segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Ganância...


Ganância...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Chama a atenção como a ganância está se intensificando no mundo contemporâneo. Para negar, ou pelo menos invisibilizar, a sua imortalidade, os seres humanos querem se diferenciar uns dos outros através do poder capital. E para isso, quanto mais melhor. Não importam os meios. O vale-tudo está por aí, em cada esquina, refletindo a deterioração ética e moral da sociedade. O pior é que não se trata de um problema pontual, só do Brasil. Em várias outras partes do planeta o mesmo acontece.

Infelizmente, os tempos das ameaças bélicas, do potencial de fogo dos grandes exércitos, ficou para trás, quando o assunto é a dizimação da raça humana. Agora, está centrado na fome, na miséria, na poluição e nas doenças, o caminho para o grande extermínio global. Trata-se de uma investida lenta, gradual e silenciosa que vai consumindo populações inteiras, na medida da total desassistência e negligência governamental, os quais vieram substituir a necessidade dos antigos campos de concentração.

Na realidade atual todos os lugares podem ter essa função. Basta seguir corretamente os ditames da ganância e deixar florescer as desigualdades, na expressão da mais completa inacessibilidade aos direitos humanos fundamentais. Então, de repente, a vida começa a minguar, a se desconfigurar, a desaparecer.  Legiões inteiras, de todos gêneros, crenças, raças, idades. À revelia de sua vontade, o ser humano descobre que não há mais espaço para ele no planeta.

E uma das explicações para isso chega pela expressão da 4ª Revolução Industrial ou Revolução 4.0. O avanço tecnológico está caminhando para demandar cada vez menos a presença de seres humanos. De modo que os espaços no mercado de trabalho serão insuficientes para absorver os grandes contingentes de desempregados espalhados mundo afora. O resultado disso é uma exposição maciça de pessoas à vulnerabilidade social, à uma vida incapaz de satisfazer dignamente a sobrevivência. O que representa uma reafirmação do achatamento do status social da população, tendendo a fundir as camadas menos favorecidas.

Aliás, esse é um fenômeno que vem acontecendo há décadas. Começou com a mecanização da agricultura, especialmente nas grandes “plantations” destinadas à exportação. Tanto que nos lugares onde a mão-de-obra humana ainda dispõe de algum espaço, não raramente, se encontram trabalhadores em situação análoga à escravidão. Os baixos salários e as péssimas condições de trabalho são colocados como consequência de que para não existirem, valeria mais a pena aos proprietários empregarem à mecanização.

Mas, esse é só um exemplo dentro de toda uma cadeia produtiva existente. Na medida em que a tecnologização amplia suas fronteiras, mais pessoas são lançadas à margem da sociedade. E elas não têm a menor chance de sobreviverem a esse processo. Esse é um funil muito estreito. Na verdade, é a demonstração mais perversa e cruel da seletivização humana. É como se elas tivessem cumprido o seu papel nas primeiras fases da Revolução Industrial e, agora, podem ser descartadas e substituídas pela própria tecnologia que ajudaram a construir.

Ora, máquinas não reclamam, não se organizam sindicalmente. Máquinas não precisam de direitos trabalhistas. Máquinas não adoecem. Máquinas não precisam de longas pausas para descanso, ou seja, férias. ... E por tudo isso, elas garantem lucro líquido e certo aos proprietários dos meios de produção. Isso explica a tendência de mudanças e fragilizações nos direitos trabalhistas e nas relações laborais, ocorridas nas últimas décadas. Não, não é à toa o número crescente do desemprego em todo o mundo. Nem da precarização do trabalho. Nem da redução da remuneração e benefícios. Afinal, na cartilha da ganância não há hipótese para a redução na margem de lucros dos grandes investidores, banqueiros, empresários e industriais.

E vejam só, o que é o inconsciente coletivo! Dentro ou fora do mercado de trabalho, as pessoas foram tão bem doutrinadas pelos encantamentos tecnológicos que elas não se dão conta do que esse processo está fazendo com suas vidas. Permanecem manipuladas pelos sonhos de consumo, fazendo sacrifícios absurdos em nome do TER, lutando com unhas e dentes para pertencer, em algum momento, ao seleto grupo de possuidores de bens, serviços e produtos. O que de certo modo é o que as mantêm ativas no movimento produtivo, não as deixando pensar que, de repente, estarão fora do jogo, desempregadas.

Enquanto isso, elas não têm muito tempo ou disposição para se debruçarem em manchetes como: “Em meio à guerra civil, população da Síria sofre com fome, poluição e doenças” 1, “ ‘Nunca tive uma árvore de Natal em casa’, diz menino fotografado após achar pinheiro no lixão” 2, “Ministro permitiu sete projetos de pesquisa de ouro em região na fronteira, ato inédito nos últimos dez anos” 3, “Saúde gera apagão de casos de COVID ao mudar regra para notificação” 4,  “Com morte da mãe e prisão do pai, crianças são vítimas invisíveis do feminicídio” 5, ou “Próxima Pandemia poderá ser pior, diz criadora da vacina AstraZeneca” 6. Voluntária, ou involuntariamente, milhões de pessoas estão sob o controle da alienação social, o que não lhes permite traçar um paralelo com suas próprias vidas.

Segundo Epicuro, filósofo grego, “Nada é suficiente para quem o suficiente é pouco”. Está aí o problema. Esse é o início do fim. Quando as pessoas perdem o fio da meada, pelo fato de já estarem enoveladas pelas tramas brutais da ganância. Enquanto ela vende a todos uma liberdade, um poder sem limites, mais aprisionados eles ficam. A verdade é que “Não interessa o quanto o queiram, não interessa até onde conseguiram ir, as pessoas nunca poderão ser nada mais do que elas próprias. E é tudo” (Haruki Murakami – escritor japonês). E o SER não está condicionado ao TER.

Daí a nossa falibilidade, a nossa imortalidade, a nossa fragilidade. A ganância é insuficiente e ineficaz, quando o assunto é olhar além do visível, dissecando cada ínfima minúcia das entrelinhas do cotidiano. A questão é que, muitas vezes, “As coisas que vemos são as mesmas que temos dentro de nós” (Hermann Hesse – escritor alemão). Por isso é preciso romper certos paradigmas, desconstruir certas ideias, arejar o espírito, para entender que “Na vida é preciso ter raiz, não âncora. A raiz te alimenta, a âncora te imobiliza” (Mário Sergio Cortella – filósofo e professor brasileiro).