sábado, 11 de dezembro de 2021

Aporofobia ... A ponta do iceberg


Aporofobia ... A ponta do iceberg

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Concordo que a Aporofobia se tornou um comportamento cada vez mais assíduo na contemporaneidade. Mas colocando reparo na dinâmica do cotidiano, começo a acreditar que as manifestações preconceituosas, intolerantes, discriminatórias e, até mesmo, violentas, não se resumem a ela. Na verdade, tudo não passa de uma aversão que o ser humano tem pelo próprio ser humano.

Ora, daqui e dali há sempre disponível um pretexto para agir na contramão da civilidade, do bom senso, da dignidade, do respeito. De modo que não há argumentos, ou justificativas, ou explicações, que sejam suficientemente capazes de sustentar esse modus operandi que se instalou entre os viventes.   

O desconforto diante do outro é tão avassalador que não há como controlar. Não é porque ele é assim ou assado, isso ou aquilo, é porque ele é gente e essa condição existencial pode representar tudo aquilo que não se é. Como se ele fosse um espelho que refletisse o que não se quer ver, nem confrontar, nem experimentar, porque está além dos limites que não se quer ultrapassar, seja por medo, por vergonha ou quaisquer outras razões guardadas nos campos do consciente e do inconsciente.

Então, basta um nada para o cidadão perder a linha e abdicar da compostura, mergulhando direto nos primórdios da barbárie. Na onda do vale-tudo a besta fera ocupa o espaço com a sua pior versão. Xinga, grita, humilha, esbraveja, bate na mesa, chuta a porta, bate, espanca, ... como se o mundo tivesse que se resumir a ele. Assim, todas as suas frustrações, recalques e complexos estariam a salvo, guardados secretamente dentro dele, sem o menor risco de serem descobertos em algum ato falho desencadeado pela presença deste ou daquele indivíduo.

Afinal, o outro parece ser sempre mais livre, mais feliz, mais humano, mais ... mais ... mais ... ainda que não seja. O que leva a se empregar medidas para exterminá-lo objetivamente ou subjugá-lo a posições de inferioridade, de subalternidade, de maus tratos, de marginalização.

A questão é que esse tipo comportamento ao contrário de ser rechaçado publicamente pela sociedade, vem encontrando eco e respaldo para se propagar. Principalmente, pela ideologia pregada pelos grupos de extrema-direita mundo afora, os quais fazem da figura do outro uma constante ameaça aos seus interesses, a sua identidade, a sobrevivência de suas regalias, privilégios e propriedades.

Basta prestar atenção, que esses discursos e narrativas estão sendo aspergidos por todo canto. O mundo contemporâneo vem resgatando as reminiscências da Segunda Guerra Mundial, quando o assunto é disseminar a filosofia do medo, o medo do outro. E esse outro, na verdade, não tem rosto, nem raça, nem gênero, nem idade, nem escolaridade, nem nada.

Ele é um ideário pré-fabricado para fortalecer a doutrinação daqueles que, no fundo, são os verdadeiros amedrontados. Aqueles que têm plena consciência das suas limitações, das suas inabilidades, das suas incapacidades, e que precisam de algum estímulo moral para não sucumbirem, não se entregarem à invisibilidade.  Quem assistiu ao filme “Jojo Rabbit” (2019)1 deve se lembrar desse mecanismo. Quem não assistiu, fica a dica!

Acontece que chega um momento em que a sociedade está tão pressionada que ela acaba extrapolando as trincheiras ideológicas, partindo para o ataque propriamente dito, contra esses “inimigos imaginários”, ou seja, a situação sai totalmente fora de controle.

Em nome do medo da fome, do desemprego, da indigência, que eles atribuem a culpa aos outros, a conflagração do conflito aprofunda o caos social, nivelando todos por baixo. As instabilidades sociopolíticas e econômicas têm esse potencial devastador de transformar países em terras arrasadas, demandantes de um árduo processo de reconstrução e recuperação. E a história do mundo já assistiu a isso algumas vezes.

Esse movimento de fragmentação social que se acirra na contemporaneidade, portanto, tem método, tem propósito, tem objetivo, só não tem lógica ou nada que seja efetivamente sustentável. Destruir parcelas da sociedade para garantir a dominância de um determinado grupo é surreal.

A manutenção do mundo estaria automaticamente comprometida pela insuficiência numérica da população; mas, também, da diversidade e da pluralidade que movem o senso criativo e produtivo que se conhece. Sem contar, que haveria carência de mercado consumidor, com flagrante declínio do enriquecimento global. Um tiro no pé? Ao que tudo indica, sim.

Não é à toa que em paralelo a essa cruzada ideológica irracional da extrema-direita, há pensadores que vêm trabalhando em favor do decrescimento mundo afora. Trata-se de uma “expressão de várias correntes do pensamento crítico: a crítica do mercado e da globalização; do excesso; da tecnologia e tecnociência; do antropocentrismo e da racionalidade instrumental; do homo economicus e utilitarismo”. De modo que ele “é incorporado pelos movimentos sociais que rejeitam a aceleração, a globalização econômica e financeira, a extração maciça de recursos naturais, a precipitação cega sobre questões de energia, propaganda e consumismo e injustiça social e ambiental”2. Que bom! Nem tudo está perdido!

O professor Milton Santos já dizia que “a globalização mata a noção de solidariedade, devolve o homem à condição primitiva do cada um por si e, como se voltássemos a ser animais da selva, reduz as noções de moralidade pública e particular a um quase nada”. Daí esse caminho de resistência que se configura na contemporaneidade ser tão importante, porque ele subtrai essa ideia errática de que apenas alguns podem viver, podem ser, podem existir, podem usufruir, ...

O que propõe o decrescimento é justamente a possibilidade de minimizar as distorções e equívocos sociais, oferecendo possibilidades mais condizentes à dignidade humana. Mas, sobretudo, nos fazendo olhar para dentro, nos reposicionando e redimensionando a nossa importância, o nosso papel no mundo, sem achismos ou casuísmos.   

Afinal, todas as vidas importam. Assim, reza a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Constituição Federal de 1988, os livros sagrados das religiões, ... Isso explica porque “alguém que quer ter uma vida que, sendo curta não seja pequena, precisa ter a humildade como um de seus valores” (Mário Sérgio Cortella). Porque na humildade se vê, se escuta, se silencia, se projeta, se reverencia. Ninguém é mais ou menos. Melhor ou pior. Grande ou pequeno. É apenas gente. E como diz uma velha canção, “[...] Gente é pra brilhar / Não pra morrer de fome [...]” 3. Ser gente é o que nos faz mais iguais do que diferentes nesse mundo de meu Deus.