sexta-feira, 11 de março de 2022

Em declínio...


Em declínio...

 

Por Isso Alessandra Leles Rocha

 

Não adianta fingir que não está vendo. Não adianta se alienar. Não adianta olhar apenas para o Brasil. Não, não adianta. A vida a partir dos últimos dois anos mexeu com a ordem e a lógica do mundo. A humanidade foi atacada diretamente no centro nervoso da dinâmica cotidiana que é o dinheiro. Os acontecimentos decorrentes da pandemia do Sars-Cov-2 e suas variantes, agora acrescidos com a guerra no leste europeu, ultrapassam a si mesmos para se resumirem em uma grande e vasta ruptura do paradigma mercantil, que vem permeando cada mínimo detalhe da vida da sociedade de consumo.

Está claro, claríssimo, que nada será como antes. Os abalos sistêmicos sobre o cenário econômico global apontam para uma mudança de rumos urgente e imediata, a partir de um realinhamento a uma nova ordem que passa, necessariamente, pela obrigatoriedade em rever as relações socioeconômicas. O que significa não somente repensar os investimentos e aplicá-los em novos modos de produção; mas, conhecendo a fundo as prioridades e necessidades que vão muito além do simples movimento de consumo. Ora, todo esse chacoalhar do planeta já sinaliza a presença de uma conjuntura em que a quantidade de recursos financeiros é inversamente proporcional as demandas, inclusive, as mais fundamentais.

Portanto, os recentes acontecimentos, de certa forma, estão nos enquadrando dentro de uma nova perspectiva socioeconômica, queiramos admitir isso ou não. Nosso grau de interferência ou de atuação nesse processo vai só até a página dois. Dali para frente, as conjunturas nos movem, nos alocam e realocam dentro de contextos surpreendentes, os quais são interconectados com outros muito maiores e complexos, ou seja, globais. De modo que tanto a escassez de recursos financeiros quanto o direcionamento e aplicação deles implica diretamente na construção do nosso dia a dia mais elementar.

Isso significa que não é uma mera questão de hierarquia social, o que está em jogo. O panorama atual diz respeito ao cerne de questões fundamentais, tais como a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, não importando em qual camada do estrato social encontram-se os indivíduos. Todos estão sendo atingidos por essa desconstrução avassaladora e assistindo in loco a proporção e a intensidade das suas perdas. Cada boleto que chega. Cada ida ao supermercado. Cada abastecimento de combustível. Cada botijão de gás. Cada mensalidade da escola. Cada reajuste do plano de saúde. Cada imprevisto cotidiano. ...

E não se trata, simplesmente, de desenvolver uma habilidade de equilibrista de pratos, da noite para o dia, a fim de sobreviver à realidade. Ainda que possível, por um certo tempo, seria insuficiente. Mais do que uma questão prática, objetiva, tudo isso tem muito a dizer e a significar em termos de subjetividade humana. O modo como percebemos, entendemos e reagimos a movimentos dessa magnitude demandam um tempo, pessoal e intransferível, de adaptação e ajustamento. Ora, não é fácil e nem simples se deparar com a sua vida, a sua história cotidiana, revirada de ponta-cabeça, obrigando você a retornar inúmeras casas no jogo, o qual você acreditava estar se saindo tão bem.

A perspectiva de sucesso construída pela sociedade de consumo ruiu. O sucesso que se expressava na manifestação concreta do ter, do comprar, do adquirir, do ostentar, ...; enquanto, desdenhava, de certo modo, as conquistas imateriais, sumiu. O sucesso, no momento atual, é bem mais modesto, mais prático, mais simples, porque ele passou a orbitar a satisfação das demandas de sobrevivência humana. Ter saúde. Ter trabalho. Ter salário. Ter comida. Ter transporte. ... enfim, ter dignidade existencial. Sentir que a sua cidadania não foi completamente dilapidada, como ele sabe que tem acontecido com milhares de pessoas que ele vê nas ruas, nas praças, nas esquinas do país.

Nesse sentido, só pode ser uma tremenda ingenuidade persistir acreditando que essa conjuntura é de caráter breve, que rapidamente vai ser superada. Lamento muito, mas transformações assim demandam décadas para atingirem um patamar de equilíbrio, no qual as pessoas e as coisas tenham conseguido se ajustar, se moldar aos novos parâmetros. Nunca para retornar ao ponto de partida, porque isso é impossível. As metamorfoses são pontos de mutação definitiva. Cada vez que acontecem, acontecem e ponto final.  

De modo que todo aquele frenesi consumista, individualista, narcísico terá que ser repensado, reavaliado, reformulado; pois, suas bases não o sustentam mais. Será preciso reaprender a olhar para a vida como ela realmente é no contexto dessa nova perspectiva. Será preciso, então, reaprender a ser nesse novo mundo, nessa nova ordem. Menos casca. Mais conteúdo. Menos supérfluos. Mais necessários. Menos eu. Mais nós. ... Difícil? Dificílimo! Ressignificar, toda uma existência, é sofrido, doído, demasiadamente complexo.

Quem assistiu ao filme O Impossível 1, de 2012, consegue extrair uma boa impressão a esse respeito. Baseado em fatos reais, o filme mostra o que aconteceu com a vida de milhares de pessoas impactadas pelos tsunamis ocorridos no Sudoeste da Ásia, em 2004. Elas não tiveram tempo de pensar, de se preparar, de se organizar. Foram levadas pelas águas. Ficaram sem absolutamente nada, além da própria vida. Muitas não foram encontradas e dadas como mortas, sem direito ao luto pleno e aos funerais apropriados. O tsunami foi o seu marco zero, o seu ponto de inflexão.  

Agora, estamos diante de outro, muito maior, de dimensões globais. Mas, que tem por base, a mesma fúria de qualquer tsunami de ação pontual. Algo que nos desnuda as aparências, as ideias, os comportamentos, as convicções, e nos deixa abraçados à nossa própria pele para recompormos uma nova identidade humana, social, nacional, cultural. Sermos nós e olharmos para um novo eu no espelho da vida, com novas crenças, novos valores, novos princípios, novas aspirações. Dentro de uma existência que caiba e nos faça caber as novas conjunturas. Por isso, não se esqueça de que no fim das contas sempre se descobre que é “Inútil fugir, inútil resistir, inútil tudo” (João Guimarães Rosa, Primeiras Estórias, 1962).



1 O Impossível – Trailer Original - https://www.youtube.com/watch?v=N6W5jbWq_h0