Ganância...
Por
Alessandra Leles Rocha
Chama a atenção como a ganância está
se intensificando no mundo contemporâneo. Para negar, ou pelo menos
invisibilizar, a sua imortalidade, os seres humanos querem se diferenciar uns
dos outros através do poder capital. E para isso, quanto mais melhor. Não importam
os meios. O vale-tudo está por aí, em cada esquina, refletindo a deterioração
ética e moral da sociedade. O pior é que não se trata de um problema pontual,
só do Brasil. Em várias outras partes do planeta o mesmo acontece.
Infelizmente, os tempos das
ameaças bélicas, do potencial de fogo dos grandes exércitos, ficou para trás,
quando o assunto é a dizimação da raça humana. Agora, está centrado na fome, na
miséria, na poluição e nas doenças, o caminho para o grande extermínio global. Trata-se
de uma investida lenta, gradual e silenciosa que vai consumindo populações inteiras,
na medida da total desassistência e negligência governamental, os quais vieram substituir
a necessidade dos antigos campos de concentração.
Na realidade atual todos os
lugares podem ter essa função. Basta seguir corretamente os ditames da ganância
e deixar florescer as desigualdades, na expressão da mais completa
inacessibilidade aos direitos humanos fundamentais. Então, de repente, a vida
começa a minguar, a se desconfigurar, a desaparecer. Legiões inteiras, de todos gêneros, crenças,
raças, idades. À revelia de sua vontade, o ser humano descobre que não há mais
espaço para ele no planeta.
E uma das explicações para isso
chega pela expressão da 4ª Revolução Industrial ou Revolução 4.0. O avanço tecnológico
está caminhando para demandar cada vez menos a presença de seres humanos. De
modo que os espaços no mercado de trabalho serão insuficientes para absorver os
grandes contingentes de desempregados espalhados mundo afora. O resultado disso
é uma exposição maciça de pessoas à vulnerabilidade social, à uma vida incapaz
de satisfazer dignamente a sobrevivência. O que representa uma reafirmação do
achatamento do status social da população, tendendo a fundir as camadas menos
favorecidas.
Aliás, esse é um fenômeno que vem
acontecendo há décadas. Começou com a mecanização da agricultura, especialmente
nas grandes “plantations” destinadas
à exportação. Tanto que nos lugares onde a mão-de-obra humana ainda dispõe de
algum espaço, não raramente, se encontram trabalhadores em situação análoga à
escravidão. Os baixos salários e as péssimas condições de trabalho são colocados
como consequência de que para não existirem, valeria mais a pena aos
proprietários empregarem à mecanização.
Mas, esse é só um exemplo dentro
de toda uma cadeia produtiva existente. Na medida em que a tecnologização
amplia suas fronteiras, mais pessoas são lançadas à margem da sociedade. E elas
não têm a menor chance de sobreviverem a esse processo. Esse é um funil muito estreito.
Na verdade, é a demonstração mais perversa e cruel da seletivização humana. É
como se elas tivessem cumprido o seu papel nas primeiras fases da Revolução
Industrial e, agora, podem ser descartadas e substituídas pela própria tecnologia
que ajudaram a construir.
Ora, máquinas não reclamam, não
se organizam sindicalmente. Máquinas não precisam de direitos trabalhistas. Máquinas
não adoecem. Máquinas não precisam de longas pausas para descanso, ou seja,
férias. ... E por tudo isso, elas garantem lucro líquido e certo aos
proprietários dos meios de produção. Isso explica a tendência de mudanças e
fragilizações nos direitos trabalhistas e nas relações laborais, ocorridas nas
últimas décadas. Não, não é à toa o número crescente do desemprego em todo o
mundo. Nem da precarização do trabalho. Nem da redução da remuneração e
benefícios. Afinal, na cartilha da ganância não há hipótese para a redução na
margem de lucros dos grandes investidores, banqueiros, empresários e industriais.
E vejam só, o que é o
inconsciente coletivo! Dentro ou fora do mercado de trabalho, as pessoas foram
tão bem doutrinadas pelos encantamentos tecnológicos que elas não se dão conta
do que esse processo está fazendo com suas vidas. Permanecem manipuladas pelos
sonhos de consumo, fazendo sacrifícios absurdos em nome do TER, lutando com
unhas e dentes para pertencer, em algum momento, ao seleto grupo de possuidores
de bens, serviços e produtos. O que de certo modo é o que as mantêm ativas no movimento
produtivo, não as deixando pensar que, de repente, estarão fora do jogo,
desempregadas.
Enquanto isso, elas não têm muito
tempo ou disposição para se debruçarem em manchetes como: “Em meio à guerra civil, população da Síria sofre com fome, poluição e
doenças” 1, “ ‘Nunca tive uma árvore de Natal em
casa’, diz menino fotografado após achar pinheiro no lixão” 2, “Ministro
permitiu sete projetos de pesquisa de ouro em região na fronteira, ato inédito
nos últimos dez anos” 3, “Saúde gera apagão de casos de COVID ao
mudar regra para notificação” 4, “Com
morte da mãe e prisão do pai, crianças são vítimas invisíveis do feminicídio”
5, ou “Próxima
Pandemia poderá ser pior, diz criadora da vacina AstraZeneca” 6. Voluntária, ou involuntariamente, milhões
de pessoas estão sob o controle da alienação social, o que não lhes permite
traçar um paralelo com suas próprias vidas.
Segundo Epicuro, filósofo grego, “Nada é suficiente para quem o suficiente é
pouco”. Está aí o problema. Esse é o início do fim. Quando as pessoas
perdem o fio da meada, pelo fato de já estarem enoveladas pelas tramas brutais
da ganância. Enquanto ela vende a todos uma liberdade, um poder sem limites,
mais aprisionados eles ficam. A verdade é que “Não interessa o quanto o queiram, não interessa até onde conseguiram
ir, as pessoas nunca poderão ser nada mais do que elas próprias. E é tudo” (Haruki
Murakami – escritor japonês). E o SER não está condicionado ao TER.
Daí a nossa falibilidade, a nossa
imortalidade, a nossa fragilidade. A ganância é insuficiente e ineficaz, quando
o assunto é olhar além do visível, dissecando cada ínfima minúcia das entrelinhas
do cotidiano. A questão é que, muitas vezes, “As coisas que vemos são as mesmas que temos dentro de nós” (Hermann
Hesse – escritor alemão). Por isso é preciso romper certos paradigmas,
desconstruir certas ideias, arejar o espírito, para entender que “Na vida é preciso ter raiz, não âncora. A
raiz te alimenta, a âncora te imobiliza” (Mário Sergio Cortella – filósofo e
professor brasileiro).
1 https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2021/12/05/em-meio-a-guerra-civil-populacao-da-siria-sofre-com-fome-poluicao-e-doencas.ghtml
2 https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2021/12/05/nunca-tive-uma-arvore-de-natal-em-casa-diz-menino-fotografado-apos-achar-pinheiro-no-lixao.ghtml
3 https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2021/12/general-heleno-autoriza-avanco-de-garimpo-em-areas-preservadas-na-amazonia.shtml
4 https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/12/saude-gera-apagao-de-casos-de-covid-ao-mudar-regra-para-notificacao.shtml