Em
declínio...
Por
Isso Alessandra Leles Rocha
Não adianta fingir que não está
vendo. Não adianta se alienar. Não adianta olhar apenas para o Brasil. Não, não
adianta. A vida a partir dos últimos dois anos mexeu com a ordem e a lógica do
mundo. A humanidade foi atacada diretamente no centro nervoso da dinâmica cotidiana
que é o dinheiro. Os acontecimentos decorrentes da pandemia do Sars-Cov-2 e
suas variantes, agora acrescidos com a guerra no leste europeu, ultrapassam a
si mesmos para se resumirem em uma grande e vasta ruptura do paradigma
mercantil, que vem permeando cada mínimo detalhe da vida da sociedade de
consumo.
Está claro, claríssimo, que nada
será como antes. Os abalos sistêmicos sobre o cenário econômico global apontam
para uma mudança de rumos urgente e imediata, a partir de um realinhamento a
uma nova ordem que passa, necessariamente, pela obrigatoriedade em rever as
relações socioeconômicas. O que significa não somente repensar os investimentos
e aplicá-los em novos modos de produção; mas, conhecendo a fundo as prioridades
e necessidades que vão muito além do simples movimento de consumo. Ora, todo
esse chacoalhar do planeta já sinaliza a presença de uma conjuntura em que a
quantidade de recursos financeiros é inversamente proporcional as demandas,
inclusive, as mais fundamentais.
Portanto, os recentes
acontecimentos, de certa forma, estão nos enquadrando dentro de uma nova
perspectiva socioeconômica, queiramos admitir isso ou não. Nosso grau de interferência
ou de atuação nesse processo vai só até a página dois. Dali para frente, as
conjunturas nos movem, nos alocam e realocam dentro de contextos
surpreendentes, os quais são interconectados com outros muito maiores e
complexos, ou seja, globais. De modo que tanto a escassez de recursos
financeiros quanto o direcionamento e aplicação deles implica diretamente na
construção do nosso dia a dia mais elementar.
Isso significa que não é uma mera
questão de hierarquia social, o que está em jogo. O panorama atual diz respeito
ao cerne de questões fundamentais, tais como a educação, a saúde, a
alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados,
não importando em qual camada do estrato social encontram-se os indivíduos. Todos
estão sendo atingidos por essa desconstrução avassaladora e assistindo in loco a proporção e a intensidade das
suas perdas. Cada boleto que chega. Cada ida ao supermercado. Cada abastecimento
de combustível. Cada botijão de gás. Cada mensalidade da escola. Cada reajuste
do plano de saúde. Cada imprevisto cotidiano. ...
E não se trata, simplesmente, de desenvolver
uma habilidade de equilibrista de pratos, da noite para o dia, a fim de sobreviver
à realidade. Ainda que possível, por um certo tempo, seria insuficiente. Mais do
que uma questão prática, objetiva, tudo isso tem muito a dizer e a significar
em termos de subjetividade humana. O modo como percebemos, entendemos e reagimos
a movimentos dessa magnitude demandam um tempo, pessoal e intransferível, de
adaptação e ajustamento. Ora, não é fácil e nem simples se deparar com a sua
vida, a sua história cotidiana, revirada de ponta-cabeça, obrigando você a
retornar inúmeras casas no jogo, o qual você acreditava estar se saindo tão
bem.
A perspectiva de sucesso construída
pela sociedade de consumo ruiu. O sucesso que se expressava na manifestação
concreta do ter, do comprar, do adquirir, do ostentar, ...; enquanto,
desdenhava, de certo modo, as conquistas imateriais, sumiu. O sucesso, no
momento atual, é bem mais modesto, mais prático, mais simples, porque ele passou
a orbitar a satisfação das demandas de sobrevivência humana. Ter saúde. Ter trabalho.
Ter salário. Ter comida. Ter transporte. ... enfim, ter dignidade existencial. Sentir
que a sua cidadania não foi completamente dilapidada, como ele sabe que tem
acontecido com milhares de pessoas que ele vê nas ruas, nas praças, nas
esquinas do país.
Nesse sentido, só pode ser uma
tremenda ingenuidade persistir acreditando que essa conjuntura é de caráter breve,
que rapidamente vai ser superada. Lamento muito, mas transformações assim
demandam décadas para atingirem um patamar de equilíbrio, no qual as pessoas e
as coisas tenham conseguido se ajustar, se moldar aos novos parâmetros. Nunca para
retornar ao ponto de partida, porque isso é impossível. As metamorfoses são
pontos de mutação definitiva. Cada vez que acontecem, acontecem e ponto final.
De modo que todo aquele frenesi
consumista, individualista, narcísico terá que ser repensado, reavaliado,
reformulado; pois, suas bases não o sustentam mais. Será preciso reaprender a
olhar para a vida como ela realmente é no contexto dessa nova perspectiva. Será
preciso, então, reaprender a ser nesse novo mundo, nessa nova ordem. Menos casca.
Mais conteúdo. Menos supérfluos. Mais necessários. Menos eu. Mais nós. ... Difícil?
Dificílimo! Ressignificar, toda uma existência, é sofrido, doído, demasiadamente
complexo.
Quem assistiu ao filme O Impossível 1,
de 2012, consegue extrair uma boa impressão a esse respeito. Baseado em fatos
reais, o filme mostra o que aconteceu com a vida de milhares de pessoas impactadas
pelos tsunamis ocorridos no Sudoeste da Ásia, em 2004. Elas não tiveram tempo
de pensar, de se preparar, de se organizar. Foram levadas pelas águas. Ficaram sem
absolutamente nada, além da própria vida. Muitas não foram encontradas e dadas
como mortas, sem direito ao luto pleno e aos funerais apropriados. O tsunami
foi o seu marco zero, o seu ponto de inflexão.
Agora, estamos diante de outro,
muito maior, de dimensões globais. Mas, que tem por base, a mesma fúria de
qualquer tsunami de ação pontual. Algo que nos desnuda as aparências, as
ideias, os comportamentos, as convicções, e nos deixa abraçados à nossa própria
pele para recompormos uma nova identidade humana, social, nacional, cultural. Sermos
nós e olharmos para um novo eu no espelho da vida, com novas crenças, novos
valores, novos princípios, novas aspirações. Dentro de uma existência que caiba
e nos faça caber as novas conjunturas. Por isso, não se esqueça de que no fim
das contas sempre se descobre que é “Inútil
fugir, inútil resistir, inútil tudo” (João Guimarães Rosa, Primeiras Estórias,
1962).