quarta-feira, 30 de março de 2022

Brasil: seus precedentes, suas vergonhas, seus constrangimentos...


Brasil: seus precedentes, suas vergonhas, seus constrangimentos...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Há quem considere que abrir precedente é um atitude bastante diplomática e mitigadora de certos conflitos; mas, eu não concordo. Abrir precedente é romper com limites já estabelecidos, é subverter a ordem definida, possibilitando repercussões e desdobramentos imprevisíveis.

Afinal, se há um parâmetro definido a se seguir é porque foram pesados prós e contras a respeito, estimados os riscos e as vantagens. Quando se toma uma atitude nesse sentido, também, se está colocando os indivíduos em posições de importância ou de desimportância muito bem definidas. E, no Brasil, essa é uma prática comum.

Precedentes por aqui são pretextos bem-vindos aos interesses mais questionáveis possíveis. O que de certa forma contribui diretamente para a degradação e difamação da sua imagem; sobretudo, no campo internacional.

Pois é, por trás das nossas vergonhas, dos nossos constrangimentos, das nossas humilhações públicas, estão muitos precedentes distribuídos aleatoriamente, sem quaisquer critérios de análise e/ou reflexão. A tal ponto que muitos deles nos fazem lamentar profundamente as terríveis mazelas emergidas.

Todas as vezes em que as situações apertam, que os calos doem, o brasileiro recorre a possibilidade de que uma “boa alma” lhe abra um precedente para que não fique em maus lençóis. Quem nunca ouviu falar sobre o famoso “jeitinho brasileiro”?  Ele, nada mais é do que um modo de estabelecer um precedente criativo diante da resolução de conflitos extremamente graves, até mesmo, crimes, incluindo aqueles contra a administração pública.

Então, se enviesa a interpretação daqui, distorce dali, deturpa acolá, e quando se vê, tudo foi atenuado para fazer caber dentro dos interesses de uns e outros. Afinal, tem muita gente com telhado de vidro, por aí!

No fim das contas, os precedentes custam caro para a sociedade, pois arranham a moral, a ética, a imagem, a credibilidade, a lisura de pessoas físicas e jurídicas, de instituições, de poderes. Vejamos o exemplo da atual guerra no leste europeu.

A maneira com a qual o mundo lidou com a invasão e a anexação da Criméia, em 2014, pela Rússia, constituiu um precedente para o conflito atual. Ora, o modo como as situações são respondidas diz muito sobre as relações humanas que se pretendem estabelecer.

Especialmente, quando as ações infringem limites definidos jurídica, institucional e geopoliticamente, como nesse caso. Os precedentes sinalizam até que ponto se pode ir em uma situação, porque deixam claras as respostas de que como os outros reagiram a investida inicial.

Aliás, crianças fazem isso desde pequenas. Elas testam os adultos o tempo todo para saber se podem ou não fazer isso ou aquilo. Se os pais acham engraçado em um primeiro momento e depois se enraivecem em uma segunda ocasião, elas ficam desnorteadas porque houve uma ruptura de precedente. Daí a necessidade de não se criar precedentes que sejam exceções esporádicas, eventuais, segundo a vontade ou a intenção no contexto de um determinado momento.

É estranho, mas em pleno século XXI, vemos cada vez mais a necessidade de nos questionarmos sobre o óbvio, ou seja, o que nos leva a criação de tantos precedentes? Por que não podemos agir dentro da naturalidade das regras, dos princípios, das normas, das leis, que foram criadas para harmonizar um senso comum? Por que tamanho ímpeto em infringir, em transgredir, em se diferenciar negativamente dos demais?

Afinal, estamos não apenas transformando excepcionalidades em regras como, também, tornando as exceções individualizadas, ou seja, os precedentes surgem sob medida. Serve para esse; mas, não serve para aquele.

De modo que as pessoas ao se sentirem incomodadas, desconfortáveis, acuadas dentro de certas circunstâncias, saem por aí clamando por um precedente, o qual nem sempre vai estar ao seu alcance, porque ele existe atrelado ao protocolo da desigualdade.

Vejam, por exemplo, que um cidadão que comete um furto famélico, ou seja, quando furta comida, ou medicamento, ou algo imprescindível à sua sobrevivência, sem uso de violência ou arma, é apresentado a autoridade policial de pronto e aguarda audiência preso.

Mas, um cidadão que comete um delito, do tipo “colarinho branco”, por exemplo, ele pode passar uma vida inteira sem nada a responder à Justiça, porque se estabelecem precedentes diversos para que isso aconteça, no Brasil.   

O pior é que, de algum modo, uma grande parcela da população é conivente com esse tipo de situação. Muitos acreditam estar em uma posição que podem eventualmente vir a se beneficiar dos precedentes. Então, se calam, silenciam, se abstém de pensar ou discutir a respeito.

Porque os precedentes levam em consideração um enquadramento subjetivo do cidadão dentro de certos quesitos instituídos pela própria sociedade. De modo que o inconsciente coletivo da identidade nacional acaba por ter um peso gigantesco nesse processo. 

Em síntese, isso quer dizer que alguns são considerados bons, ou estão acima de qualquer suspeita, e, portanto, aprovados para se abrirem precedentes a seu favor. Outros são ruins, ou estão sempre sob suspeita, então, não são merecedores para se abrirem precedentes a seu favor.

E assim, os precedentes vão reafirmando cada vez mais que “A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo lugar” (Martin Luther King Jr.), especialmente, porque “Se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor” (Desmond Tutu – Prêmio Nobel da Paz, 1984). Os precedentes são, na maioria das vezes, então, os melhores instrumentos para materializar as injustiças.

Não nos esqueçamos de que a vida não é receita de bolo e tudo aquilo que deixamos passar pelo silêncio, ou pela indiferença, ou pela negligência, mais cedo ou mais tarde vai cobrar seu preço.

Por mais semelhanças possam existir entre muitos acontecimentos da vida, cada caso deve ser submetido a uma análise própria, a fim de que erros, distorções, equívocos não sejam propagados e/ou perpetuados.

Cuidado para os espaços abertos para o ”Ah! Mas...”, porque os acontecimentos incluem pessoas e essas são diferentes, são únicas na sua forma de ser, de agir, de pensar, de dizer; e, esse é o ponto da virada na história.