sagrado de cada um” 3.
Porque em nós e no mundo, aqui, ali e acolá, há sempre faixas amarelas, visíveis e invisíveis, impondo respeito aos limites ainda que nem saibamos, exatamente, quantos e quais seriam eles.