sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Sobre o Natal e os Direitos Humanos


Sobre o Natal e os Direitos Humanos

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Embora não se trate de uma escolha proposital; mas, o fato do Dia Internacional dos Direitos Humanos, 10 de dezembro, ser comemorado no mês natalino não deixa de ser profundamente emblemático, independentemente, da profissão de fé de cada um. A história do Nazareno Jesus e sua família, durante o momento do seu nascimento, é semelhante à de tantas outras em seu tempo e agora. Infelizmente, o mundo ainda persegue os inocentes e lhes impõe fugir em busca da sobrevivência. Assim, lá vão eles, humildes desvalidos, sem teto, sem pão, sem nada, enfrentando as adversidades do caminho.

Querendo ou não, Cristo foi o maior exemplo na luta pelos Direitos Humanos. Nascido desprovido de quaisquer confortos, regalias, privilégios ou riquezas, ele se manteve assim ao longo dos seus 33 anos, sendo o exemplo em si mesmo das suas palavras. Pregando os direitos que reconhecem e protegem à dignidade humana, emoldurados pelo respeito e pelo amor ao seu próximo, seja ele quem for.  Por isso, a sua chegada a esse mundo foi tão impactante. Ele nasceu para desconstruir e ressignificar valores e princípios humanitários, a fim de fazer desse mundo um lugar melhor, com mais paz, mais fraternidade, mais união, mais igualdade.

E passados mais de 2000 mil anos, a estrela que anunciou a sua chegada aos três Reis Magos, ressurge para nos reanimar a refletir sobre o renascimento dele outra vez. Pois é, o Natal é uma celebração dos Direitos Humanos, lançando um olhar profundo e silencioso sobre nossas relações individuais e coletivas, enquanto dobramos nossos joelhos e unimos nossas mãos em momentos de oração. Aliás, quando eu penso sobre isso me vem à mente a canção (em forma de prece) escrita por Gilberto Gil, em 1981 1. “Se eu quiser falar com Deus” expressa a disposição que deve caber na vida de cada ser humano ao se conectar com o sagrado. A disposição de ser humilde, de ser despojado, de ouvir, de refletir, de se desculpar, diante do símbolo maior da sua fé.

É esse movimento que faz luzir em nós a consciência dos Direitos Humanos, como bens universais, inalienáveis, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. Entendê-los significa, então, absorver o que dizia o Nazareno. Não somente em palavras; mas, na prática, no exercício cotidiano. Através de um amor que vai além do amar, que já não é pouca coisa.

Mas, é um amor que se decompõe em respeito, em comunhão, em fraternidade, em generosidade, em cuidado, em afeto desmedido. Um amor que sabe realmente acolher, sabe abraçar, sabe acalentar, sabe repartir, sabe estar presente mesmo quando não está. Um amor que vez por outra faz brotar sobre a Terra uma Santa Dulce dos Pobres, um Padre Júlio Lancellotti, uma Lucinha Araújo, uns Médicos Sem Fronteiras, uma Cruz Vermelha e tantos mais.

Ora, e não é isso o que se quer no Natal? O bem do mundo, das pessoas? O amor sendo expresso em todas as formas e direções? A alegria e o contentamento pairando no ar? Os Direitos Humanos também querem. Hoje, amanhã, depois, depois, ... sempre. Porque é nisso que reside a evolução, a grande transformação dos seres humanos nessa odisseia chamada vida. Estamos aqui de passagem, nada é eterno, nada é para sempre. O objetivo ao longo desses dias, sem aviso prévio para acabar, é justamente fazer algo que nos permita sentir satisfação positiva, pela capacidade intrínseca de expressar justiça, bondade e beleza no mundo.

E por mais que os Natais, ano após ano, tentem nos inspirar, nos demover da indiferença e do individualismo, ainda estamos distantes de poder celebrá-lo com a sinceridade devida, porque não alcançamos um posicionamento franco e honesto como defensores dos Direitos Humanos. Uma passada de olhos pelos veículos de informação e comunicação e lá estão exemplos, em profusão, do abismo que existe e persiste na nossa realidade cotidiana.

“Moradores pegam lixo de mercado em caminhão em bairro nobre de Fortaleza” 2. “Pandemia aumenta o número de moradores em situação de rua no Rio”3. “Menino encontra árvore de Natal em lixão no Maranhão e foto comovente viraliza” 4. “Pessoas fazem fila para matar fome com ossos de carne em Cuiabá (MT)” 5. “Tuberculose e doenças sexuais infectam 26 mil presos no Brasil” 6. “Órfãos do feminicídio: um problema que não podemos ignorar” 7. ...

O sociólogo brasileiro Herbert de Souza dizia que “O que somos é um presente que a vida nos dá. O que nós seremos é um presente que daremos à vida”. Sabe, no fim das contas, o Natal e os Direitos Humanos acabam revelando a maneira como influenciam verdadeiramente a nossa construção humana, o nosso olhar sobre o mundo. Na medida em que não se sustentam sobre bases frágeis e inconsistentes, eles revelam como temos sido controlados e, até mesmo, manipulados, pela superficialidade individualista que nos habita, especialmente no mundo contemporâneo, nos tornando hábeis proclamadores de discursos vazios que não preenchem as demandas reais da humanidade, porque não se convertem em ações práticas e robustas.

De modo que a nossa desumanidade começa ao fazermos a festa para um aniversariante que nunca é convidado, que está sempre à margem das comemorações, das lembranças, dos ensinamentos. Mas, não para por aí. Ela demonstra exatamente a dimensão do mau uso que temos feito da nossa própria existência, do presente que nos foi dado. Temos desconstruído a vida, os valores, os princípios, as crenças, ... tudo. Estamos cada vez mais distantes da nossa essência, da nossa humanidade. Nos perdemos pelos espelhos da vida, a cada ato narcísico que nos consumiu sem pedir licença.  Por isso, não é à toa que chega a ser temeroso pensar sobre o que seremos nesse futuro breve e incerto da vida.

 



1 Se Eu Quiser Falar Com Deus (Disco Luar 1981) - https://www.youtube.com/watch?v=wnWOyELwyhE