terça-feira, 1 de março de 2022

A Guerra e seus paradoxos


A Guerra e seus paradoxos

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Em quase uma semana de guerra no leste europeu, o mundo assiste ao paradoxo. Aproximadamente 660 mil pessoas fugiram da Ucrânia, constituindo um dos maiores contingentes de refugiados, nos últimos tempos, em território europeu. Enquanto as manifestações de racismo e de xenofobia se intensificaram.

O que nos dá a dimensão exata do quão arraigados estão os discursos de ódio disseminados na humanidade, ao ponto de que, nem mesmo, os horrores de uma guerra são capazes de interrompê-los.

Para quê? Por quê? Nada disso faz sentido. Nem mesmo a guerra. A raça humana vem destruindo o planeta; mas, também, a si mesma. De uma maneira cruel, perversa, absurda, que não faz outra coisa senão deixar um rastro de devastação e de loucura por onde passa.

É; estamos diante do individualismo em estado bruto. Aquele que não se condói, não se comove, não se consterna, não se arrepende, não se constrange, ... não sente. Como se a razão e a sensibilidade tivessem sido encapsuladas por uma blindagem tão poderosa que repulsa as emoções e os sentimentos, para só enxergar as próprias demandas, os próprios desejos, os próprios interesses.

Então, as pessoas passam a acreditar que estão acima dos acontecimentos, inclusive da morte, e se abstêm de quaisquer movimentos no sentido fraternal do espírito coletivo. Por mais que pareça vigorar um certo tipo de delírio, de idealização, entre as pessoas, no fundo o que há, de fato, é um racionalismo tão exacerbado que as impede de enxergar o ser humano na sua essência, sem rótulos ou estereótipos, apenas seres humanos.

Sim, porque diante de manifestações de racismo e xenofobia fica evidente a expressão da racionalização individualista. Afinal, no individualismo as pessoas estabelecem as suas próprias perspectivas sobre o que seja a convivência humana, como ela deve acontecer, sobre quais parâmetros ela deve se pautar, quais as justificativas que lhes parecem sustentar tudo isso, enfim.

Aí, descobrimos da pior forma porque as guerras e os conflitos acabam; mas, a humanidade permanece a mesma. Valores, princípios, comportamentos, ideologias arrasam a convivência e a coexistência humana; mas, não constituem escombros materiais passíveis de serem limpos e descartados, para abrir espaço para a reconstrução.

Não, eles são da ordem do subjetivo, do imaterial, daquilo que vai parar e se agregar nas entranhas mais profundas do inconsciente humano. Muitas vezes, reafirmados pelo inconsciente coletivo, que é o reservatório dos arquétipos ou imagens primordiais, transmitido de geração a geração pelos indivíduos.

Basta alguém ou algum fato capaz de legitimar a manifestação desses “pretextos”, para eles emergirem e se disseminarem como rastilho de pólvora. Mas, numa guerra? Sim. Porque nessa situação, as pessoas não estão apenas vulneráveis, fragilizadas, inseguras, elas sentem na pele as carências materiais e imateriais.

De modo que elas estabelecem, ainda que equivocadamente, parâmetros de risco e ameaça para sua sobrevivência. E o outro é sempre uma incógnita, um estranho, um desconhecido. Especialmente, quando ele já foi socialmente pré-constituído por certos conceitos.

Acontece que, em pleno olho do furacão, ninguém consegue dissuadir ninguém sobre isso. A tensão está no ar, impedindo qualquer raciocínio lógico ou reflexivo. Por isso, as medidas a respeito precisam ser objetivas e rígidas, em nome da sobrevivência e da dignidade humana.

Mas, em contrapartida, para aqueles que estão apenas observando e acompanhando o desenrolar da história, cabe a reflexão e a desconstrução dos velhos paradigmas. É; a guerra possibilita esse processo de análise crítico-reflexivo, sobre a vida, as relações sociais, o mundo.

Porque ela, simplesmente, desnuda a condição humana e aponta os seus altos e baixos, as suas evoluções e involuções existenciais, os seus excessos e limites, a sua humanidade e barbárie. Ao ponto de nos permitir enxergar os dois lados da moeda ao mesmo tempo e extrair considerações relevantes, as quais comumente nos passam despercebidas ou deliberadamente ocultas.

No caso do racismo e da xenofobia, tudo isso já vem pautando as manchetes dos veículos de informação e comunicação, há tempos. Em 2021, por exemplo, o escritório do alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH) “publicou um relatório que lança luz sobre as violações dos direitos econômicos, sociais, culturais, civis e políticos sofridas pelas pessoas afrodescendentes – diariamente e em diferentes Estados e jurisdições”1.

Na ocasião, Michelle Bachelet, alta-comissária da ACNUDH, alertou para o fato de que “O racismo sistêmico precisa de uma resposta sistêmica. É preciso haver uma abordagem abrangente, em vez de fragmentada, para desmantelar sistemas arraigados em séculos de discriminação e violência. Precisamos de uma abordagem transformadora que aborde as áreas interconectadas que impulsionam o racismo e levam a tragédias repetidas, totalmente evitáveis, como a morte de George Floyd”2.

Em relação à xenofobia, em 2020, “de acordo com dados oficiais do ACNUR (Alto-Comissariado das nações Unidas para Refugiados), mais de 70 milhões de pessoas foram obrigadas a deixar seus países em função de guerras, perseguições políticas e violação dos direitos humanos. Com o aumento da migração, a intolerância e a xenofobia crescem na mesma medida, no mundo todo”3.

Depois do que aconteceu com os judeus, durante a Segunda Guerra Mundial, o mundo tem hoje a percepção de que “outros povos de origem semita sofrem com a xenofobia: árabes, palestinos e outros povos majoritariamente islâmicos. A intensa migração de muçulmanos oriundos do Irã, Iraque, Síria, Afeganistão e de outros países do Oriente Médio que sofrem com conflitos armados, tem revelado o preconceito xenofóbico dos ocidentais contra esses indivíduos” 4.

Portanto, é impossível não se debruçar sobre essa reflexão. Tendo em vista os desdobramentos imprevisíveis que esse movimento abrupto da guerra pode provocar na realidade do racismo e da xenofobia, no mundo contemporâneo. Inclusive, fragmentando o conflito por todo o planeta a partir da utilização dessas manifestações político-ideológicas como pretextos de deflagração para todos os tipos de extremismos.