sábado, 12 de março de 2022

A verdade é que a morte não precisa de pretextos...


A verdade é que a morte não precisa de pretextos...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Na semana em que a Rússia acusa os EUA de financiar laboratórios ucranianos para o desenvolvimento de armas biológicas1, este parece ser o limite para a humanidade parar de discutir o mundo contemporâneo através de recortes e polarizações.

Primeiro, em razão dos inúmeros casos de envenenamento de opositores atribuídos ao próprio governo russo, ao longo das últimas décadas 2. Segundo, pelo fato de que o desenvolvimento das Ciências e das Tecnologias possibilitou ultrapassar as fronteiras das grandes potências mundiais no setor, e tornar esse tipo de ameaça possível ao alcance de qualquer um. 

No entanto, não é sobre essas obviedades que os olhos e mentes humanas deveriam dedicar sua atenção. A pergunta que não quer calar é: qual a razão da humanidade produzir e disseminar armas químicas e biológicas, considerando que o potencial de letalidade delas é muito maior, muito mais rápido, muito mais efetivo?

Armas químicas e biológicas são, portanto, mecanismos de extinção em massa da população. O que significa que elas extinguem quaisquer ideias de disputa, presentes nos discursos e narrativas de guerra. Não é uma questão de território, ou de bens, ou de patrimônios, ou de poder, ou de glória.

Nos últimos dois anos, a raça humana tem tido a oportunidade de experimentar a vivência de uma pandemia. De uma hora para outra, um inimigo desconhecido e invisível começou a dizimar milhares de pessoas em todo o planeta.

Ninguém estava minimamente preparado para tal acontecimento. Não havia medicamentos para tratar. Não havia protocolos para seguir. Não havia vacinas desenvolvidas. Não havia equipes e suprimentos suficientes para atender as demandas. Enfim...

Tudo por conta de um vírus, originário de algum hospedeiro silvestre, que encontrou compatibilidade para infectar e se reproduzir no organismo humano. Algo comum e passível de acontecer, como já aconteceu outras tantas vezes na história da humanidade, e não apenas com vírus; mas, também, com bactérias, fungos, protozoários.

De modo que na dinâmica do cotidiano, em todo o planeta, relatam-se surtos e epidemias constantemente. Algo que pode ser justificado pelos eventos climáticos extremos que perturbam diretamente a salubridade dos espaços geográficos. Afinal, estações de tratamento de água e esgoto são destruídas ou severamente danificadas, interrompendo os serviços e limitando a eficiência deles.

Ou pelo desmatamento e queimadas que destroem o equilíbrio dos biomas e favorecem o escape e o trânsito desses microorganismos a partir de espécies hospedeiras que se encontram na fauna desses locais.

E como não se pode negar, também, pelo fluxo migratório, cada vez mais intenso, de seres humanos, cujas condições de deslocamento ampliam as possibilidades de contaminação por doenças, muitas das quais, essas pessoas não dispõem de imunidade prévia. Como é o caso do Sarampo, da Poliomielite, por exemplo.

Aliás, é bom lembrar que, por mais que a Ciência tenha intensificado seus esforços na descoberta e na fabricação de imunobiológicos e vacinas, ainda há no mundo uma infinidade de doenças sem cura e sem tratamento, no mínimo, paliativo. Sem contar, a desigualdade mundial no que diz respeito ao acesso daquilo que já se tem disponível.

Apesar da nossa indiferença trivial, que não nos permite reflexões mais apuradas sobre certos assuntos, é bom ressaltar que nem a urbanização, nem o progresso, nem o desenvolvimento científico e tecnológico foram suficientes para nos blindar de uma guerra biológica que acontece a luz do dia em qualquer lugar, pelo simples fato de existirem inúmeras doenças conhecidas e desconhecidas circulando entre nós.

Aglomerações. Transportes coletivos. Maçanetas. Corrimãos. Assentos públicos. Objetos de uso comum. ... A ameaça biológica pode estar em qualquer lugar, a qualquer hora, trazida por qualquer ser humano ou por qualquer animal. Doenças que podem não nos afetar severamente; mas, que podem matar ou sequelar, dependendo da disposição e da fragilidade orgânica dos corpos que ela atinge.

Porque doença não é receita de bolo, não é conta exata. Doenças são incógnitas, variáveis, imprevisíveis dentro de certas previsibilidades como a insegurança alimentar, as poluições e contaminações químicas espalhadas por aí, a insalubridade dos ambientes em que se transita e reside, as disfunções bioquímicas e fisiológicas do próprio corpo, a carga genética que se carrega, ...

Do mesmo modo, quando se trata de armas químicas. Nosso ar, nossa água, nosso solo, nosso ambiente está totalmente contaminado por resíduos químicos extremamente nocivos e perigosos.

Nem sabemos quais ou quantos são, porque eles são dispersos ininterruptamente pelas mais variadas fontes agrícolas e industriais e nos chegam envoltos por uma aura de inviabilidade e normalidade. Alguns são tão potentes que causam extermínio rápido. Outros agem de maneira lenta e gradual, arrastando os indivíduos para um sofrimento atroz.

Ora, porque motivo, quando se levanta a discussão em torno de uma potencial guerra biológica e/ou química, as pessoas ficam tão aterrorizadas e aflitas, hein? Desde os primórdios da humanidade essas práxis são conhecidas! Flechas contaminadas com fezes de animais. A morte do filósofo Sócrates por envenenamento com Cicuta. ...

A questão é que ao se discutir o assunto no campo da beligerância instituída, as pessoas são obrigadas a pensar a respeito, a lidar com o desconforto de uma realidade, a qual tentam passar indiferentes a maior parte do tempo.

Além disso, elas se defrontam com a barbárie humana em estado bruto, porque as justificativas para o conflito, para a guerra, se desfazem diante da vontade explícita do extermínio coletivo da própria espécie. Como se vê, Thomas Hobbes tinha mesmo razão, “O homem é o lobo do homem”.

E para isso, ele utiliza aquilo que está ao alcance das próprias mãos. As armas químicas e biológicas derivam de experimentos a partir do que já se tem disponível e circulante entre nós. Aquilo que já se conhece, pelo menos significativamente, em termos de potencial destruidor. Então, eles analisam as possibilidades dentro das facilidades de acesso e aquisição dessas armas.  

No campo das armas biológicas, segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), nos EUA, elas são classificadas em três categorias – A (Altíssimo risco. Ex: Varíola, Tularemia, Peste Negra, Botulismo, Antraz), B (Graves. Ex: Tifo, Encefalite viral, Brucelose, Cólera), C (Doenças infectocontagiosas emergentes. Ex: Vírus Nipah, Hantavírus) 3.

A maioria das pessoas já ouviu falar pelo menos em uma dessas doenças, fora do contexto de guerra ou de arma biológica. Recentemente, em 2021, por exemplo, “um surto de cólera deixou mais de 2.300 mortos na Nigéria” 4. Mas, talvez seja como arma que elas se tornam inesquecíveis. Quem não se lembra, do envio de correspondências nos EUA, logo após o 11 de Setembro, contendo a bactéria Bacillus anthracis 5? Cinco pessoas morreram na ocasião.

Quanto as armas químicas, embora sejam derivadas, também, de produtos conhecidos pela Ciência, os quais  “contêm toxinas ou substâncias químicas que atacam os sistemas do corpo humano” 6, elas demandam uma certa sofisticação logística para sua confecção. Isso porque, elas se dividem em agentes sufocantes (Ex: Fosfogênio), agentes neurotóxicos (Ex: Novichok) e agentes vesicantes (Ex: Gás Mostarda).

Um dos exemplos mais emblemáticos desse tipo de arma está no registro da foto da menina vietnamita, correndo nua, com partes do corpo queimados pelo NaPalm (mistura de Naftenato de alumínio e Palmitato de alumínio mono e di-hidroxilados associado a um conjunto de líquidos inflamáveis à base de gasolina gelificada), durante a Guerra do Vietnã.

Diante desse breve exposto, então, a discussão não se concentra ou resume em ter ou não armas químicas ou biológicas. Em utilizá-las ou não, nessa ou em qualquer outra guerra. Se concentra no fato de que a raça humana se permitiu colocar na posição de alvo de um extermínio muito bem arquitetado, que vem agindo sob diferentes vieses, diariamente, em diferentes lugares do planeta.

Veja bem, mais de 6 milhões de pessoas já morreram pela COVID-19, no prazo de dois anos. Uma fatalidade promovida pelo imponderável da vida, na forma de um vírus. Mas quantas estão ao mesmo tempo morrendo pela desassistência e abandono social, pela fome, pela violência armada, pela violência psicológica, pela exposição e vulnerabilização as demais doenças e agentes químicos?

Portanto, as guerras, as armas, as estratégias narrativas, os discursos, são apenas pretextos adicionais para esse processo funesto. Enquanto os seres humanos fecham seus olhos para o triste fim de seus pares, se esquecem de que podem ser os próximos nessa fila macabra.

Que a tecitura dos dias, das relações, das coexistências, das convivências, está nos levando inevitavelmente para os braços da morte. Armados pela arrogância e a prepotência de uma gula incontrolável quanto aos desejos e consumos, o ser humano perdeu o senso, perdeu a prudência, perdeu a noção dos perigos.

Olha para o mundo e para a vida, como quem olha para centenas de quilômetros adiante, o que lhe traz a falsa sensação de que não poderia ser atacado, ou atingido, ou morto por nada ou ninguém. Entretanto, tudo está logo ali, ao alcance das suas mãos, do seu corpo, da sua vida.

Por isso, não nos esqueçamos de que a morte não perde as oportunidades. Ela é sempre inexorável. A verdade é que ela não precisa de pretextos.  O que o próprio ser humano decidiu fazer é facilitar, ainda mais, a sua empreitada. Afinal, quaisquer que sejam as conjunturas ou circunstâncias, a vida lhe basta como razão e justificativa para agir.