terça-feira, 29 de março de 2022

O avesso do Brasil...


O avesso do Brasil...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

De fato, entender o Brasil não é para principiantes. Vira daqui, mexe dali, e as pessoas se perdem em um labirinto de contradições que impossibilita se chegar a alguma conclusão consistente. Estamos em pleno ano eleitoral; mas, não parecem claros os sinais lançados pela população.

A princípio a insatisfação com a realidade aponta para um movimento popular que almeja mudança, um desejo de reconstrução do país. Mas, basta um piscar de olhos, para se descobrir que o tal brado não é uníssono e que o senso de cidadania do brasileiro é muito frágil.

Duas matérias jornalísticas me chamaram a atenção. “’Feiras do rolo’ em SP vendem bicicletas nacionais e importadas sem notas fiscais; polícia apura se bikes são roubadas. Reportagem gravou vídeos que mostram comércio irregular de bicicletas importadas sendo vendidas por preços mais baixos de mercado. Pasta da Segurança informa que polícia irá investigar denúncia. Estado e capital tiveram aumento de casos de roubos e furtos. Na capital foram 21% entre 2020 e 2021” 1 e “Furto em estação da Deso compromete abastecimento de água em 34 localidades sergipanas. Cabos e componentes elétricos foram levados de estação do sistema Sertaneja” 2.

Para início de conversa, antes de qualquer outro comentário, vale destacar que não importa se esses crimes são cometidos contra entes privados ou públicos. São crimes e ponto final. Mas, não deixa de ser lastimável se deparar, através deles, com a materialização da anticidadania.

Ora, na medida em que, sem qualquer pudor ou constrangimento, certos (as) brasileiros (as) se consideram “acima do Bem e do Mal” não só para desafiar as leis do seu país; mas, para causar prejuízos aos seus semelhantes e ao próprio erário, eles não deveriam ser considerados cidadãos. Afinal de contas, a cidadania implica necessariamente em assumir direitos e deveres dentro de uma sociedade.     

No entanto, esse tipo de comportamento ilustrado acima não começa e termina no ato delituoso em si. O que leva alguém a praticar crimes dessa natureza é porque tem a certeza de que na outra ponta da história haverá, sempre, os receptadores e os compradores para os produtos furtados.

Portanto, a cadeia do “malfeito” costuma ser bem maior do que se imagina, o que leva a pensar que espalhados dentro da sociedade, nos mais diferentes espaços, há muita gente que coaduna com tais práticas.

Trata-se de um sinal da existência real de uma gradação para as situações do cotidiano, a fim de atenuar ou contemporizar questões que são graves em si mesmas. Não há crime maior ou menor. Há crime. Não há prejuízo maior ou menor. Há prejuízo. ...

Isso significa que muitos (as) brasileiros (a) se comportam mal, se desviam da sua cidadania, porque acreditam na existência de uma suposta legitimidade social. Considerando que os esforços institucionais e jurídicos parecem insuficientes para conter e coibir a diversidade de práticas delituosas exercidas recorrentemente no país. De modo que paira no ar a presença de um pacto velado a esse respeito, favorecendo a sua manutenção em qualquer tempo, em qualquer lugar.

Sobretudo, porque não se pode esquecer o fato de que a humanidade vive, mais e mais, enovelada pelas tramas tecidas por uma sociedade de consumo, enquanto o poder aquisitivo da imensa maioria se reduz de maneira inversamente proporcional.

Bem estimulado, o desejo de ter não tem freios, porque ele é um elo com o pertencimento, com a visibilidade, com a expressão do status social. Então, quando não podem adquirir pelas vias legais os bens do seu interesse, as pessoas se lançam nessa espiral de transgressão, de vale-tudo. Se permitem cair na tentação de que “os fins justificam os meios”.

Ora, ora; mas, não é exatamente esse um pequeno fragmento da realidade nacional brasileira que todos julgam ser errado, ser ruim, ser prejudicial? Como é que pode? Dois pesos e duas medidas? Essa é a receita do Brasil?

Esse é o modus operandi que nos coloca em xeque quanto à credibilidade da decepção, do descontentamento, da indignação popular, às vésperas de uma eleição tão importante, que irá definir os rumos do país, dos estados e do Distrito Federal pelos próximos 4 anos.

Não dá para relativizar, para compartimentalizar, para ranquear a cidadania, a fim de fazê-la caber, sem maiores conflitos, dentro dos interesses individuais e coletivos. Quaisquer manifestações de anticidadania estão impregnadas de tamanho individualismo que ao beirar às raias do absurdo não se importam, nem mesmo, em cometer crimes.  

Daí fica uma impressão de que todo o falatório, todas as reclamações, todas as falas ásperas, no fundo, têm um certo ar de “dor de cotovelo”, como se quisessem mesmo, era estar naquela posição, naquele lugar, sobre o qual extravasam a sua raiva.

Talvez, por isso, a classe política esteja como está. Ela é feita do povo. Ela conhece a fundo o que passa na alma e na consciência dessa gente. Pode-se pensar até, que são espelhos que se refletem mutuamente. Daí a reprodução contínua da história, ou seja, “Macaco senta no próprio rabo para falar do rabo dos outros”.

Acaba-se criando, então, uma zona de conforto que retém as ousadias, os ímpetos de transformação, porque aqui e ali todos têm medo do que podem eventualmente perder dentro da sociedade. Desse modo, se não houver uma ruptura desse processo, algo consciente e ressignificativo, a sociedade brasileira tende a não alcançar, em nenhum tempo da sua história, nada de novo para as suas relações sociais e, particularmente, políticas.