quinta-feira, 10 de março de 2022

A Semântica e a Guerra


A Semântica e a Guerra

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Mais uma guerra. Mais um amontoado de lições duras e cruéis. Mais uma legião de milhões de refugiados e de deslocados territoriais. Mais um contingente de mortos e feridos. Mais um cenário de devastação e escombros. Mais uma manifestação explícita da incapacidade dialógica e do sentido objetivo da lógica. ... Lá se vão 15 dias, assim, no leste europeu e, por tabela, no restante do planeta.

Se todas as outras guerras passam distantes na memória de muitos, em razão do tempo em que ocorreram, essa tem sido mais do que suficiente para trazer à tona reflexões profundas. Porque ela não é diferente de nenhuma outra já ocorrida. Ela tem em si todos os componentes do absurdo, da barbárie, da loucura, da insensatez. Basta olhar, ainda que, pelas lentes dos veículos de comunicação e de informação.

Eu não sei vocês; mas, para mim, as palavras e expressões usadas para definir as guerras são equivocadas ou tomaram para si uma significância que, de fato, não lhes pertence. Poder. Influência. Superioridade. Força. Coragem. Riqueza. Combatividade. ... não retratam fidedignamente as guerras, tendo em vista que elas não passam de uma visão ampliada dos conflitos menores que a humanidade insiste em estabelecer todos dias, dada a mais pura incompetência na arte da convivência, da coexistência e do diálogo.

Verdade seja dita, os motivos e razões que nos levam às pequenas dissonâncias cotidianas são tão banais quanto as das guerras. Por trás de todas elas há sempre um traço de vaidade, de arrogância, de pequenez, de mesquinhez, de orgulho ferido, de narcisismo, de ego exacerbado, que poderia, se houvesse vontade e disposição, ser superado pelo bom entendimento, pela exposição franca e objetiva das opiniões, pela busca de um consenso, ainda que, minimamente ajustável.

Acontece que se as pessoas agissem dessa maneira, elas perderiam todos os subterfúgios, as desculpas, os pretextos, e não poderiam mais se abster das suas reais obrigações e deveres. Afinal de contas, é preciso muito poder, muita influência, muita superioridade, muita força, muita coragem, muita riqueza, muita combatividade, para resolver problemas e mazelas sociais que se arrastam por séculos e séculos, enquanto se permitia à vida acontecer nos submundos das guerras.

Lamento; mas, não há poder, nem influência, nem superioridade, nem força, nem coragem, nem riqueza, nem combatividade, nas guerras. O que elas fazem é soterrar escombros sobre escombros. Para que toda a inação, a incompetência, a incapacidade, a inabilidade, a avareza, a mesquinhez e tantas outras manifestações da psique humana possam ser invisibilizadas a tal ponto que não caibam questionamentos a seu respeito. Guerras são sim, cortinas de fumaça bastante eficientes para as relações sociais. Elas desviam o foco daquilo que é realmente importante, urgente, necessário, vital.

Viu só? As guerras são, nada mais nada menos, um tipo de armadura para os fracos. Um refúgio, um búnquer, um esconderijo, para que eles não precisem encarar os desafios e os pesos da vida cotidiana. Nossa! E quantos fracos não transitam por aí, não é mesmo? Valentões de meia pataca. Que passam a vida assombrados e assombrando pela certeza de não serem capazes de resolver nada dentro daquilo que se propuseram fazer, nos mais diferentes campos da vida.

E apesar de ser possível entender, ou identificar, ou reconhecer esse modus operandi, tudo isso não muda, nem diminui, nem alivia, a dor e o sofrimento que as guerras produzidas por essas pessoas são capazes de causar. Como diz uma canção que eu adoro, “[...] As brigas que ganhei / Nem um troféu / Como lembrança / Pra casa eu levei / As brigas que perdi / Estas sim / Eu nunca esqueci / Eu nunca esqueci [...]” 1, porque elas nos posicionam exatamente dentro de uma insignificância, de uma ausência de sentido, total. Como se a guerra, o conflito, a briga, fosse um ato irrefletido, inconsequente, imprudente, totalmente desnecessário. O que, na verdade, muitas vezes é.  

Basta, então, voltar os olhos e as mentes ao exemplo mais recente. A insensatez não precisou de muitos dias para extrapolar as fronteiras do caos, pelo mundo. Um mundo que, por sinal, já vinha catando seus caquinhos, nos últimos dois anos, por conta de uma pandemia. A guerra trouxe a apreensão, o medo, uma avalanche de incertezas antigas e novas, o empobrecimento, as violências, a escassez, a penúria, o grande desafio de recomeçar, de reconstruir, de se reerguer.

De repente, então, a gente descobre que não é a guerra; mas, o pós-guerra que tende a merecer mais uma vez o destaque, com letras maiúsculas e negrito, de toda a grandeza sutil forjada pelo seu poder, sua influência, sua superioridade, sua força, sua coragem, sua riqueza, sua combatividade. Traços que só se tornam possíveis de visualizar, quando pela força do sangue, do suor e das lágrimas derramados, ainda que estúpida e equivocadamente, despertam das profundezas da subjetividade humana, para revelar o que de fato nos habita.   

Afinal de contas, só depois de o corpo ficar cravado de feridas, escalpelado por tantas ranhuras físicas e morais, é que o ser humano, de certa forma, compreende que para cuidar de si e do mundo precisa encontrar-se com seu poder de ação, com sua influência apaziguadora, com sua superior humildade, com sua força inata, com sua coragem comedida, com sua riqueza de alma, com sua combatividade fraterna. Como escreveu João Guimarães Rosa, “Viver é uma questão de rasgar-se e remendar-se” (Tutameia – Terceiras Estórias, 1967). Um dia, quem sabe, não se aprende a rasgar-se menos, a remendar-se menos, e aceitar-se a si e aos outros com mais generosidade e afeto.



1 Perdendo Dentes (Fernanda Takai) - https://www.letras.mus.br/pato-fu/30235/