Sobre
o Natal e os Direitos Humanos
Por
Alessandra Leles Rocha
Embora não se trate de uma
escolha proposital; mas, o fato do Dia Internacional dos Direitos Humanos, 10
de dezembro, ser comemorado no mês natalino não deixa de ser profundamente
emblemático, independentemente, da profissão de fé de cada um. A história do
Nazareno Jesus e sua família, durante o momento do seu nascimento, é semelhante
à de tantas outras em seu tempo e agora. Infelizmente, o mundo ainda persegue
os inocentes e lhes impõe fugir em busca da sobrevivência. Assim, lá vão eles,
humildes desvalidos, sem teto, sem pão, sem nada, enfrentando as adversidades
do caminho.
Querendo ou não, Cristo foi o
maior exemplo na luta pelos Direitos Humanos. Nascido desprovido de quaisquer
confortos, regalias, privilégios ou riquezas, ele se manteve assim ao longo dos
seus 33 anos, sendo o exemplo em si mesmo das suas palavras. Pregando os
direitos que reconhecem e protegem à dignidade humana, emoldurados pelo
respeito e pelo amor ao seu próximo, seja ele quem for. Por isso, a sua chegada a esse mundo foi tão
impactante. Ele nasceu para desconstruir e ressignificar valores e princípios
humanitários, a fim de fazer desse mundo um lugar melhor, com mais paz, mais fraternidade,
mais união, mais igualdade.
E passados mais de 2000 mil anos,
a estrela que anunciou a sua chegada aos três Reis Magos, ressurge para nos
reanimar a refletir sobre o renascimento dele outra vez. Pois é, o Natal é uma
celebração dos Direitos Humanos, lançando um olhar profundo e silencioso sobre
nossas relações individuais e coletivas, enquanto dobramos nossos joelhos e
unimos nossas mãos em momentos de oração. Aliás, quando eu penso sobre isso me
vem à mente a canção (em forma de prece) escrita por Gilberto Gil, em 1981 1. “Se
eu quiser falar com Deus” expressa a disposição que deve caber na vida de
cada ser humano ao se conectar com o sagrado. A disposição de ser humilde, de
ser despojado, de ouvir, de refletir, de se desculpar, diante do símbolo maior
da sua fé.
É esse movimento que faz luzir em
nós a consciência dos Direitos Humanos, como bens universais, inalienáveis,
indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. Entendê-los significa,
então, absorver o que dizia o Nazareno. Não somente em palavras; mas, na
prática, no exercício cotidiano. Através de um amor que vai além do amar, que
já não é pouca coisa.
Mas, é um amor que se decompõe em
respeito, em comunhão, em fraternidade, em generosidade, em cuidado, em afeto
desmedido. Um amor que sabe realmente acolher, sabe abraçar, sabe acalentar,
sabe repartir, sabe estar presente mesmo quando não está. Um amor que vez por outra
faz brotar sobre a Terra uma Santa Dulce dos Pobres, um Padre Júlio Lancellotti,
uma Lucinha Araújo, uns Médicos Sem Fronteiras, uma Cruz Vermelha e tantos mais.
Ora, e não é isso o que se quer
no Natal? O bem do mundo, das pessoas? O amor sendo expresso em todas as formas
e direções? A alegria e o contentamento pairando no ar? Os Direitos Humanos
também querem. Hoje, amanhã, depois, depois, ... sempre. Porque é nisso que
reside a evolução, a grande transformação dos seres humanos nessa odisseia
chamada vida. Estamos aqui de passagem, nada é eterno, nada é para sempre. O
objetivo ao longo desses dias, sem aviso prévio para acabar, é justamente fazer
algo que nos permita sentir satisfação positiva, pela capacidade intrínseca de
expressar justiça, bondade e beleza no mundo.
E por mais que os Natais, ano
após ano, tentem nos inspirar, nos demover da indiferença e do individualismo,
ainda estamos distantes de poder celebrá-lo com a sinceridade devida, porque
não alcançamos um posicionamento franco e honesto como defensores dos Direitos
Humanos. Uma passada de olhos pelos veículos de informação e comunicação e lá
estão exemplos, em profusão, do abismo que existe e persiste na nossa realidade
cotidiana.
“Moradores
pegam lixo de mercado em caminhão em bairro nobre de Fortaleza” 2. “Pandemia aumenta o número de
moradores em situação de rua no Rio”3.
“Menino encontra árvore de Natal em lixão no Maranhão e foto comovente
viraliza” 4. “Pessoas fazem fila para matar fome
com ossos de carne em Cuiabá (MT)” 5.
“Tuberculose e doenças sexuais infectam 26 mil presos no Brasil” 6. “Órfãos do feminicídio: um problema
que não podemos ignorar” 7. ...
O sociólogo brasileiro Herbert de
Souza dizia que “O que somos é um
presente que a vida nos dá. O que nós seremos é um presente que daremos à vida”.
Sabe, no fim das contas, o Natal e os Direitos Humanos acabam revelando a
maneira como influenciam verdadeiramente a nossa construção humana, o nosso
olhar sobre o mundo. Na medida em que não se sustentam sobre bases frágeis e
inconsistentes, eles revelam como temos sido controlados e, até mesmo,
manipulados, pela superficialidade individualista que nos habita, especialmente
no mundo contemporâneo, nos tornando hábeis proclamadores de discursos vazios
que não preenchem as demandas reais da humanidade, porque não se convertem em
ações práticas e robustas.
De modo que a nossa desumanidade
começa ao fazermos a festa para um aniversariante que nunca é convidado, que
está sempre à margem das comemorações, das lembranças, dos ensinamentos. Mas,
não para por aí. Ela demonstra exatamente a dimensão do mau uso que temos feito
da nossa própria existência, do presente que nos foi dado. Temos desconstruído
a vida, os valores, os princípios, as crenças, ... tudo. Estamos cada vez mais
distantes da nossa essência, da nossa humanidade. Nos perdemos pelos espelhos
da vida, a cada ato narcísico que nos consumiu sem pedir licença. Por isso, não é à toa que chega a ser temeroso
pensar sobre o que seremos nesse futuro breve e incerto da vida.
1 Se Eu
Quiser Falar Com Deus (Disco Luar 1981) - https://www.youtube.com/watch?v=wnWOyELwyhE
2 https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/10/18/moradores-pegam-comida-em-caminhao-de-lixo-em-bairro-nobre-fortaleza.htm
3 https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-08/pandemia-aumenta-numero-de-moradores-em-situacao-de-rua-no-rio
4 https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/12/4967357-menino-encontra-arvore-de-natal-em-lixao-no-maranhao-e-foto-comovente-viraliza.html