segunda-feira, 14 de março de 2022

Nem bombas, nem canhões... O estrago maior vem de certas ideias...


Nem bombas, nem canhões... O estrago maior vem de certas ideias...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

19º dia de guerra no leste europeu e a investida da Rússia sobre a Ucrânia é devastadora, apesar da resistência local.  Em geral, é assim que tem descrito os veículos de comunicação e informação mundo afora. Contudo, não é sobre essa ótica que eu pretendo refletir nesse texto. Quero trazer algo das entrelinhas, que remonte um pouco do fio que conta essa história e reflete sobre tantos aspectos importantes da contemporaneidade.

Olhar para uma disputa meramente territorial é muito raso, do mesmo modo que para demonstração de força e poder. Essa guerra, na verdade, tem desenhado de maneira muito apropriada as correntes do pensamento humano que tentam ascender e se reorganizar como uma nova ordem no mundo, ainda que seus participantes não possam constituir, exatamente, um grupo homogêneo.

No entanto, entre eles reina certos princípios comuns, tais como o autoritarismo, o nacionalismo, o racismo, o conservadorismo, o estado forte, os quais são bastante importantes, segundo a sua visão, para alcançar os objetivos de assumir as rédeas do planeta. Não se trata de um alinhamento à esquerda ou à direita; mas, com valores, princípios e convicções ajustáveis a um mesmo denominador comum. Nesse sentido, então, não me parece que essa guerra seja necessariamente a guerra de alguém; mas, a guerra de uma ideia.

Assim, contando com o seu capital armamentista e o seu status construído ao longo do tempo no campo da geopolítica, a Rússia do século XXI se colocou na posição de capitanear esse movimento ideológico, onde em algum (ou alguns) ponto (s) há um senso comum entre líderes mundiais. Basta uma breve análise de quem a está apoiando nessa empreitada, ou seja, Belarus (governado por Aleksandr Lukashenko), Venezuela (governado por Nicolás Maduro), Nicarágua (governado por Daniel Ortega), Cuba (governado por Miguel Díaz-Canel), Síria (governado por Bashar al-Assad), Irã (governado por Ebrahim Raisi), China (governado por Xi Jinping), Índia (governado por Narendra Modi) e o ex-presidente dos EUA, Donald Trump.

O que esse movimento ideológico pretende constituir é um contraponto aos valores democráticos, às liberdades, a todos os processos de evolução e transformação sócio-histórico e cultural que vêm ocorrendo, pode-se dizer, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a qual representou uma tentativa de se estabelecer exatamente os tais princípios - o autoritarismo, o nacionalismo, o racismo, o conservadorismo, o estado forte.

Isso significa, então, que essa guerra de uma determinada ideia é a manifestação explícita do mundo retrógrado, que insiste e persiste em se manter apegado, arraigado, encapsulado, para não perder as suas zonas de conforto, as suas regalias e os seus privilégios. Como se fosse possível impedir o mundo de girar, de seguir em frente, de mudar como é da sua natureza mais genuína, porque tudo isso lhes representa um desconforto, uma ameaça à uma identidade a qual eles acreditam que seja a única em que são capazes de se reconhecer.

É só ouvir Ideologia (1988) 1, de Cazuza e Roberto Frejat, para entender a dinâmica desse processo.  Essa guerra, no fundo, almeja desesperadamente instituir uma ideologia capaz de fazer caber certas pessoas; mas, de uma maneira que o mundo acabe homogeneizado por ela. Assim, não haverá mais contestação, nem rebeldia, nem discordância. Trata-se de um modelo de contenção de mentes e de corpos, ainda que para ser alcançado estejam utilizando velhas práxis. Mas, no fundo, é como diria a banda Pink Floyd apenas “Another brick in the wall” 2.

Portanto, esse entendimento é profundamente importante para desalienar o pensamento em relação as narrativas e discursos que acabam sendo propagadas e disseminadas mecânica e superficialmente por aí. Pois é, quem diria! Estamos diante do mesmo núcleo duro que desencadeou a Segunda Guerra Mundial, o domínio do mundo pelo autoritarismo, o nacionalismo, o racismo, o conservadorismo, o estado forte.

77 anos depois do fim da Segunda Grande Guerra, lá estamos nós de novo, na pele de outras gerações (é claro!), prendendo a respiração, olhos vidrados nas notícias, estarrecidos com os horrores do confronto a se desenrolar a quilômetros de distância; mas, inalando inconscientemente a toxicidade ideológica que ele transporta pelas mais modernas e avançadas vias de telecomunicação. Bombardeados objetivamente pelas imagens, pelas matérias jornalísticas; mas, principalmente, no campo subjetivo do inconsciente, pela tecitura das entrelinhas que não se parecem tão visíveis ou tão destacadas para se identificar de imediato.

O letramento da guerra exige muito mais do que saber ler a respeito do que se diz dos fatos, das histórias, ele exige romper com as dicotomias do certo e do errado, do bom e do mau, do herói e do vilão, para se chegar ao alicerce das ideias que colocaram a beligerância diante da humanidade.

Por isso, nunca estamos prontos para uma guerra. Nunca estamos prontos para tiros de fuzil, bombardeios, massacres, rendições, escombros, ... nem tampouco, para entender todo esse processo além das palavras, ditas ou escritas, para esmiuçar os sentidos, para destilar as intenções. E é aí, nesse ponto, que ela consegue fazer o maior dos seus estragos. Então, não se esqueça do que diz uma outra canção, “[...] Atenção / Tudo é perigoso / Tudo é divino maravilhoso / Atenção para o refrão / É preciso estar atento e forte [...]” 3