Cuidado
com a relativização das palavras!
Por
Alessandra Leles Rocha
Como o brasileiro é hábil em
relativizar as palavras! Nos últimos três anos o governo brasileiro vem sendo
confrontado, mundialmente, por conta da devastação e das queimadas ocorridas
nos principais biomas nacionais, em especial, a Amazônia. O que gerou incômodo
e descontentamento ao Presidente da República, que decidiu responder às
manifestações a respeito, alegando que compete ao Brasil a soberania por tal
região 1.
Afinal, o temor de uma eventual ingerência
ou, até quem sabe, uma apropriação indébita por outros países, como ocorria amiúde
nos tempos coloniais, tonar-se-ia um obstáculo significativo para suas próprias
pretensões de exploração indiscriminada da região. E justamente nesse ponto, as
palavras se enviesam.
Ora, e a soberania dos povos
originários, onde é que fica nessa história? Há mais de 500 anos, as gerações
deles, pelo menos dos que sobreviveram às constantes investidas do homem branco
na região, lutam bravamente para manter a soberania sobre aquelas terras.
Razão pela qual, inclusive, emergiu
a ação sobre o Marco Temporal das Terras Indígenas, na qual um “recurso da FUNAI prevê que indígenas podem
reivindicar somente terras ocupadas por eles antes da promulgação da
Constituição de 1988, desconsiderando grupos já expulsos”2,
que deve ter o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) concluso este
ano.
E enquanto se aguarda a decisão,
o que se vê é um movimento organizado, pode-se dizer de caráter criminoso, que
visa expulsar os povos originários da sua terra natal. Isso inclui a aceleração
dos processos de devastação e queimadas na região. A presença de garimpos
ilegais e contaminação das águas e do solo por mercúrio. A desassistência total
às tribos, favorecendo a desnutrição, os surtos de malária e outras doenças,
incluindo o uso de álcool e drogas nas áreas próximas da mineração ilegal.
Portanto, a soberania dos povos
originários que se acreditava estar resguardada na Constituição Federal de
1988, artigos 231 e 232, não está. “Os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” estão sob flagrante ameaça. Apesar de a Carta Magna manifestar claramente que as
terras citadas no artigo 231, “são
inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”, ou
seja, “eles são considerados por lei os
primeiros e naturais donos desse território, sendo obrigação da União demarcar
todas as terras ocupadas originalmente por esses povos” 3.
Diante disso, qual a razão do
espanto em relação ao modo como o governo brasileiro está tratando a guerra no
leste europeu, se ele próprio relativiza o conceito de soberania? A atitude do
presidente, dias antes da invasão à Ucrânia, em se solidarizar com o governo russo,
rompeu naquele momento com o pragmatismo dos princípios da diplomacia
brasileira, ou seja, - Soberania, Autonomia, Desenvolvimento Nacional e Não-Intervenção
(exceto com autorização da Organização das Nações Unidas).
Portanto, ao desconsiderar a
soberania e a autonomia do povo ucraniano, o Brasil se colocou de maneira, no
mínimo, equivocada. Ele não só tensionou as relações diplomáticas com a Ucrânia
e seus aliados nesse momento de guerra, o que inclui a União Europeia (UE), o
Reino Unido e os EUA; mas, também, demonstrou total ausência de empatia e
solidariedade aqueles que estão sendo vítimas da beligerância russa, dentre
eles, as crianças, as mulheres e os idosos.
Em compensação, no recente
encontro ocorrido em Moscou, o presidente brasileiro agradeceu ao presidente
russo pelo apoio à soberania na Amazônia 4.
Isso significa, então, que o
Brasil não está exercendo neutralidade diplomática alguma. Infelizmente, o
presidente brasileiro faz do governo uma expressão das suas opiniões e
simpatias pessoais, subvertendo quaisquer vestígios, que possam ter restado, do
pragmatismo diplomático nacional. Mas, e
daí? Não é mesmo?
O mínimo que pode acontecer é o
pais sofrer por tabela os efeitos cascata que decorrerão das sanções impostas
pela maioria dos países pertencentes ao quadro da Organização das Nações Unidas
(ONU) à Rússia. O que em síntese diz respeito aos prejuízos ao Produto Interno
Bruto (PIB) nacional, a alta no preço dos alimentos, dos combustíveis e a
instabilidade cambial.
Acha pouco? Só que não. A “guerra deve afetar a oferta de
fertilizantes na safra de 2023. Canadá e Jordânia são opção, para a importação,
mas o preço tende a subir, pois diversos outros países irão buscar a mesma
solução” 5. Então, a ideia brilhante que surge
no governo para conter a pressão inflacionária é “defender a mineração em terras indígenas” 6.
Bem, como desgraça pouca é
bobagem... Que falta de sorte, a nossa! A carência não é só de fertilizantes para o agronegócio;
mas, também, para as nossas ideias. Onde já se viu um despautério desses! Temos
que raciocinar sobre possibilidades viáveis, exequíveis. Mineração por
mineração, não diz nada se não houver toda a cadeia de processamento mineral constituída
e apta para fabricar fertilizantes. E isso leva tempo! Sem contar que não
sabemos a capacidade dessas reservas, se elas atendem às demandas minerais para
a agricultura, enfim...
Além disso, depois do ataque
avassalador promovido contra os principais biomas brasileiros, as novas áreas “agricultáveis” terão que ter seus solos
cuidados, no sentido da recomposição das suas propriedades físicas, químicas,
mineralógicas e biológicas específicas, dado o quanto eles foram castigados
pelo fogo, pelo desmatamento, pela estiagem prolongada em diversos trechos. E isso
não só onera os custos de produção, como demanda tempo para oferecer os
resultados esperados.
Para quem não sabe, o solo do
Cerrado, por exemplo, não é naturalmente rico e, por isso, é altamente
dependente de correção através de técnicas específicas, tais como a calagem
(uso de calcário), a adubação fosfatada, a adubação potássica, adubação
nitrogenada e adubação com enxofre. Então, diante do estresse da degradação antrópica
as exigências se aprofundam ainda mais.
Portanto, paremos de relativizar
palavras, discursos, narrativas. Esse tipo de comportamento estabelece uma
realidade paralela totalmente infundada e perigosa; bem como, incapaz de mudar
o curso dos fatos. A vida não é simples. A contemporaneidade muito menos. Nada
se resolve da noite para o dia. Quem manda, quem decide, ainda é o Senhor das
Horas. É ele quem trabalha silenciosa e interruptamente tecendo as tramas
conjunturais. Assim, o ser humano é só um elemento no processo submetido aos
humores de circunstâncias previsíveis e imprevisíveis. Essa história de dizer
que “faz e acontece”, no fundo, é só
lenda urbana para boi dormir.
1 https://congressoemfoco.uol.com.br/projeto-bula/reportagem/governo-defende-soberania-brasileira-na-amazonia-em-resposta-a-macron/
https://exame.com/brasil/bolsonaro-volta-a-pregar-soberania-da-amazonia-e-a-criticar-macron/
2 https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/08/27/o-que-e-o-marco-temporal-sobre-terras-indigenas-entenda-o-que-esta-em-jogo-no-julgamento-do-stf.ghtml
3 Idem 2.
4 https://www.dw.com/pt-br/bolsonaro-agradece-a-putin-por-defender-soberania-brasileira-na-amaz%C3%B4nia/a-60803431