A
verdade é que a morte não precisa de pretextos...
Por
Alessandra Leles Rocha
Na semana em que a Rússia acusa
os EUA de financiar laboratórios ucranianos para o desenvolvimento de armas
biológicas1, este parece ser o limite para a
humanidade parar de discutir o mundo contemporâneo através de recortes e
polarizações.
Primeiro, em razão dos inúmeros
casos de envenenamento de opositores atribuídos ao próprio governo russo, ao
longo das últimas décadas 2.
Segundo, pelo fato de que o desenvolvimento das Ciências e das Tecnologias
possibilitou ultrapassar as fronteiras das grandes potências mundiais no setor,
e tornar esse tipo de ameaça possível ao alcance de qualquer um.
No entanto, não é sobre essas
obviedades que os olhos e mentes humanas deveriam dedicar sua atenção. A
pergunta que não quer calar é: qual a razão da humanidade produzir e disseminar
armas químicas e biológicas, considerando que o potencial de letalidade delas é
muito maior, muito mais rápido, muito mais efetivo?
Armas químicas e biológicas são,
portanto, mecanismos de extinção em massa da população. O que significa que
elas extinguem quaisquer ideias de disputa, presentes nos discursos e
narrativas de guerra. Não é uma questão de território, ou de bens, ou de
patrimônios, ou de poder, ou de glória.
Nos últimos dois anos, a raça
humana tem tido a oportunidade de experimentar a vivência de uma pandemia. De
uma hora para outra, um inimigo desconhecido e invisível começou a dizimar
milhares de pessoas em todo o planeta.
Ninguém estava minimamente
preparado para tal acontecimento. Não havia medicamentos para tratar. Não havia
protocolos para seguir. Não havia vacinas desenvolvidas. Não havia equipes e
suprimentos suficientes para atender as demandas. Enfim...
Tudo por conta de um vírus,
originário de algum hospedeiro silvestre, que encontrou compatibilidade para
infectar e se reproduzir no organismo humano. Algo comum e passível de
acontecer, como já aconteceu outras tantas vezes na história da humanidade, e
não apenas com vírus; mas, também, com bactérias, fungos, protozoários.
De modo que na dinâmica do
cotidiano, em todo o planeta, relatam-se surtos e epidemias constantemente.
Algo que pode ser justificado pelos eventos climáticos extremos que perturbam
diretamente a salubridade dos espaços geográficos. Afinal, estações de
tratamento de água e esgoto são destruídas ou severamente danificadas,
interrompendo os serviços e limitando a eficiência deles.
Ou pelo desmatamento e queimadas
que destroem o equilíbrio dos biomas e favorecem o escape e o trânsito desses
microorganismos a partir de espécies hospedeiras que se encontram na fauna
desses locais.
E como não se pode negar, também,
pelo fluxo migratório, cada vez mais intenso, de seres humanos, cujas condições
de deslocamento ampliam as possibilidades de contaminação por doenças, muitas
das quais, essas pessoas não dispõem de imunidade prévia. Como é o caso do
Sarampo, da Poliomielite, por exemplo.
Aliás, é bom lembrar que, por
mais que a Ciência tenha intensificado seus esforços na descoberta e na
fabricação de imunobiológicos e vacinas, ainda há no mundo uma infinidade de
doenças sem cura e sem tratamento, no mínimo, paliativo. Sem contar, a
desigualdade mundial no que diz respeito ao acesso daquilo que já se tem
disponível.
Apesar da nossa indiferença
trivial, que não nos permite reflexões mais apuradas sobre certos assuntos, é
bom ressaltar que nem a urbanização, nem o progresso, nem o desenvolvimento científico
e tecnológico foram suficientes para nos blindar de uma guerra biológica que
acontece a luz do dia em qualquer lugar, pelo simples fato de existirem
inúmeras doenças conhecidas e desconhecidas circulando entre nós.
Aglomerações. Transportes coletivos.
Maçanetas. Corrimãos. Assentos públicos. Objetos de uso comum. ... A ameaça
biológica pode estar em qualquer lugar, a qualquer hora, trazida por qualquer
ser humano ou por qualquer animal. Doenças que podem não nos afetar
severamente; mas, que podem matar ou sequelar, dependendo da disposição e da
fragilidade orgânica dos corpos que ela atinge.
Porque doença não é receita de
bolo, não é conta exata. Doenças são incógnitas, variáveis, imprevisíveis
dentro de certas previsibilidades como a insegurança alimentar, as poluições e
contaminações químicas espalhadas por aí, a insalubridade dos ambientes em que
se transita e reside, as disfunções bioquímicas e fisiológicas do próprio
corpo, a carga genética que se carrega, ...
Do mesmo modo, quando se trata de
armas químicas. Nosso ar, nossa água, nosso solo, nosso ambiente está
totalmente contaminado por resíduos químicos extremamente nocivos e perigosos.
Nem sabemos quais ou quantos são,
porque eles são dispersos ininterruptamente pelas mais variadas fontes
agrícolas e industriais e nos chegam envoltos por uma aura de inviabilidade e
normalidade. Alguns são tão potentes que causam extermínio rápido. Outros agem
de maneira lenta e gradual, arrastando os indivíduos para um sofrimento atroz.
Ora, porque motivo, quando se
levanta a discussão em torno de uma potencial guerra biológica e/ou química, as
pessoas ficam tão aterrorizadas e aflitas, hein? Desde os primórdios da
humanidade essas práxis são conhecidas! Flechas contaminadas com fezes de
animais. A morte do filósofo Sócrates por envenenamento com Cicuta. ...
A questão é que ao se discutir o
assunto no campo da beligerância instituída, as pessoas são obrigadas a pensar
a respeito, a lidar com o desconforto de uma realidade, a qual tentam passar
indiferentes a maior parte do tempo.
Além disso, elas se defrontam com
a barbárie humana em estado bruto, porque as justificativas para o conflito,
para a guerra, se desfazem diante da vontade explícita do extermínio coletivo da
própria espécie. Como se vê, Thomas Hobbes tinha mesmo razão, “O homem é o lobo do homem”.
E para isso, ele utiliza aquilo
que está ao alcance das próprias mãos. As armas químicas e biológicas derivam
de experimentos a partir do que já se tem disponível e circulante entre nós.
Aquilo que já se conhece, pelo menos significativamente, em termos de potencial
destruidor. Então, eles analisam as possibilidades dentro das facilidades de
acesso e aquisição dessas armas.
No campo das armas biológicas,
segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), nos EUA, elas são
classificadas em três categorias – A (Altíssimo risco. Ex: Varíola, Tularemia,
Peste Negra, Botulismo, Antraz), B (Graves. Ex: Tifo, Encefalite viral,
Brucelose, Cólera), C (Doenças infectocontagiosas emergentes. Ex: Vírus Nipah,
Hantavírus) 3.
A maioria das pessoas já ouviu
falar pelo menos em uma dessas doenças, fora do contexto de guerra ou de arma
biológica. Recentemente, em 2021, por exemplo, “um surto de cólera deixou mais de 2.300 mortos na Nigéria” 4. Mas, talvez seja como arma que
elas se tornam inesquecíveis. Quem não se lembra, do envio de correspondências
nos EUA, logo após o 11 de Setembro, contendo a bactéria Bacillus anthracis 5? Cinco
pessoas morreram na ocasião.
Quanto as armas químicas, embora
sejam derivadas, também, de produtos conhecidos pela Ciência, os quais “contêm
toxinas ou substâncias químicas que atacam os sistemas do corpo humano” 6, elas demandam uma certa
sofisticação logística para sua confecção. Isso porque, elas se dividem em
agentes sufocantes (Ex: Fosfogênio), agentes neurotóxicos (Ex: Novichok) e
agentes vesicantes (Ex: Gás Mostarda).
Um dos exemplos mais emblemáticos
desse tipo de arma está no registro da foto da menina vietnamita, correndo nua,
com partes do corpo queimados pelo NaPalm (mistura de Naftenato de alumínio e
Palmitato de alumínio mono e di-hidroxilados associado a um conjunto de
líquidos inflamáveis à base de gasolina gelificada), durante a Guerra do
Vietnã.
Diante desse breve exposto, então,
a discussão não se concentra ou resume em ter ou não armas químicas ou
biológicas. Em utilizá-las ou não, nessa ou em qualquer outra guerra. Se
concentra no fato de que a raça humana se permitiu colocar na posição de alvo
de um extermínio muito bem arquitetado, que vem agindo sob diferentes vieses,
diariamente, em diferentes lugares do planeta.
Veja bem, mais de 6 milhões de
pessoas já morreram pela COVID-19, no prazo de dois anos. Uma fatalidade
promovida pelo imponderável da vida, na forma de um vírus. Mas quantas estão ao
mesmo tempo morrendo pela desassistência e abandono social, pela fome, pela violência
armada, pela violência psicológica, pela exposição e vulnerabilização as demais
doenças e agentes químicos?
Portanto, as guerras, as armas, as
estratégias narrativas, os discursos, são apenas pretextos adicionais para esse
processo funesto. Enquanto os seres humanos fecham seus olhos para o triste fim
de seus pares, se esquecem de que podem ser os próximos nessa fila macabra.
Que a tecitura dos dias, das
relações, das coexistências, das convivências, está nos levando inevitavelmente
para os braços da morte. Armados pela arrogância e a prepotência de uma gula incontrolável
quanto aos desejos e consumos, o ser humano perdeu o senso, perdeu a prudência,
perdeu a noção dos perigos.
Olha para o mundo e para a vida,
como quem olha para centenas de quilômetros adiante, o que lhe traz a falsa
sensação de que não poderia ser atacado, ou atingido, ou morto por nada ou
ninguém. Entretanto, tudo está logo ali, ao alcance das suas mãos, do seu
corpo, da sua vida.
Por isso, não nos esqueçamos de
que a morte não perde as oportunidades. Ela é sempre inexorável. A verdade é
que ela não precisa de pretextos. O que
o próprio ser humano decidiu fazer é facilitar, ainda mais, a sua empreitada. Afinal,
quaisquer que sejam as conjunturas ou circunstâncias, a vida lhe basta como
razão e justificativa para agir.
1 https://www.dw.com/pt-br/onu-rejeita-acusa%C3%A7%C3%B5es-russas-de-armas-qu%C3%ADmicas-na-ucr%C3%A2nia/a-61103949
2 https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/02/governo-da-russia-e-novamente-acusado-de-envenenar-opositor.html
4 https://gauchazh.clicrbs.com.br/mundo/noticia/2021/09/nigeria-registra-mais-de-2-300-mortes-por-colera-desde-o-inicio-do-ano-cktt422we003501eb6nxqzjbe.html