quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Não, lugar de fala não é pouca coisa


Não, lugar de fala não é pouca coisa

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Por mais que tentamos acompanhar o mundo, segundo a segundo, percebendo e dissecando suas camadas, sozinhos os nossos olhos são realmente insuficientes e ineficientes para ver tudo o que há para ser visto. É preciso estar coletivamente integrado para que seja possível romper as bolhas, as invisibilidades, os silêncios, que se arrastam por séculos e séculos, impedindo que as transformações de fato existam e se consolidem. Só vasculhando os espaços da história, arejando e limpando as memórias, é que se torna efetivamente possível aprender para evoluir, aprender para ser.

Se engana quem pensa que as complexidades da vida estão todas colocadas sobre a mesa, disponíveis nos veículos de informação e comunicação. Não, por trás de cada uma delas existem milhares de outras tantas que, voluntária ou involuntariamente, nos passam despercebidas, porque nos falta a vivência, a experimentação cotidiana, para senti-las à flor da pele, no mais profundo da própria alma. De certo modo, nos falta o devido interesse, ou o devido traquejo, para transitar pela vida calçando os sapatos alheios. Porque é essa prática difícil e desconfortável que lança luz sobre a nossa consciência, o nosso olhar, a nossa reflexão.

Então, esse é o ponto. Não há um protocolo, um limite, uma escala homogeneizante capaz de fazer com que as mazelas, as agruras, os infortúnios, que estampam as manchetes das mídias nacionais e internacionais, sejam experenciadas da mesma forma e intensidade por todos. Cada um no seu canto chora seu tanto e tem perspectivas muito particulares das suas experiências. O que ajuda a explicar porque “A linguagem é o repositório de nossos preconceitos, de nossas crenças, de nossos pressupostos” (Chimamanda Ngozi Adichie) e é tão influente e poderosa, quando o assunto é a persuasão e a manipulação social em detrimento deste ou daquele.

Afinal de contas, as desigualdades começam pela apartação dos seres humanos, em segmentos sociais que determinam sua importância ou desimportância no mundo. A partir disso, a realidade é contada, em prosa e verso, majoritariamente pela perspectiva daqueles que estão no topo, que dominam, que mandam, não daqueles que são dominados e que obedecem. De modo que ela passa a ser de mão única, sem contestação, sem dar voz e vez a participação de todos, ficando tendenciosamente enviesada.

Por isso, como explica a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, “A história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história. A consequência de uma única história é essa: ela rouba das pessoas sua dignidade, dificultando o reconhecimento de nossa humanidade compartilhada, enfatizando como nós somos diferentes, ao invés de como somos semelhantes. [...] Quando rejeitamos a única história, e percebemos que nunca há uma única história sobre lugar nenhum, nós reconquistamos um tipo de paraíso”.

Trata-se de um mecanismo de segregação social que nos impede de refletir e questionar os modelos impostos. Não é à toa que tantas agruras, tantas mazelas, passam à margem. Acabamos tão absortos em nossas próprias realidades que perdemos a dimensão dos significados dos desdobramentos que recaem uns sobre os outros. Até que, de repente, essa desigualdade no modo de perceber, de identificar, imprime seu peso sobre todas as demais desigualdades do mundo e um desconforto social começa a emergir.

Vejam que foi necessária uma Pandemia para que a realidade brasileira se descortinasse o suficiente para sacudir suas poeiras. A incapacidade de lidar com a situação inesperada somada a uma sucessão de pseudoplanejamentos erráticos e a uma ideologia elitista enviesada ao extremismo, foi a verdadeira gota d’água para dar início a escrita da história por outras perspectivas. Todos queriam externar suas angústias, suas tristezas, suas perdas, suas decepções. Queriam abandonar suas posições coadjuvantes e assumir um protagonismo negado há tempos. E nem precisavam da sua oralidade para tal, a linguagem não verbal se mostrou mais profícua e contundente do que qualquer outra.

Não é à toa que Darcy Ribeiro dizia que “O Brasil, último país a acabar com a escravidão tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso”. Foi assim que os 94% da população brasileira, pertencente a classe média tradicional e a classe baixa, foi se descobrindo mais igual do que diferente durante a Pandemia. Diante do empobrecimento a consumir a sua sobrevivência, a sua dignidade, através da perda de trabalho, da volta da inflação, da desvalorização cambial, dos altos juros, ... seus preconceitos, crenças e valores foram sendo sumariamente questionados à sua própria revelia.

O espaço para pseudossuperioridades ou ataques de pequenos poderes, então, começa a desaparecer. Ninguém pode se considerar mais ou menos na fila do pão, porque a qualquer momento pode estar na fila do osso de boi, do pé de galinha, do arroz e feijão de terceira, ou mesmo, revirando caminhões de lixo. Afinal, como escreveu Ariano Suassuna, “é muito difícil vencer a injustiça secular, que dilacera o Brasil em dois países distintos: o país dos privilegiados e o país dos despossuídos”. Se havia dúvidas a esse respeito, agora, não mais.

Assim, na medida em que saíram da sua invisibilidade, conscientes da sua identidade social, essas pessoas foram arrebatadas imediatamente pela verdade que não conseguiam ver ou, talvez, não pudessem. Agora, tudo é diferente. Talvez, pela primeira vez, estejam aptas a contar a própria história, no exercício do seu protagonismo, da sua autoralidade.

Então, se lhes perguntarem “O que são as pessoas de carne e osso? ”, elas podem até responder que “Para os mais notórios economistas, números. Para os mais poderosos banqueiros, devedores. Para os mais influentes tecnocratas, incômodos. E para os mais exitosos políticos, votos” (Eduardo Galeano – jornalista e escritor uruguaio). Mas, na verdade, elas têm a plena consciência de que é ter simplesmente seu lugar de fala no mundo.