Aporofobia
... A ponta do iceberg
Por
Alessandra Leles Rocha
Concordo que a Aporofobia se
tornou um comportamento cada vez mais assíduo na contemporaneidade. Mas colocando
reparo na dinâmica do cotidiano, começo a acreditar que as manifestações
preconceituosas, intolerantes, discriminatórias e, até mesmo, violentas, não se
resumem a ela. Na verdade, tudo não passa de uma aversão que o ser humano tem pelo
próprio ser humano.
Ora, daqui e dali há sempre
disponível um pretexto para agir na contramão da civilidade, do bom senso, da
dignidade, do respeito. De modo que não há argumentos, ou justificativas, ou
explicações, que sejam suficientemente capazes de sustentar esse modus operandi que se instalou entre os
viventes.
O desconforto diante do outro é
tão avassalador que não há como controlar. Não é porque ele é assim ou assado, isso
ou aquilo, é porque ele é gente e essa condição existencial pode representar
tudo aquilo que não se é. Como se ele fosse um espelho que refletisse o que não
se quer ver, nem confrontar, nem experimentar, porque está além dos limites que
não se quer ultrapassar, seja por medo, por vergonha ou quaisquer outras razões
guardadas nos campos do consciente e do inconsciente.
Então, basta um nada para o
cidadão perder a linha e abdicar da compostura, mergulhando direto nos primórdios
da barbárie. Na onda do vale-tudo a besta fera ocupa o espaço com a sua pior
versão. Xinga, grita, humilha, esbraveja, bate na mesa, chuta a porta, bate,
espanca, ... como se o mundo tivesse que se resumir a ele. Assim, todas as suas
frustrações, recalques e complexos estariam a salvo, guardados secretamente
dentro dele, sem o menor risco de serem descobertos em algum ato falho
desencadeado pela presença deste ou daquele indivíduo.
Afinal, o outro parece ser sempre
mais livre, mais feliz, mais humano, mais ... mais ... mais ... ainda que não
seja. O que leva a se empregar medidas para exterminá-lo objetivamente ou subjugá-lo
a posições de inferioridade, de subalternidade, de maus tratos, de
marginalização.
A questão é que esse tipo
comportamento ao contrário de ser rechaçado publicamente pela sociedade, vem
encontrando eco e respaldo para se propagar. Principalmente, pela ideologia
pregada pelos grupos de extrema-direita mundo afora, os quais fazem da figura
do outro uma constante ameaça aos seus interesses, a sua identidade, a sobrevivência
de suas regalias, privilégios e propriedades.
Basta prestar atenção, que esses
discursos e narrativas estão sendo aspergidos por todo canto. O mundo contemporâneo
vem resgatando as reminiscências da Segunda Guerra Mundial, quando o assunto é
disseminar a filosofia do medo, o medo do outro. E esse outro, na verdade, não
tem rosto, nem raça, nem gênero, nem idade, nem escolaridade, nem nada.
Ele é um ideário pré-fabricado para
fortalecer a doutrinação daqueles que, no fundo, são os verdadeiros amedrontados.
Aqueles que têm plena consciência das suas limitações, das suas inabilidades,
das suas incapacidades, e que precisam de algum estímulo moral para não
sucumbirem, não se entregarem à invisibilidade. Quem assistiu ao filme “Jojo Rabbit” (2019)1 deve se
lembrar desse mecanismo. Quem não assistiu, fica a dica!
Acontece que chega um momento em
que a sociedade está tão pressionada que ela acaba extrapolando as trincheiras
ideológicas, partindo para o ataque propriamente dito, contra esses “inimigos imaginários”, ou seja, a
situação sai totalmente fora de controle.
Em nome do medo da fome, do
desemprego, da indigência, que eles atribuem a culpa aos outros, a conflagração
do conflito aprofunda o caos social, nivelando todos por baixo. As instabilidades
sociopolíticas e econômicas têm esse potencial devastador de transformar países
em terras arrasadas, demandantes de um árduo processo de reconstrução e
recuperação. E a história do mundo já assistiu a isso algumas vezes.
Esse movimento de fragmentação
social que se acirra na contemporaneidade, portanto, tem método, tem propósito,
tem objetivo, só não tem lógica ou nada que seja efetivamente sustentável. Destruir
parcelas da sociedade para garantir a dominância de um determinado grupo é
surreal.
A manutenção do mundo estaria
automaticamente comprometida pela insuficiência numérica da população; mas,
também, da diversidade e da pluralidade que movem o senso criativo e produtivo
que se conhece. Sem contar, que haveria carência de mercado consumidor, com
flagrante declínio do enriquecimento global. Um tiro no pé? Ao que tudo indica,
sim.
Não é à toa que em paralelo a essa
cruzada ideológica irracional da extrema-direita, há pensadores que vêm
trabalhando em favor do decrescimento mundo afora. Trata-se de uma “expressão de várias correntes do pensamento
crítico: a crítica do mercado e da globalização; do excesso; da tecnologia e
tecnociência; do antropocentrismo e da racionalidade instrumental; do homo
economicus e utilitarismo”. De modo que ele “é incorporado pelos movimentos sociais que rejeitam a aceleração, a globalização
econômica e financeira, a extração maciça de recursos naturais, a precipitação cega
sobre questões de energia, propaganda e consumismo e injustiça social e
ambiental”2. Que bom! Nem tudo está perdido!
O professor Milton Santos já
dizia que “a globalização mata a noção de
solidariedade, devolve o homem à condição primitiva do cada um por si e, como
se voltássemos a ser animais da selva, reduz as noções de moralidade pública e
particular a um quase nada”. Daí esse caminho de resistência que se
configura na contemporaneidade ser tão importante, porque ele subtrai essa
ideia errática de que apenas alguns podem viver, podem ser, podem existir,
podem usufruir, ...
O que propõe o decrescimento é
justamente a possibilidade de minimizar as distorções e equívocos sociais,
oferecendo possibilidades mais condizentes à dignidade humana. Mas, sobretudo,
nos fazendo olhar para dentro, nos reposicionando e redimensionando a nossa importância,
o nosso papel no mundo, sem achismos ou casuísmos.
Afinal, todas as vidas importam. Assim,
reza a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Constituição Federal de
1988, os livros sagrados das religiões, ... Isso explica porque “alguém que quer ter uma vida que, sendo
curta não seja pequena, precisa ter a humildade como um de seus valores” (Mário
Sérgio Cortella). Porque na humildade se vê, se escuta, se silencia, se
projeta, se reverencia. Ninguém é mais ou menos. Melhor ou pior. Grande ou
pequeno. É apenas gente. E como diz uma velha canção, “[...] Gente é pra
brilhar / Não pra morrer de fome [...]” 3.
Ser gente é o que nos faz mais iguais do que diferentes nesse mundo de meu
Deus.