domingo, 12 de dezembro de 2021

Sonhos cortados pela raiz


Sonhos cortados pela raiz

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não, não é um mero desmantelamento o que está acontecendo na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) 1, uma autarquia ligada ao Ministério da Educação. A recente renúncia de mais de 100 pesquisadores da instituição não se resume à paralisação das avaliações quadrienais dos cursos de Pós-Graduação stricto sensu (Mestrado e Doutorado) ocorridas por determinação da Justiça Federal em atendimento ao Ministério Público que questionou o sistema empregado.

É preciso reconhecer que os prejuízos decorrentes desses acontecimentos não são poucos ou desimportantes; mas, isso é só espuma perto do que parece ser o cerne da questão. O que se apura dos últimos três anos em relação à Educação brasileira é exatamente um conjunto de medidas visando a sua desconstrução sem vias de uma eventual reconstrução. Renúncias, exonerações, cortes robustos dos recursos, enfim.

Mas, conforme noticiam os veículos de informação e comunicação, ao longo desse período, essa sempre foi uma pasta submetida às influências de um chamado “núcleo ideológico” da atual gestão federal. De modo que todos os ministros que foram responsáveis pelo setor e seus subordinados têm exercido suas funções de maneira a atender a essa proposta, que visivelmente contraria o que prevê a Constituição Federal de 1988 (artigos 205 a 214), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. º 9394, de 1996, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), de 2018, e todos os demais instrumentos jurídicos pertinentes à Educação nacional.

A verdade é que esse “núcleo ideológico” está comprometido diretamente com a extrema-direita que tenta se reestabelecer no país. O que significa, em linhas gerais, que não há quaisquer interesses ou preocupações em oferecer uma educação quantitativa e qualitativa eficiente e abrangente à toda população; sobretudo, às parcelas mais vulneráveis e desassistidas.

Algo que ficou bastante visível durante esses dois últimos anos. Em razão da Pandemia do Sars-Cov-2, milhares de crianças e adolescentes tiveram seus estudos comprometidos pela ausência de um planejamento estratégico de emergência, coordenado pelo Ministério da Educação, para atendê-los através do ensino à distância.

A inacessibilidade digital e a deficiência, no que diz respeito ao Letramento Digital, mostraram a sua face mais perversa e cruel dentro dessa conjuntura inesperada. Porque esse foi o recorte de um enorme contingente de alunos, pertencentes aos 94% da população constituída pela classe média tradicional e a classe baixa, impactados economicamente pelas políticas do país e agravadas pela Pandemia.

Há de se reconhecer que milhares de famílias tiveram sua renda reduzida pela metade, alguns perderam seus postos de trabalho, outros foram morar em condições subumanas, de modo que o acesso a uma nova realidade da Educação tornou-se inviável, para não dizer, impossível.

E as consequências e repercussões desse processo já estão sendo analisadas, inclusive a nível internacional, por organismos, tais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Afinal, a insuficiência e ineficiência na escolaridade favorece a expansão do contingente populacional lançado às condições de precarização do trabalho e submetidos, até mesmo, a condições de trabalho análogo à escravidão, favorecendo o surgimento de gerações perdidas, sem quaisquer perspectivas de um futuro digno.

Quem assistiu ao filme “Que horas ela volta?” 2, de 2015, entende o ponto onde quero chegar. Ao criar condições desfavoráveis, obstaculizando o acesso e a manutenção dos diferentes níveis de ensino no país, se assegura o viés da extrema-direita de impedir a mobilidade social.

Cortam-se os sonhos pela raiz, criando no inconsciente coletivo das camadas menos privilegiadas e favorecidas a ideia de uma impossibilidade misturada a incapacidade. E se chegar a uma universidade é difícil de imaginar, o sonho de ser cientista, de fazer um mestrado, ou um doutorado, se esvai como fumaça.

Ao que se percebe, com certa facilidade, é que as políticas afirmativas que propiciaram o ingresso desses alunos às instituições de ensino públicas e privadas causaram um desconforto, um incômodo absurdo para os adeptos da extrema-direita, na medida em que as fronteiras da desigualdade foram destituídas.

Esses cidadãos, agora, podiam sonhar, podiam aspirar por um futuro diferente, podiam almejar melhores posições no mercado de trabalho, melhores salários, enfim ... Para muitas famílias o sonho da igualdade cidadã, prevista na Constituição, estava se materializando. Eram sonhos individuais personificados na figura de filhos (a), netos (a), bisnetos (a), de gente que não pode sonhar, que foi privado de sonhar e, agora, poderiam.

Enquanto o mundo absorve mentes brilhantes, talentos indiscutíveis, o Brasil desdenha os seus. Sem que haja uma formalização dessa manifestação excludente, por instrumentos jurídico-administrativos objetivamente elucidativos a respeito, suas atitudes falam por si só, deixando expostas as intenções preconceituosas, discriminatórias, heranças malditas da sua experiência colonialista.

Uma pena, diante da dimensão das perdas que esse movimento ideológico retrógrado representa. Porque o Brasil poderia ser um celeiro da Ciência, das grandes descobertas, das patentes, dos royalties, ... Poderia ressignificar a sua importância no cenário mundial. Poderia virar, definitivamente, as páginas tristes da sua história e fazer justiça aos cidadãos que nunca lhe negaram o suor de seus esforços.

Fernando Pessoa, o grande poeta português, dizia que “Matar o sonho é matar-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso”; por isso, “Os melhores sonhos de todos são aqueles que nos põem a pensar e a mexer. Os únicos sonhos de que vale a pena falar são os que não nos deixam dormir” (Miguel Esteves Cardoso – crítico, escritor e jornalista português).

Portanto, é lamentável o que está acontecendo bem debaixo do nariz da sociedade brasileira e ela se dá ao luxo de permanecer lendo apenas as linhas dos acontecimentos, para não se aprofundar, não se deparar com o que possa ser mais desagradável. É triste ter que admitir mais essa verdade; mas, ela ainda acredita que sonhar só pode ser privilégio de alguns.