Brasil:
seus precedentes, suas vergonhas, seus constrangimentos...
Por
Alessandra Leles Rocha
Há quem considere que abrir
precedente é um atitude bastante diplomática e mitigadora de certos conflitos;
mas, eu não concordo. Abrir precedente é romper com limites já estabelecidos, é
subverter a ordem definida, possibilitando repercussões e desdobramentos
imprevisíveis.
Afinal, se há um parâmetro
definido a se seguir é porque foram pesados prós e contras a respeito,
estimados os riscos e as vantagens. Quando se toma uma atitude nesse sentido,
também, se está colocando os indivíduos em posições de importância ou de
desimportância muito bem definidas. E, no Brasil, essa é uma prática comum.
Precedentes por aqui são
pretextos bem-vindos aos interesses mais questionáveis possíveis. O que de
certa forma contribui diretamente para a degradação e difamação da sua imagem;
sobretudo, no campo internacional.
Pois é, por trás das nossas
vergonhas, dos nossos constrangimentos, das nossas humilhações públicas, estão
muitos precedentes distribuídos aleatoriamente, sem quaisquer critérios de
análise e/ou reflexão. A tal ponto que muitos deles nos fazem lamentar
profundamente as terríveis mazelas emergidas.
Todas as vezes em que as
situações apertam, que os calos doem, o brasileiro recorre a possibilidade de que
uma “boa alma” lhe abra um precedente
para que não fique em maus lençóis. Quem nunca ouviu falar sobre o famoso “jeitinho brasileiro”? Ele, nada mais é do que um modo de
estabelecer um precedente criativo diante da resolução de conflitos
extremamente graves, até mesmo, crimes, incluindo aqueles contra a
administração pública.
Então, se enviesa a interpretação
daqui, distorce dali, deturpa acolá, e quando se vê, tudo foi atenuado para
fazer caber dentro dos interesses de uns e outros. Afinal, tem muita gente com
telhado de vidro, por aí!
No fim das contas, os precedentes
custam caro para a sociedade, pois arranham a moral, a ética, a imagem, a
credibilidade, a lisura de pessoas físicas e jurídicas, de instituições, de poderes.
Vejamos o exemplo da atual guerra no leste europeu.
A maneira com a qual o mundo
lidou com a invasão e a anexação da Criméia, em 2014, pela Rússia, constituiu
um precedente para o conflito atual. Ora, o modo como as situações são
respondidas diz muito sobre as relações humanas que se pretendem estabelecer.
Especialmente, quando as ações
infringem limites definidos jurídica, institucional e geopoliticamente, como
nesse caso. Os precedentes sinalizam até que ponto se pode ir em uma situação,
porque deixam claras as respostas de que como os outros reagiram a investida
inicial.
Aliás, crianças fazem isso desde
pequenas. Elas testam os adultos o tempo todo para saber se podem ou não fazer
isso ou aquilo. Se os pais acham engraçado em um primeiro momento e depois se
enraivecem em uma segunda ocasião, elas ficam desnorteadas porque houve uma
ruptura de precedente. Daí a necessidade de não se criar precedentes que sejam
exceções esporádicas, eventuais, segundo a vontade ou a intenção no contexto de
um determinado momento.
É estranho, mas em pleno século
XXI, vemos cada vez mais a necessidade de nos questionarmos sobre o óbvio, ou
seja, o que nos leva a criação de tantos precedentes? Por que não podemos agir
dentro da naturalidade das regras, dos princípios, das normas, das leis, que
foram criadas para harmonizar um senso comum? Por que tamanho ímpeto em
infringir, em transgredir, em se diferenciar negativamente dos demais?
Afinal, estamos não apenas
transformando excepcionalidades em regras como, também, tornando as exceções
individualizadas, ou seja, os precedentes surgem sob medida. Serve para esse;
mas, não serve para aquele.
De modo que as pessoas ao se
sentirem incomodadas, desconfortáveis, acuadas dentro de certas circunstâncias,
saem por aí clamando por um precedente, o qual nem sempre vai estar ao seu
alcance, porque ele existe atrelado ao protocolo da desigualdade.
Vejam, por exemplo, que um
cidadão que comete um furto famélico, ou seja, quando furta comida, ou
medicamento, ou algo imprescindível à sua sobrevivência, sem uso de violência
ou arma, é apresentado a autoridade policial de pronto e aguarda audiência
preso.
Mas, um cidadão que comete um delito,
do tipo “colarinho branco”, por
exemplo, ele pode passar uma vida inteira sem nada a responder à Justiça,
porque se estabelecem precedentes diversos para que isso aconteça, no
Brasil.
O pior é que, de algum modo, uma
grande parcela da população é conivente com esse tipo de situação. Muitos
acreditam estar em uma posição que podem eventualmente vir a se beneficiar dos
precedentes. Então, se calam, silenciam, se abstém de pensar ou discutir a
respeito.
Porque os precedentes levam em
consideração um enquadramento subjetivo do cidadão dentro de certos quesitos
instituídos pela própria sociedade. De modo que o inconsciente coletivo da
identidade nacional acaba por ter um peso gigantesco nesse processo.
Em síntese, isso quer dizer que alguns
são considerados bons, ou estão acima de qualquer suspeita, e, portanto,
aprovados para se abrirem precedentes a seu favor. Outros são ruins, ou estão
sempre sob suspeita, então, não são merecedores para se abrirem precedentes a
seu favor.
E assim, os precedentes vão
reafirmando cada vez mais que “A
injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo lugar” (Martin
Luther King Jr.), especialmente, porque “Se
você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”
(Desmond Tutu – Prêmio Nobel da Paz, 1984). Os precedentes são, na maioria
das vezes, então, os melhores instrumentos para materializar as injustiças.
Não nos esqueçamos de que a vida
não é receita de bolo e tudo aquilo que deixamos passar pelo silêncio, ou pela
indiferença, ou pela negligência, mais cedo ou mais tarde vai cobrar seu preço.
Por mais semelhanças possam
existir entre muitos acontecimentos da vida, cada caso deve ser submetido a uma
análise própria, a fim de que erros, distorções, equívocos não sejam propagados
e/ou perpetuados.
Cuidado para os espaços abertos para o ”Ah! Mas...”, porque os acontecimentos incluem pessoas e essas são diferentes, são únicas na sua forma de ser, de agir, de pensar, de dizer; e, esse é o ponto da virada na história.