A
Semântica e a Guerra
Por
Alessandra Leles Rocha
Mais uma guerra. Mais um
amontoado de lições duras e cruéis. Mais uma legião de milhões de refugiados e
de deslocados territoriais. Mais um contingente de mortos e feridos. Mais um
cenário de devastação e escombros. Mais uma manifestação explícita da
incapacidade dialógica e do sentido objetivo da lógica. ... Lá se vão 15 dias, assim,
no leste europeu e, por tabela, no restante do planeta.
Se todas as outras guerras passam
distantes na memória de muitos, em razão do tempo em que ocorreram, essa tem
sido mais do que suficiente para trazer à tona reflexões profundas. Porque ela
não é diferente de nenhuma outra já ocorrida. Ela tem em si todos os componentes
do absurdo, da barbárie, da loucura, da insensatez. Basta olhar, ainda que,
pelas lentes dos veículos de comunicação e de informação.
Eu não sei vocês; mas, para mim,
as palavras e expressões usadas para definir as guerras são equivocadas ou
tomaram para si uma significância que, de fato, não lhes pertence. Poder. Influência.
Superioridade. Força. Coragem. Riqueza. Combatividade. ... não retratam
fidedignamente as guerras, tendo em vista que elas não passam de uma visão
ampliada dos conflitos menores que a humanidade insiste em estabelecer todos
dias, dada a mais pura incompetência na arte da convivência, da coexistência e
do diálogo.
Verdade seja dita, os motivos e
razões que nos levam às pequenas dissonâncias cotidianas são tão banais quanto as
das guerras. Por trás de todas elas há sempre um traço de vaidade, de arrogância,
de pequenez, de mesquinhez, de orgulho ferido, de narcisismo, de ego
exacerbado, que poderia, se houvesse vontade e disposição, ser superado pelo
bom entendimento, pela exposição franca e objetiva das opiniões, pela busca de
um consenso, ainda que, minimamente ajustável.
Acontece que se as pessoas agissem
dessa maneira, elas perderiam todos os subterfúgios, as desculpas, os
pretextos, e não poderiam mais se abster das suas reais obrigações e deveres. Afinal
de contas, é preciso muito poder, muita influência, muita superioridade, muita
força, muita coragem, muita riqueza, muita combatividade, para resolver
problemas e mazelas sociais que se arrastam por séculos e séculos, enquanto se
permitia à vida acontecer nos submundos das guerras.
Lamento; mas, não há poder, nem
influência, nem superioridade, nem força, nem coragem, nem riqueza, nem
combatividade, nas guerras. O que elas fazem é soterrar escombros sobre
escombros. Para que toda a inação, a incompetência, a incapacidade, a
inabilidade, a avareza, a mesquinhez e tantas outras manifestações da psique
humana possam ser invisibilizadas a tal ponto que não caibam questionamentos a
seu respeito. Guerras são sim, cortinas de fumaça bastante eficientes para as
relações sociais. Elas desviam o foco daquilo que é realmente importante, urgente,
necessário, vital.
Viu só? As guerras são, nada mais
nada menos, um tipo de armadura para os fracos. Um refúgio, um búnquer, um
esconderijo, para que eles não precisem encarar os desafios e os pesos da vida
cotidiana. Nossa! E quantos fracos não transitam por aí, não é mesmo? Valentões
de meia pataca. Que passam a vida assombrados e assombrando pela certeza de não
serem capazes de resolver nada dentro daquilo que se propuseram fazer, nos mais
diferentes campos da vida.
E apesar de ser possível
entender, ou identificar, ou reconhecer esse modus operandi, tudo isso não muda, nem diminui, nem alivia, a dor
e o sofrimento que as guerras produzidas por essas pessoas são capazes de
causar. Como diz uma canção que eu adoro, “[...]
As brigas que ganhei / Nem um troféu / Como lembrança / Pra casa eu levei / As
brigas que perdi / Estas sim / Eu nunca esqueci / Eu nunca esqueci [...]” 1, porque elas nos posicionam
exatamente dentro de uma insignificância, de uma ausência de sentido, total.
Como se a guerra, o conflito, a briga, fosse um ato irrefletido, inconsequente,
imprudente, totalmente desnecessário. O que, na verdade, muitas vezes é.
Basta, então, voltar os olhos e
as mentes ao exemplo mais recente. A insensatez não precisou de muitos dias
para extrapolar as fronteiras do caos, pelo mundo. Um mundo que, por sinal, já
vinha catando seus caquinhos, nos últimos dois anos, por conta de uma pandemia.
A guerra trouxe a apreensão, o medo, uma avalanche de incertezas antigas e
novas, o empobrecimento, as violências, a escassez, a penúria, o grande desafio
de recomeçar, de reconstruir, de se reerguer.
De repente, então, a gente
descobre que não é a guerra; mas, o pós-guerra que tende a merecer mais uma vez
o destaque, com letras maiúsculas e negrito, de toda a grandeza sutil forjada
pelo seu poder, sua influência, sua superioridade, sua força, sua coragem, sua
riqueza, sua combatividade. Traços que só se tornam possíveis de visualizar,
quando pela força do sangue, do suor e das lágrimas derramados, ainda que estúpida
e equivocadamente, despertam das profundezas da subjetividade humana, para
revelar o que de fato nos habita.
Afinal de contas, só depois de o corpo ficar cravado de feridas, escalpelado por tantas ranhuras físicas e morais, é que o ser humano, de certa forma, compreende que para cuidar de si e do mundo precisa encontrar-se com seu poder de ação, com sua influência apaziguadora, com sua superior humildade, com sua força inata, com sua coragem comedida, com sua riqueza de alma, com sua combatividade fraterna. Como escreveu João Guimarães Rosa, “Viver é uma questão de rasgar-se e remendar-se” (Tutameia – Terceiras Estórias, 1967). Um dia, quem sabe, não se aprende a rasgar-se menos, a remendar-se menos, e aceitar-se a si e aos outros com mais generosidade e afeto.