Um
janeiro musical. Um janeiro só para elas...
Por
Alessandra Leles Rocha
Não se pode negar que o ano
começou envolto por uma névoa de incertezas espessas, indigeríveis,
desconfortantes. Algumas decorrentes da variante ômicron, do Sars-Cov-2. Outras
emergidas das próprias condições do país e do mundo.
Mas, como sempre acontece, um
sopro de alento e de esperança chega através da expressão cultural, com o
propósito de desconstruir as amarras, as limitações, os conformismos e olhar
muito além do visível.
O estopim motivador desse
janeiro, então, eis que tem contorno de mulher, alma de mulher, essência de
mulher. Na verdade, mulheres. Até antes de ontem, eram duas, Nara Leão e Elis
Regina; isso porque, no dia 19, Nara completaria 80 anos e Elis teria nos
deixado há exatos 40 anos. Mas, o país se despediu na tarde de ontem, da divina
Elza Soares, aos 91 anos.
Três personalidades únicas,
ímpares, extraordinárias, as quais deixaram marcadas nas páginas da história
cultural desse país o gigantismo das suas identidades. Elas sempre foram
impossivelmente rotuláveis. Não, não dava para definir, para estereotipar,
essas criaturas tecidas por notas musicais.
Seus silêncios eram música. Seus
amores eram música. Seus posicionamentos sociais eram música. Seus corações
batiam no compasso perfeito das palavras, acordes e melodias. Alguém poderia
até ousar imitá-las; mas, substituí-las, apropriar-se das suas essências,
jamais.
Afinal, relembrando as suas
respectivas trajetórias nesse mundo, a gente percebe com exatidão a mão sabida
do destino. Elas foram a síntese do provável e do improvável, meticulosamente
engendrado para fazer brilhar as suas estrelas.
Seu sucesso, sua repercussão
nacional e internacional, não eram necessariamente favas contadas. Como tudo na
vida, o êxito é só uma possibilidade, porque, no meio do caminho pode haver
uma, duas, três, diversas pedras. Ninguém nunca sabe, pois não há como saber de
antemão. Mas, no caso delas, a predestinação estava posta.
Então, o que importa é que o
destino felizmente quis assim. Sorte nossa! Porque não só ganhamos música de
altíssima qualidade, mas ganhamos exemplos de gente de primeira linha.
Cidadãs no sentido mais pleno e
completo da palavra, na medida em que eram conscientes do significado do
exemplo, do lugar de fala, do poder que um microfone nas mãos pode ter.
Fizeram arte; mas,
particularmente, assentaram muitos tijolos na Música Popular Brasileira (MPB) para
pavimentar uma estrada cultural legítima para o país, que pudesse caber todos
os estilos, todos os gêneros, todas as raças, todos os pensamentos.
Nara, Elis e Elza cantaram e
encantaram o Brasil. Porque elas cantavam tudo. O amor. A solidão. O
sofrimento. A injustiça. A miséria. O preconceito. ... E para isso elas não se
faziam de rogadas. Mergulharam na diversidade, na pluralidade, para significar
e ressignificar a sua própria arte.
Elas eram a personificação da
liberdade, mesmo em tempos quando esta parecia tão rara. Estabelecendo uma
conexão tão intimamente verdadeira com seu público, que seria impossível ele
não entender e absorver a mensagem. Elas eram sim, o eco da voz popular, como
se dentro delas coubesse os milhões de brasileiros privados da própria voz.
Quando penso nelas, enxergo a
imagem das Marias descritas na letra de Milton Nascimento e Fernando Brant, ou
seja, “Maria, Maria, é um dom, uma certa
magia / Uma força que nos alerta [...]”1.
Ou quando leio o poema “Aninha e suas
Pedras”, de Cora Coralina, “[...]Recria
tua vida, sempre, sempre, / Remove pedras e planta roseiras e faz doces.
Recomeça. / Faz de tua vida mesquinha
um poema. / E viverá no coração dos jovens / e na memória das gerações que hão
de vir. [...]” 2.
De certo modo, essas linguagens
trazem o tamanho exato dessas mulheres, enquanto essência genuína e
extraordinariamente humana. São simples. São objetivas. São claras. Por mais
efêmera que seja a vida, elas nunca estiveram aqui, como quem está de passagem;
não, elas sempre foram presença suficiente para caber nos braços da eternidade.
Sabe, é fácil ser engolido pelo
mundo e ir perdendo gradativamente a capacidade de enxergar o justo, o bom, o
melhor, como se tudo fosse um mar de lama varrido por ondas gigantescas da mais
pura sordidez.
Mas, de repente... Nara, Elis e
Elza se mostram a materialidade da certeza de que o ser humano pode ser salvo
da maioria das suas mazelas e decepções, porque a cultura na vastidão da sua
manifestação e representatividade cintila esperança, força, coragem, determinação,
ousadia, e tudo mais que possa nos alçar para fora das caixinhas, das formas
sociais.
Como dizia a poetisa Florbela
Espanca, “Há uma primavera em cada vida:
é preciso cantá-la assim florida, pois se Deus nos deu voz, foi para cantar! E
se um dia hei de ser pó, cinza e nada que seja a minha noite uma alvorada, que
me saiba perder ... para me encontrar”. Pois é, pode-se dizer que Nara,
Elis e Elza conseguiram esse feito.
Na verdade, elas desfrutaram bem
mais do que uma primavera, porque se deixaram fixar na atemporalidade do
infinito, nas reminiscências da história, nas artimanhas natas do talento.
1 Maria,
Maria (Milton Nascimento; Fernando Brant) - https://www.letras.mus.br/milton-nascimento/47431/