sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Um janeiro musical. Um janeiro só para elas...


Um janeiro musical. Um janeiro só para elas...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não se pode negar que o ano começou envolto por uma névoa de incertezas espessas, indigeríveis, desconfortantes. Algumas decorrentes da variante ômicron, do Sars-Cov-2. Outras emergidas das próprias condições do país e do mundo.

Mas, como sempre acontece, um sopro de alento e de esperança chega através da expressão cultural, com o propósito de desconstruir as amarras, as limitações, os conformismos e olhar muito além do visível.

O estopim motivador desse janeiro, então, eis que tem contorno de mulher, alma de mulher, essência de mulher. Na verdade, mulheres. Até antes de ontem, eram duas, Nara Leão e Elis Regina; isso porque, no dia 19, Nara completaria 80 anos e Elis teria nos deixado há exatos 40 anos. Mas, o país se despediu na tarde de ontem, da divina Elza Soares, aos 91 anos. 

Três personalidades únicas, ímpares, extraordinárias, as quais deixaram marcadas nas páginas da história cultural desse país o gigantismo das suas identidades. Elas sempre foram impossivelmente rotuláveis. Não, não dava para definir, para estereotipar, essas criaturas tecidas por notas musicais.

Seus silêncios eram música. Seus amores eram música. Seus posicionamentos sociais eram música. Seus corações batiam no compasso perfeito das palavras, acordes e melodias. Alguém poderia até ousar imitá-las; mas, substituí-las, apropriar-se das suas essências, jamais.

Afinal, relembrando as suas respectivas trajetórias nesse mundo, a gente percebe com exatidão a mão sabida do destino. Elas foram a síntese do provável e do improvável, meticulosamente engendrado para fazer brilhar as suas estrelas.

Seu sucesso, sua repercussão nacional e internacional, não eram necessariamente favas contadas. Como tudo na vida, o êxito é só uma possibilidade, porque, no meio do caminho pode haver uma, duas, três, diversas pedras. Ninguém nunca sabe, pois não há como saber de antemão. Mas, no caso delas, a predestinação estava posta.

Então, o que importa é que o destino felizmente quis assim. Sorte nossa! Porque não só ganhamos música de altíssima qualidade, mas ganhamos exemplos de gente de primeira linha.

Cidadãs no sentido mais pleno e completo da palavra, na medida em que eram conscientes do significado do exemplo, do lugar de fala, do poder que um microfone nas mãos pode ter.

Fizeram arte; mas, particularmente, assentaram muitos tijolos na Música Popular Brasileira (MPB) para pavimentar uma estrada cultural legítima para o país, que pudesse caber todos os estilos, todos os gêneros, todas as raças, todos os pensamentos.

Nara, Elis e Elza cantaram e encantaram o Brasil. Porque elas cantavam tudo. O amor. A solidão. O sofrimento. A injustiça. A miséria. O preconceito. ... E para isso elas não se faziam de rogadas. Mergulharam na diversidade, na pluralidade, para significar e ressignificar a sua própria arte.

Elas eram a personificação da liberdade, mesmo em tempos quando esta parecia tão rara. Estabelecendo uma conexão tão intimamente verdadeira com seu público, que seria impossível ele não entender e absorver a mensagem. Elas eram sim, o eco da voz popular, como se dentro delas coubesse os milhões de brasileiros privados da própria voz.

Quando penso nelas, enxergo a imagem das Marias descritas na letra de Milton Nascimento e Fernando Brant, ou seja, “Maria, Maria, é um dom, uma certa magia / Uma força que nos alerta [...]1. Ou quando leio o poema “Aninha e suas Pedras”, de Cora Coralina, “[...]Recria tua vida, sempre, sempre, / Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça. / Faz de tua vida mesquinha um poema. / E viverá no coração dos jovens / e na memória das gerações que hão de vir. [...]” 2.

De certo modo, essas linguagens trazem o tamanho exato dessas mulheres, enquanto essência genuína e extraordinariamente humana. São simples. São objetivas. São claras. Por mais efêmera que seja a vida, elas nunca estiveram aqui, como quem está de passagem; não, elas sempre foram presença suficiente para caber nos braços da eternidade.

Sabe, é fácil ser engolido pelo mundo e ir perdendo gradativamente a capacidade de enxergar o justo, o bom, o melhor, como se tudo fosse um mar de lama varrido por ondas gigantescas da mais pura sordidez.

Mas, de repente... Nara, Elis e Elza se mostram a materialidade da certeza de que o ser humano pode ser salvo da maioria das suas mazelas e decepções, porque a cultura na vastidão da sua manifestação e representatividade cintila esperança, força, coragem, determinação, ousadia, e tudo mais que possa nos alçar para fora das caixinhas, das formas sociais.

Como dizia a poetisa Florbela Espanca, “Há uma primavera em cada vida: é preciso cantá-la assim florida, pois se Deus nos deu voz, foi para cantar! E se um dia hei de ser pó, cinza e nada que seja a minha noite uma alvorada, que me saiba perder ... para me encontrar”. Pois é, pode-se dizer que Nara, Elis e Elza conseguiram esse feito.

Na verdade, elas desfrutaram bem mais do que uma primavera, porque se deixaram fixar na atemporalidade do infinito, nas reminiscências da história, nas artimanhas natas do talento.

Afinal de contas, “Aplicar-se em grandes invenções, iniciando pelos mínimos detalhes não é uma tarefa para mentes comuns; descobrir que maravilhas se escondem em coisas triviais e infantis é um trabalho para talentos super-humanos” (Galileu Galilei).  E alguém ainda duvida que elas foram supermulheres? Espero que não.