quarta-feira, 2 de março de 2022

Cuidado com a relativização das palavras!


Cuidado com a relativização das palavras!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Como o brasileiro é hábil em relativizar as palavras! Nos últimos três anos o governo brasileiro vem sendo confrontado, mundialmente, por conta da devastação e das queimadas ocorridas nos principais biomas nacionais, em especial, a Amazônia. O que gerou incômodo e descontentamento ao Presidente da República, que decidiu responder às manifestações a respeito, alegando que compete ao Brasil a soberania por tal região 1.

Afinal, o temor de uma eventual ingerência ou, até quem sabe, uma apropriação indébita por outros países, como ocorria amiúde nos tempos coloniais, tonar-se-ia um obstáculo significativo para suas próprias pretensões de exploração indiscriminada da região. E justamente nesse ponto, as palavras se enviesam.

Ora, e a soberania dos povos originários, onde é que fica nessa história? Há mais de 500 anos, as gerações deles, pelo menos dos que sobreviveram às constantes investidas do homem branco na região, lutam bravamente para manter a soberania sobre aquelas terras.

Razão pela qual, inclusive, emergiu a ação sobre o Marco Temporal das Terras Indígenas, na qual um “recurso da FUNAI prevê que indígenas podem reivindicar somente terras ocupadas por eles antes da promulgação da Constituição de 1988, desconsiderando grupos já expulsos”2, que deve ter o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) concluso este ano.

E enquanto se aguarda a decisão, o que se vê é um movimento organizado, pode-se dizer de caráter criminoso, que visa expulsar os povos originários da sua terra natal. Isso inclui a aceleração dos processos de devastação e queimadas na região. A presença de garimpos ilegais e contaminação das águas e do solo por mercúrio. A desassistência total às tribos, favorecendo a desnutrição, os surtos de malária e outras doenças, incluindo o uso de álcool e drogas nas áreas próximas da mineração ilegal.

Portanto, a soberania dos povos originários que se acreditava estar resguardada na Constituição Federal de 1988, artigos 231 e 232, não está. “Os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” estão sob flagrante ameaça. Apesar de  a Carta Magna manifestar claramente que as terras citadas no artigo 231, “são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”, ou seja, “eles são considerados por lei os primeiros e naturais donos desse território, sendo obrigação da União demarcar todas as terras ocupadas originalmente por esses povos” 3.

Diante disso, qual a razão do espanto em relação ao modo como o governo brasileiro está tratando a guerra no leste europeu, se ele próprio relativiza o conceito de soberania? A atitude do presidente, dias antes da invasão à Ucrânia, em se solidarizar com o governo russo, rompeu naquele momento com o pragmatismo dos princípios da diplomacia brasileira, ou seja, - Soberania, Autonomia, Desenvolvimento Nacional e Não-Intervenção (exceto com autorização da Organização das Nações Unidas).

Portanto, ao desconsiderar a soberania e a autonomia do povo ucraniano, o Brasil se colocou de maneira, no mínimo, equivocada. Ele não só tensionou as relações diplomáticas com a Ucrânia e seus aliados nesse momento de guerra, o que inclui a União Europeia (UE), o Reino Unido e os EUA; mas, também, demonstrou total ausência de empatia e solidariedade aqueles que estão sendo vítimas da beligerância russa, dentre eles, as crianças, as mulheres e os idosos.

Em compensação, no recente encontro ocorrido em Moscou, o presidente brasileiro agradeceu ao presidente russo pelo apoio à soberania na Amazônia 4.   

Isso significa, então, que o Brasil não está exercendo neutralidade diplomática alguma. Infelizmente, o presidente brasileiro faz do governo uma expressão das suas opiniões e simpatias pessoais, subvertendo quaisquer vestígios, que possam ter restado, do pragmatismo diplomático nacional.  Mas, e daí? Não é mesmo?

O mínimo que pode acontecer é o pais sofrer por tabela os efeitos cascata que decorrerão das sanções impostas pela maioria dos países pertencentes ao quadro da Organização das Nações Unidas (ONU) à Rússia. O que em síntese diz respeito aos prejuízos ao Produto Interno Bruto (PIB) nacional, a alta no preço dos alimentos, dos combustíveis e a instabilidade cambial.

Acha pouco? Só que não. A “guerra deve afetar a oferta de fertilizantes na safra de 2023. Canadá e Jordânia são opção, para a importação, mas o preço tende a subir, pois diversos outros países irão buscar a mesma solução” 5. Então, a ideia brilhante que surge no governo para conter a pressão inflacionária é “defender a mineração em terras indígenas” 6.

Bem, como desgraça pouca é bobagem... Que falta de sorte, a nossa!  A carência não é só de fertilizantes para o agronegócio; mas, também, para as nossas ideias. Onde já se viu um despautério desses! Temos que raciocinar sobre possibilidades viáveis, exequíveis. Mineração por mineração, não diz nada se não houver toda a cadeia de processamento mineral constituída e apta para fabricar fertilizantes. E isso leva tempo! Sem contar que não sabemos a capacidade dessas reservas, se elas atendem às demandas minerais para a agricultura, enfim...

Além disso, depois do ataque avassalador promovido contra os principais biomas brasileiros, as novas áreas “agricultáveis” terão que ter seus solos cuidados, no sentido da recomposição das suas propriedades físicas, químicas, mineralógicas e biológicas específicas, dado o quanto eles foram castigados pelo fogo, pelo desmatamento, pela estiagem prolongada em diversos trechos. E isso não só onera os custos de produção, como demanda tempo para oferecer os resultados esperados.

Para quem não sabe, o solo do Cerrado, por exemplo, não é naturalmente rico e, por isso, é altamente dependente de correção através de técnicas específicas, tais como a calagem (uso de calcário), a adubação fosfatada, a adubação potássica, adubação nitrogenada e adubação com enxofre. Então, diante do estresse da degradação antrópica as exigências se aprofundam ainda mais.

Portanto, paremos de relativizar palavras, discursos, narrativas. Esse tipo de comportamento estabelece uma realidade paralela totalmente infundada e perigosa; bem como, incapaz de mudar o curso dos fatos. A vida não é simples. A contemporaneidade muito menos. Nada se resolve da noite para o dia. Quem manda, quem decide, ainda é o Senhor das Horas. É ele quem trabalha silenciosa e interruptamente tecendo as tramas conjunturais. Assim, o ser humano é só um elemento no processo submetido aos humores de circunstâncias previsíveis e imprevisíveis. Essa história de dizer que “faz e acontece”, no fundo, é só lenda urbana para boi dormir.    



3 Idem 2.