sábado, 22 de janeiro de 2022

De repente, ... estabaquei no chão


De repente, ... estabaquei no chão

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Bastou uma irregularidade acentuada no passeio, bem diante a uma Unidade Básica de Saúde (UBS), para que eu me estabacasse no chão. Escoriações nas mãos, joelhos, cotovelos, tíbia esquerda, dores generalizadas pelo corpo; sobretudo nos braços, e uma oscilação na pressão arterial decorrente do susto. Fui socorrida, de pronto, pelos transeuntes que se encontravam no local. Isso já faz dois dias; mas, só agora consigo sentar e compartilhar com você, caro (a) leitor (a), através dessa reflexão.

Eu sei que poderia ter sido em qualquer espaço público, em qualquer cidade brasileira; mas, logo diante de uma UBS ficou mais difícil de digerir. Ora, estamos falando de um local de saúde, que atende a mais completa pluralidade humana; sobretudo, etária. E se fosse um idoso? E se fosse uma criança? E se fosse um cadeirante? E se fosse um deficiente visual? ... O ponto chave dessa questão é a discussão sobre acessibilidade urbana, o modo como pensamos a cidade para todos que nela residem.

A sociedade precisa entender, de uma vez por todas, que o mesmo trabalho que se tem para fazer uma obra pública ruim, sem os devidos cuidados e precauções, se tem para fazê-la bem-feita. Aliás, acho até que seja menos trabalhoso, pois aquilo que é bem feito, bem planejado, bem executado, se faz uma única vez. Portanto, economia de tempo e dinheiro.

Bem, o que aconteceu comigo não será o primeiro e nem tampouco o último episódio da história e, justamente, por isso, é que merece reflexão. A desarmonia presente nos calçamentos e pavimentações, Brasil afora, nos coloca em total vulnerabilidade. Porque se engana quem pensa que esse tipo de queda não traz maiores repercussões, que é coisa à toa. Não, não é.

Pode ter fratura exposta, uma ruptura de ligamento, um traumatismo craniano, um deslocamento de rótula, ... uma série de consequências que vão muito além de um simples atendimento ambulatorial. Que podem sim, demandar cirurgia, internação hospitalar, afastamento do trabalho e demais atividades cotidianas, tratamento fisioterápico suporte, enfim. E se tudo isso custa tempo, custa dinheiro também. Público ou privado, não importa. Custa.

Sem contar que a geografia das cidades precisa ser democraticamente acessível. Aliás, está no rol das obrigações do poder público zelar pela qualidade, quantidade e eficiência dessa acessibilidade, no cumprimento de todas as normas que dizem respeito a esse assunto.

Não, não pode haver obstáculos, limitações, para quem quer que seja. É o velho e bom “direito de ir e vir” que está em jogo. Aliás, garantido não só pelas leis; mas, pelas polpudas taxas, impostos, tributos, que se gasta quase meio ano para dar conta de pagar.

Assim, é um erro crasso pensar que as pessoas é que devem se adequar, se moldar as arquiteturas e urbanismos, e não, o contrário. Afinal, nem sempre isso é possível e a acessibilidade é um amparo no que diz respeito, também, à segurança. A cidade é um espaço onde as pessoas precisam se sentir seguras no seu transitar, no seu deslocamento, nas suas intervenções cotidianas.

Já ouvi muita gente dizer que prefere abdicar dos meios de transporte para cumprir suas atividades diárias caminhando. Porém, as irregularidades dos calçamentos lhes causam imenso cansaço e desconforto corporal, ao final da empreitada, pois precisam driblar os entraves para cumprir seus objetivos. É um pavimento escorregadio aqui. Um degrau malfeito ali. Pedras se soltando acolá. Rampas desconstruídas por toda parte. E por aí vai. Exigindo um preparo físico quase que hercúleo do cidadão.

Acontece que, muitas vezes, o preparo físico é inútil, porque os acidentes de percurso chegam primeiro. Especialmente entre os idosos e os deficientes físicos, tendo em vista o seu próprio status de maior vulnerabilidade. É preciso entender que esses fatos, então, acabam contribuindo para estabelecer uma restrição velada ao exercício de cidadania.

As pessoas acabam se sentindo desconfortáveis em colocar em prática a sua liberdade de locomoção, pela iminência de riscos que lhes são impostos pela inacessibilidade urbana. Ora, temos que pensar que nem todos os idosos e deficientes, por exemplo, podem contar com o apoio de um acompanhante na sua rotina. Por isso, se eles se acidentarem, os desafios a serem enfrentados serão muito maiores e expressivos.

Além do mais, a atual conjuntura nos impõe uma atenção especial, a Pandemia. Os serviços de saúde públicos e privados já estão demasiadamente sobrecarregados, para trazermos situações que sequer precisariam existir, se as cidades estivessem ajustadas aos ordenamentos urbanísticos e de acessibilidade.

Como já disse, esses casos podem demandar ocupações em leitos por períodos relativamente expressivos, favorecendo inclusive uma eventual contaminação. Então, quando menos se espera, os problemas adquirem proporções gigantescas.

O interessante em se pensar sobre essas questões é que elas nos trazem, de certa forma, um alento interessantíssimo, no sentido da sua ruptura natural com as desigualdades humanas tão marcadas e demarcadas na sociedade.

A inacessibilidade nos coloca a todos no mesmo patamar. Eu posso cair. Você pode. O outro também. E para isso não se é questionado quem é você, de onde veio, quanto tem no bolso, a que família pertence, ..., nada. Você simplesmente cai. É levado ao chão num piscar de olhos.

E se você não quer passar por isso, uma, duas, três, infinitas vezes, você vai lutar para que o espaço geográfico se reformule, se realinhe, se readéque à acessibilidade. Pode até se inspirar naquela conhecida canção, “[...] Reconhece a queda / E não desanima / Levanta, sacode a poeira / e dá a volta por cima [...]” 1.

No entanto, o importante desse processo é entender que se ele melhora para você, melhora também para os demais. Sim, porque ainda que você se limite a transitar mais por determinados espaços do que por outros, as mudanças acabam alcançando o todo e beneficiando toda a coletividade.

Mesmo que não plenamente dotado de consciência, esse movimento vai sim, em maior ou em menor escala, gerar algum traço de empatia, de fraternidade, de altruísmo. Afinal de contas, é como escreveu Esopo2, “Na próxima vez que você ouvir dizer que alguém está diante de um problema e acreditar que o problema não lhe diz respeito, lembre-se que quando há uma ratoeira na casa, toda a fazenda corre risco. O problema de um é problema de todos” 3.