Não,
lugar de fala não é pouca coisa
Por
Alessandra Leles Rocha
Por mais que tentamos acompanhar
o mundo, segundo a segundo, percebendo e dissecando suas camadas, sozinhos os
nossos olhos são realmente insuficientes e ineficientes para ver tudo o que há
para ser visto. É preciso estar coletivamente integrado para que seja possível
romper as bolhas, as invisibilidades, os silêncios, que se arrastam por séculos
e séculos, impedindo que as transformações de fato existam e se consolidem. Só
vasculhando os espaços da história, arejando e limpando as memórias, é que se
torna efetivamente possível aprender para evoluir, aprender para ser.
Se engana quem pensa que as
complexidades da vida estão todas colocadas sobre a mesa, disponíveis nos
veículos de informação e comunicação. Não, por trás de cada uma delas existem
milhares de outras tantas que, voluntária ou involuntariamente, nos passam
despercebidas, porque nos falta a vivência, a experimentação cotidiana, para senti-las
à flor da pele, no mais profundo da própria alma. De certo modo, nos falta o
devido interesse, ou o devido traquejo, para transitar pela vida calçando os
sapatos alheios. Porque é essa prática difícil e desconfortável que lança luz
sobre a nossa consciência, o nosso olhar, a nossa reflexão.
Então, esse é o ponto. Não há um
protocolo, um limite, uma escala homogeneizante capaz de fazer com que as
mazelas, as agruras, os infortúnios, que estampam as manchetes das mídias
nacionais e internacionais, sejam experenciadas da mesma forma e intensidade
por todos. Cada um no seu canto chora seu tanto e tem perspectivas muito
particulares das suas experiências. O que ajuda a explicar porque “A linguagem é o repositório de nossos
preconceitos, de nossas crenças, de nossos pressupostos” (Chimamanda Ngozi
Adichie) e é tão influente e poderosa, quando o assunto é a persuasão e a
manipulação social em detrimento deste ou daquele.
Afinal de contas, as
desigualdades começam pela apartação dos seres humanos, em segmentos sociais
que determinam sua importância ou desimportância no mundo. A partir disso, a
realidade é contada, em prosa e verso, majoritariamente pela perspectiva
daqueles que estão no topo, que dominam, que mandam, não daqueles que são
dominados e que obedecem. De modo que ela passa a ser de mão única, sem
contestação, sem dar voz e vez a participação de todos, ficando
tendenciosamente enviesada.
Por isso, como explica a
escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, “A história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos
não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma
história tornar-se a única história. A consequência de uma única história é
essa: ela rouba das pessoas sua dignidade, dificultando o reconhecimento de
nossa humanidade compartilhada, enfatizando como nós somos diferentes, ao invés
de como somos semelhantes. [...] Quando rejeitamos a única história, e
percebemos que nunca há uma única história sobre lugar nenhum, nós
reconquistamos um tipo de paraíso”.
Trata-se de um mecanismo de
segregação social que nos impede de refletir e questionar os modelos impostos. Não
é à toa que tantas agruras, tantas mazelas, passam à margem. Acabamos tão absortos
em nossas próprias realidades que perdemos a dimensão dos significados dos desdobramentos
que recaem uns sobre os outros. Até que, de repente, essa desigualdade no modo
de perceber, de identificar, imprime seu peso sobre todas as demais desigualdades
do mundo e um desconforto social começa a emergir.
Vejam que foi necessária uma
Pandemia para que a realidade brasileira se descortinasse o suficiente para sacudir
suas poeiras. A incapacidade de lidar com a situação inesperada somada a uma
sucessão de pseudoplanejamentos erráticos e a uma ideologia elitista enviesada
ao extremismo, foi a verdadeira gota d’água para dar início a escrita da
história por outras perspectivas. Todos queriam externar suas angústias, suas
tristezas, suas perdas, suas decepções. Queriam abandonar suas posições
coadjuvantes e assumir um protagonismo negado há tempos. E nem precisavam da
sua oralidade para tal, a linguagem não verbal se mostrou mais profícua e
contundente do que qualquer outra.
Não é à toa que Darcy Ribeiro
dizia que “O Brasil, último país a acabar
com a escravidão tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a
nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso”. Foi assim que
os 94% da população brasileira, pertencente a classe média tradicional e a
classe baixa, foi se descobrindo mais igual do que diferente durante a Pandemia.
Diante do empobrecimento a consumir a sua sobrevivência, a sua dignidade,
através da perda de trabalho, da volta da inflação, da desvalorização cambial,
dos altos juros, ... seus preconceitos, crenças e valores foram sendo
sumariamente questionados à sua própria revelia.
O espaço para pseudossuperioridades
ou ataques de pequenos poderes, então, começa a desaparecer. Ninguém pode se
considerar mais ou menos na fila do pão, porque a qualquer momento pode estar
na fila do osso de boi, do pé de galinha, do arroz e feijão de terceira, ou
mesmo, revirando caminhões de lixo. Afinal, como escreveu Ariano Suassuna, “é muito difícil vencer a injustiça secular,
que dilacera o Brasil em dois países distintos: o país dos privilegiados e o
país dos despossuídos”. Se havia dúvidas a esse respeito, agora, não mais.
Assim, na medida em que saíram da
sua invisibilidade, conscientes da sua identidade social, essas pessoas foram
arrebatadas imediatamente pela verdade que não conseguiam ver ou, talvez, não
pudessem. Agora, tudo é diferente. Talvez, pela primeira vez, estejam aptas a
contar a própria história, no exercício do seu protagonismo, da sua
autoralidade.
Então, se lhes perguntarem “O que são as pessoas de carne e osso? ”,
elas podem até responder que “Para os
mais notórios economistas, números. Para os mais poderosos banqueiros,
devedores. Para os mais influentes tecnocratas, incômodos. E para os mais
exitosos políticos, votos” (Eduardo Galeano – jornalista e escritor uruguaio).
Mas, na verdade, elas têm a plena consciência de que é ter simplesmente seu lugar
de fala no mundo.