Sonhos
cortados pela raiz
Por
Alessandra Leles Rocha
Não, não é um mero
desmantelamento o que está acontecendo na Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (Capes) 1, uma
autarquia ligada ao Ministério da Educação. A recente renúncia de mais de 100
pesquisadores da instituição não se resume à paralisação das avaliações
quadrienais dos cursos de Pós-Graduação stricto sensu (Mestrado e Doutorado)
ocorridas por determinação da Justiça Federal em atendimento ao Ministério Público
que questionou o sistema empregado.
É preciso reconhecer que os prejuízos
decorrentes desses acontecimentos não são poucos ou desimportantes; mas, isso é
só espuma perto do que parece ser o cerne da questão. O que se apura dos
últimos três anos em relação à Educação brasileira é exatamente um conjunto de
medidas visando a sua desconstrução sem vias de uma eventual reconstrução. Renúncias,
exonerações, cortes robustos dos recursos, enfim.
Mas, conforme noticiam os
veículos de informação e comunicação, ao longo desse período, essa sempre foi
uma pasta submetida às influências de um chamado “núcleo ideológico” da atual gestão federal. De modo que todos os
ministros que foram responsáveis pelo setor e seus subordinados têm exercido
suas funções de maneira a atender a essa proposta, que visivelmente contraria o
que prevê a Constituição Federal de 1988 (artigos 205 a 214), a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. º 9394, de 1996, a Base Nacional
Comum Curricular (BNCC), de 2018, e todos os demais instrumentos jurídicos
pertinentes à Educação nacional.
A verdade é que esse “núcleo ideológico” está comprometido
diretamente com a extrema-direita que tenta se reestabelecer no país. O que
significa, em linhas gerais, que não há quaisquer interesses ou preocupações em
oferecer uma educação quantitativa e qualitativa eficiente e abrangente à toda
população; sobretudo, às parcelas mais vulneráveis e desassistidas.
Algo que ficou bastante visível durante
esses dois últimos anos. Em razão da Pandemia do Sars-Cov-2, milhares de
crianças e adolescentes tiveram seus estudos comprometidos pela ausência de um
planejamento estratégico de emergência, coordenado pelo Ministério da Educação,
para atendê-los através do ensino à distância.
A inacessibilidade digital e a deficiência,
no que diz respeito ao Letramento Digital, mostraram a sua face mais perversa e
cruel dentro dessa conjuntura inesperada. Porque esse foi o recorte de um
enorme contingente de alunos, pertencentes aos 94% da população constituída pela
classe média tradicional e a classe baixa, impactados economicamente pelas
políticas do país e agravadas pela Pandemia.
Há de se reconhecer que milhares
de famílias tiveram sua renda reduzida pela metade, alguns perderam seus postos
de trabalho, outros foram morar em condições subumanas, de modo que o acesso a
uma nova realidade da Educação tornou-se inviável, para não dizer, impossível.
E as consequências e repercussões
desse processo já estão sendo analisadas, inclusive a nível internacional, por
organismos, tais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura (UNESCO), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a
Organização Internacional do Trabalho (OIT). Afinal, a insuficiência e ineficiência
na escolaridade favorece a expansão do contingente populacional lançado às
condições de precarização do trabalho e submetidos, até mesmo, a condições de
trabalho análogo à escravidão, favorecendo o surgimento de gerações perdidas,
sem quaisquer perspectivas de um futuro digno.
Quem assistiu ao filme “Que horas ela volta?” 2,
de 2015, entende o ponto onde quero chegar. Ao criar condições desfavoráveis,
obstaculizando o acesso e a manutenção dos diferentes níveis de ensino no país,
se assegura o viés da extrema-direita de impedir a mobilidade social.
Cortam-se os sonhos pela raiz,
criando no inconsciente coletivo das camadas menos privilegiadas e favorecidas
a ideia de uma impossibilidade misturada a incapacidade. E se chegar a uma
universidade é difícil de imaginar, o sonho de ser cientista, de fazer um
mestrado, ou um doutorado, se esvai como fumaça.
Ao que se percebe, com certa
facilidade, é que as políticas afirmativas que propiciaram o ingresso desses
alunos às instituições de ensino públicas e privadas causaram um desconforto,
um incômodo absurdo para os adeptos da extrema-direita, na medida em que as
fronteiras da desigualdade foram destituídas.
Esses cidadãos, agora, podiam sonhar,
podiam aspirar por um futuro diferente, podiam almejar melhores posições no
mercado de trabalho, melhores salários, enfim ... Para muitas famílias o sonho
da igualdade cidadã, prevista na Constituição, estava se materializando. Eram sonhos
individuais personificados na figura de filhos (a), netos (a), bisnetos (a), de
gente que não pode sonhar, que foi privado de sonhar e, agora, poderiam.
Enquanto o mundo absorve mentes
brilhantes, talentos indiscutíveis, o Brasil desdenha os seus. Sem que haja uma
formalização dessa manifestação excludente, por instrumentos jurídico-administrativos
objetivamente elucidativos a respeito, suas atitudes falam por si só, deixando expostas
as intenções preconceituosas, discriminatórias, heranças malditas da sua experiência
colonialista.
Uma pena, diante da dimensão das
perdas que esse movimento ideológico retrógrado representa. Porque o Brasil
poderia ser um celeiro da Ciência, das grandes descobertas, das patentes, dos royalties, ... Poderia ressignificar a sua
importância no cenário mundial. Poderia virar, definitivamente, as páginas
tristes da sua história e fazer justiça aos cidadãos que nunca lhe negaram o
suor de seus esforços.
Fernando Pessoa, o grande poeta português,
dizia que “Matar o sonho é matar-nos. É mutilar
a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e
inexpugnavelmente nosso”; por isso, “Os
melhores sonhos de todos são aqueles que nos põem a pensar e a mexer. Os únicos
sonhos de que vale a pena falar são os que não nos deixam dormir” (Miguel
Esteves Cardoso – crítico, escritor e jornalista português).
Portanto, é lamentável o que está
acontecendo bem debaixo do nariz da sociedade brasileira e ela se dá ao luxo de
permanecer lendo apenas as linhas dos acontecimentos, para não se aprofundar,
não se deparar com o que possa ser mais desagradável. É triste ter que admitir
mais essa verdade; mas, ela ainda acredita que sonhar só pode ser privilégio de
alguns.