Tempos
de ... Guerra
Por
Alessandra Leles Rocha
Há tempos a contemporaneidade vem
mostrando, clara e objetivamente, a dissolução das certezas. E passados pouco
mais de dois anos do início de uma pandemia que pegou a todos de surpresa,
revirando a vida de cabeça para baixo, é muito natural que os ânimos estejam em
frangalhos e a necessidade de encontrar um porto seguro, para sinalizar que o
pior já passou, eleva o tom.
Entretanto, parece que não é nada
disso que as conjunturas pensam a respeito. Quando as cabeças tentam se colocar
acima da água para respirar, eis que uma onda mais forte se aproxima para
destruir as expectativas e as perspectivas de reconstrução e recomeço.
Sei que uma iminência de guerra
não é uma guerra. Mas, é um ensaio muito bem elaborado de todos os elementos de
tensão e desestruturação que o mundo pode experimentar, como uma breve amostra
grátis do que pode eventualmente estar por vir. Em suma, a iminência de guerra
é a nudez da incerteza.
Não se contam horas, nem minutos.
Contam-se os segundos, porque as mudanças não precisam mais do que isso para
serem deflagradas. Daí as guerras serem um jogo tão perigoso e enigmático,
porque há uma dificuldade intrínseca de saber como cada player vai fazer uso dos seus segundos que tem nas mãos. Afinal, a
geopolítica não é um jogo para amadores ou principiantes. Não é à toa que os grandes
conflitos bélicos da história são sempre encabeçados por figurinhas repetidas.
Mas, de volta ao ponto das
incertezas, para quem aguardava avidamente pelo momento do anúncio do
Pós-Pandemia para dar tratos à bola e traçar algum plano sobre os rastros e
escombros deixados pelo vírus e suas variantes, nos mais diferentes espaços da sociedade,
um balde gigantesco de água fria caiu sobre a cabeça.
A simples iminência de guerra
lança tudo a uma corda bamba, sem fim. Principalmente, a Economia. Ela passa a
orbitar em meio ao trânsito contínuo do incerto, do volátil, do imprevisível. E
sem recursos, sem meios financeiros, pensar em quaisquer recomeços é praticamente
impossível.
Nessas alturas do campeonato, há
um medo, um temor, um desconforto que ronda inquietamente entre nós. Que pinta
com traços fortes e cores vivas, um cotidiano que tenta seguir seu fluxo de
altos e baixos de problemas, porque não pode parar por completo.
De modo que a existência humana é
lançada, sem redes de apoio ou proteção, a um batimento marcado de um dia. Vive-se
um dia de cada vez. Vive-se o agora. Vive-se o que possível. Nada de futuro. Nada
de amanhã.
Porque essa iminência de guerra
coloca o mundo na perspectiva de um arrastar de correntes, o qual não se
permite definir até quando. É quase uma preparação surreal para fazer entender
que as escolhas, as decisões, os controles desapareceram do campo da
individualidade, dos individualismos, para se condicionarem aos ditames dos estados,
das nações, das políticas. Que coisas e pessoas estão cada vez mais próximas de
ficar sob as botas, sob o jugo, de acontecimentos e estratégias belicosas.
Então, nem bem poderá desfrutar
uma Pós-Pandemia, a Terra parece que terá que aguardar por um Pós-Guerra. Tenso.
Difícil. Complexo. Como quem terá que esperar para olhar a vida, como se ela
fosse um pedaço de bolo. Camada por camada, só que de escombros materiais e
imateriais, objetivos e subjetivos.
Algo que me faz pensar no poema “Os ombros
suportam o mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, quando ele escreve “Chega um tempo em que não se diz mais: meu
Deus. / Tempo de absoluta depuração. / Tempo em que não se diz mais: meu amor.
/ Porque o amor resultou inútil. / E os olhos não choram. / E as mãos tecem
apenas o rude trabalho. / E o coração está seco” 1.
Afinal de contas, mesmo tentando
colocar de lado, ou em segundo plano, a síntese que se obtém dessa experiência é
funesta. Pandemia. Fome. Miséria. Desalento. Violências. Eventos climáticos extremos. Guerra. ... Tudo tem acontecido, convivido e coexistido em meio a
pilhas e pilhas de gente morta, ceifada, de repente, do mundo.
Sem oportunidade de despedida. Sem
segunda chance de nada. Sem choro, nem vela. Por isso, até sou capaz de
compreender a existência de certa necessidade, de uns e outros, em abdicar de
pensar a respeito, por se tratar de uma tentativa de preservação de algum
mísero vestígio de sanidade mental, ainda que, superficial.
Entretanto, mesmo assim, esse
movimento de esquiva, de fuga, é insuficiente e ineficaz, porque no fundo, como
dizem os versos, “Quando os corpos
passarem, eu ficarei sozinho / desfiando a recordação / do sineiro, da viúva e
do microscopista / que habitavam a barraca / e não foram encontrados / ao
amanhecer / esse amanhecer / mais noite que a noite” (Carlos Drummond de
Andrade – Sentimento do mundo / 1940).
E é nesse ponto que se percebe,
sem alegorias nem adereços, sem meias verdades ocultas, que já estamos em
guerra. Ou melhor, que sempre estivemos em guerra. Talvez, muitas que nem se
encontrem nas páginas dos livros de História. Guerras do cotidiano. Guerras biológicas. Guerras
ideológicas. Guerras culturais. Guerras sentimentais. Guerras que nos
desalinham, nos desagregam, nos agigantam em pequenices. Mas, sempre guerras
que fazem doer, que fazem adoecer, que fazem chorar, que fazem desesperar, que
fazem minguar os sonhos e as esperanças.
Portanto, essa que se avista no
horizonte 2 é só mais uma, de tantas outras que inevitavelmente
hão de vir. Que pode se concretizar ou pode só ser a iminência de uma
expectativa que tortura e apodrece o mundo. Porque a questão não é só fazer ou
construir uma guerra; mas, entender com profundidade que o ser humano foi
lamentavelmente forjado para existir a partir dela.
De modo que as conjunturas vivem
a tecer pretextos e mais pretextos que desembocam nesse resultado. Que a gente tenta
fugir delas, como o Diabo foge da Cruz; mas, quando se vê, lá estão elas batendo
à nossa porta. Retirando o nosso sossego. Desinquietando a nossa idealização de
paz. Roubando os nossos segundos, para gastá-los com bobagens.
1
Os ombros suportam o mundo (Carlos Drummond de Andrade) - https://www.youtube.com/watch?v=5cRxtlkcXpM - Publicado em 1940, na Antologia Sentimento
do Mundo.