A
Guerra e seus paradoxos
Por
Alessandra Leles Rocha
Em quase uma semana de guerra no
leste europeu, o mundo assiste ao paradoxo. Aproximadamente 660 mil pessoas
fugiram da Ucrânia, constituindo um dos maiores contingentes de refugiados, nos
últimos tempos, em território europeu. Enquanto as manifestações de racismo e de
xenofobia se intensificaram.
O que nos dá a dimensão exata do
quão arraigados estão os discursos de ódio disseminados na humanidade, ao ponto
de que, nem mesmo, os horrores de uma guerra são capazes de interrompê-los.
Para quê? Por quê? Nada disso faz
sentido. Nem mesmo a guerra. A raça humana vem destruindo o planeta; mas,
também, a si mesma. De uma maneira cruel, perversa, absurda, que não faz outra
coisa senão deixar um rastro de devastação e de loucura por onde passa.
É; estamos diante do
individualismo em estado bruto. Aquele que não se condói, não se comove, não se
consterna, não se arrepende, não se constrange, ... não sente. Como se a razão
e a sensibilidade tivessem sido encapsuladas por uma blindagem tão poderosa que
repulsa as emoções e os sentimentos, para só enxergar as próprias demandas, os próprios
desejos, os próprios interesses.
Então, as pessoas passam a
acreditar que estão acima dos acontecimentos, inclusive da morte, e se abstêm de
quaisquer movimentos no sentido fraternal do espírito coletivo. Por mais que
pareça vigorar um certo tipo de delírio, de idealização, entre as pessoas, no
fundo o que há, de fato, é um racionalismo tão exacerbado que as impede de
enxergar o ser humano na sua essência, sem rótulos ou estereótipos, apenas
seres humanos.
Sim, porque diante de
manifestações de racismo e xenofobia fica evidente a expressão da
racionalização individualista. Afinal, no individualismo as pessoas estabelecem
as suas próprias perspectivas sobre o que seja a convivência humana, como ela
deve acontecer, sobre quais parâmetros ela deve se pautar, quais as
justificativas que lhes parecem sustentar tudo isso, enfim.
Aí, descobrimos da pior forma
porque as guerras e os conflitos acabam; mas, a humanidade permanece a mesma.
Valores, princípios, comportamentos, ideologias arrasam a convivência e a coexistência
humana; mas, não constituem escombros materiais passíveis de serem limpos e
descartados, para abrir espaço para a reconstrução.
Não, eles são da ordem do
subjetivo, do imaterial, daquilo que vai parar e se agregar nas entranhas mais
profundas do inconsciente humano. Muitas vezes, reafirmados pelo inconsciente
coletivo, que é o reservatório dos arquétipos ou imagens primordiais, transmitido
de geração a geração pelos indivíduos.
Basta alguém ou algum fato capaz
de legitimar a manifestação desses “pretextos”,
para eles emergirem e se disseminarem como rastilho de pólvora. Mas, numa
guerra? Sim. Porque nessa situação, as pessoas não estão apenas vulneráveis,
fragilizadas, inseguras, elas sentem na pele as carências materiais e imateriais.
De modo que elas estabelecem,
ainda que equivocadamente, parâmetros de risco e ameaça para sua sobrevivência.
E o outro é sempre uma incógnita, um estranho, um desconhecido. Especialmente, quando
ele já foi socialmente pré-constituído por certos conceitos.
Acontece que, em pleno olho do
furacão, ninguém consegue dissuadir ninguém sobre isso. A tensão está no ar,
impedindo qualquer raciocínio lógico ou reflexivo. Por isso, as medidas a
respeito precisam ser objetivas e rígidas, em nome da sobrevivência e da
dignidade humana.
Mas, em contrapartida, para
aqueles que estão apenas observando e acompanhando o desenrolar da história, cabe
a reflexão e a desconstrução dos velhos paradigmas. É; a guerra possibilita
esse processo de análise crítico-reflexivo, sobre a vida, as relações sociais,
o mundo.
Porque ela, simplesmente, desnuda
a condição humana e aponta os seus altos e baixos, as suas evoluções e
involuções existenciais, os seus excessos e limites, a sua humanidade e barbárie.
Ao ponto de nos permitir enxergar os dois lados da moeda ao mesmo tempo e
extrair considerações relevantes, as quais comumente nos passam despercebidas
ou deliberadamente ocultas.
No caso do racismo e da xenofobia,
tudo isso já vem pautando as manchetes dos veículos de informação e
comunicação, há tempos. Em 2021, por exemplo, o escritório do alto Comissariado
da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH) “publicou
um relatório que lança luz sobre as violações dos direitos econômicos, sociais,
culturais, civis e políticos sofridas pelas pessoas afrodescendentes – diariamente
e em diferentes Estados e jurisdições”1.
Na ocasião, Michelle Bachelet, alta-comissária
da ACNUDH, alertou para o fato de que “O
racismo sistêmico precisa de uma resposta sistêmica. É preciso haver uma
abordagem abrangente, em vez de fragmentada, para desmantelar sistemas
arraigados em séculos de discriminação e violência. Precisamos de uma abordagem
transformadora que aborde as áreas interconectadas que impulsionam o racismo e
levam a tragédias repetidas, totalmente evitáveis, como a morte de George Floyd”2.
Em relação à xenofobia, em 2020, “de acordo com dados oficiais do ACNUR
(Alto-Comissariado das nações Unidas para Refugiados), mais de 70 milhões de pessoas
foram obrigadas a deixar seus países em função de guerras, perseguições
políticas e violação dos direitos humanos. Com o aumento da migração, a intolerância
e a xenofobia crescem na mesma medida, no mundo todo”3.
Depois do que aconteceu com os
judeus, durante a Segunda Guerra Mundial, o mundo tem hoje a percepção de que “outros povos de origem semita sofrem com a
xenofobia: árabes, palestinos e outros povos majoritariamente islâmicos. A intensa
migração de muçulmanos oriundos do Irã, Iraque, Síria, Afeganistão e de outros
países do Oriente Médio que sofrem com conflitos armados, tem revelado o
preconceito xenofóbico dos ocidentais contra esses indivíduos” 4.
Portanto, é impossível não se debruçar
sobre essa reflexão. Tendo em vista os desdobramentos imprevisíveis que esse
movimento abrupto da guerra pode provocar na realidade do racismo e da
xenofobia, no mundo contemporâneo. Inclusive, fragmentando o conflito por todo
o planeta a partir da utilização dessas manifestações político-ideológicas como
pretextos de deflagração para todos os tipos de extremismos.