quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Como será o amanhã?!


Como será o amanhã?!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Desde que a Pandemia começou, o mundo foi lançado a uma nova projeção de perspectivas. Questões como incerteza e morte, por exemplo, invadiram o campo cotidiano de maneira bastante palpável e arrebatadora. De modo que todas as tentativas de lançar sob o tapete da história os aspectos incomodativos, desconfortantes à existência humana, se tornaram impossibilitadas para o indivíduo contemporâneo. Daí o estresse demasiado, as frustrações, as angústias, porque não dá mais para brincar de esconde-esconde com a realidade. A modernidade líquida, descrita por Zygmunt Bauman, extrapolou as fronteiras da teoria para ganhar a prática das ruas, sob um viés impensado.

O tempo, então, nunca se mostrou tão veloz. Do amanhecer ao pôr do sol, bilhões de acontecimentos trabalham configurando, desconfigurando e reconfigurando a vida. De mudanças simples até as mais complexas. Por isso tudo parece tão instável, tão imprevisível, tão incerto. A ideia tecnológica das conexões se mostra recontextualizada às relações sociais. Na verdade, estivemos sempre conectados; mas, talvez, não tínhamos a exata dimensão disso ou do seu significado em profundidade. Precisou-se de uma situação extrema, uma catástrofe sanitária, um vírus, para visibilizar esse processo e ressignificá-lo para os seres humanos.  

De repente, a infinitude, a imortalidade e o amanhã evaporaram dentro de suas próprias subjetividades, rompendo todos os laços e amarras que teciam as postergações, as preguiças, as inações. Um certo arauto veio avisar que a vida não pode esperar; o que não significa necessariamente uma questão de “viver dez anos a mil”, como dizia a canção 1. Simplesmente, chegou a hora de se conscientizar de que há milhares de situações imponderáveis, imprevisíveis, capazes de ir muito além de mudanças simples e pontuais, alcançando patamares comparáveis a verdadeiros tsunamis. E isso pegou muita gente de calças curtas.

Ora, a nova ordem social que se instalou nos últimos dois anos, não só faz mistério sobre o fim do seu processo; mas, particularmente, atingiu o centro nevrálgico da existência humana contemporânea, a sua liberdade. Pois é, “retirou o doce da boca de muita gente”. A possibilidade de tentar manter algum controle sobre as próprias escolhas, decisões, planejamentos; obrigou-as a viver sob a tensão das possibilidades, das probabilidades. O mundo foi “abduzido” pela linguagem do “se”. E se isso. E se aquilo. E se...

Perdeu-se a ideia da exatidão. Tudo agora é controlado pelo relativismo. O que limitou drasticamente a liberdade. Cada vez mais o ser humano é cerceado pelas conjunturas. Ele não escolhe, é escolhido. Ele não decide, as decisões se moldam à revelia de uma ação genuína, pessoal. Ele não planeja com vistas ao futuro, porque esse futuro foi lançado às incertezas. Então... ele foi aprisionado pelas circunstâncias, atingido no cerne das suas convicções, diminuído e inferiorizado na sua imagem. Afinal, ele perdeu para algo que, nem mesmo, consegue enxergar a olho nu.

O ideário da bolha individualista, sobre o qual cada um era rei (ou rainha) de seu próprio reino, foi desfeita, porque esse pseudopoder perdeu a significância social. Os individualistas descobriram o peso cruel da solidão, que lhes chegou de maneira impositiva e incontestável; bem como, o gosto amargo de não desfrutar mais o centro das atenções. Foram rendidos aos recursos tecnológicos, na mais plena ausência do contato efetivamente humano. Nada de abraços. Nada de beijos. Nada de afagos. Nada de aconchegos. ... Uma linguagem de corpos distantes, mergulhados em telas frias, repletas de impessoalidade tátil, olfativa, gustativa, visual.

E mesmo quando o isolamento foi possibilitando flexibilizar a rigidez, nada voltou a ser como antes. Conscientes ou inconscientes, as pessoas haviam sido impactadas pelas experiências desse processo. Uma aura de desconforto, de medo, de insegurança, de relutância, se manteve impregnada e visível entre máscaras ou não. Como se qualquer descuido fosse reacender a trilha da imprevisibilidade mais uma vez. O que significa não saber onde, quando e como tudo termina, fazendo bater um cansaço que transcende os limites do corpo e da alma.

Porque, de certa forma, o incerto do século XXI trouxe algumas certezas e nos abriu os olhos para uma realidade para qual vinhamos relutando refletir. A ideia da globalização, por exemplo, traz a impressão da existência de uma certa homogeneidade, quando, na verdade, cada grupo populacional convive e coexiste tentando manter unida uma diversidade de hábitos, de culturas, de comportamentos, de filosofias. Juntos; mas, tão diferentes, tão díspares. E essas diferenças podem, de repente, abrir as portas para certos tipos de previsibilidades imprevisíveis.

Veja o caso das ações antrópicas sobre o Meio Ambiente. Com os avanços científicos e tecnológicos do mundo contemporâneo, muito já sabe que a Natureza é um grande laboratório a céu aberto e que ali estão presentes infinitos reservatórios de agentes biológicos. Vírus, bactérias, fungos, que de uma hora para outra podem ser expostos a condições de disseminação e de mutação, sem que se saiba ou se conheça a respeito deles. Especialmente, quando há uma perturbação direta ao equilíbrio local, tais como desmatamentos, queimadas e outras alterações no espaço geográfico, as quais obrigam aos deslocamentos forçados das espécies em busca de água, abrigo e alimento.

O ser humano ser afetado e infectado por esses agentes é uma loteria no campo da evolução das espécies. Em nome da própria sobrevivência, vírus, baterias e fungos tentam se adaptar ao maior número de hospedeiros possíveis e nesse processo, muitas vezes, acaba acontecendo mutações cruzadas entre espécies diferentes, resultando em uma ampliação significativa para os limiares de risco e letalidade. Imagine um determinado vírus cujas variantes distintas, presentes em dois hospedeiros diferentes, se cruzam e surge uma nova variante com potencial para infectar um terceiro hospedeiro. Essa não é uma hipótese improvável, pode sim, acontecer; sobretudo, quando o ambiente proporciona esses movimentos, dada a influência de inúmeros fatores, tais como alterações térmicas, poluentes, correntes migratórias, urbanização e outras.

Depois dessa breve reflexão fica a percepção de que, na verdade, “Não existe meio de verificar qual é a decisão acertada, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado” (Milan Kundera – escritor checo). A frustração, o desconforto, o incômodo, diante das incertezas só nos faz crer que o ser humano, especialmente o contemporâneo, no fundo, quer viver uma liberdade vigiada, na qual ele possa ser livre sabendo que alguém está ali para socorrê-lo se algo não sair como o planejado. Ele quer mergulhar na profundidade que ainda consiga ficar de pé na piscina. Ele quer em meio às incertezas todos os fiapos de certeza que puderem existir.

Afinal, “Nunca e sempre são duas palavras que só deviam existir nos contos de fadas. São palavras que fazem parte de promessas geralmente impossíveis de serem cumpridas. Mas como é bom ouvi-las, não é mesmo? Graças a elas não sentimos tanto medo e insegurança quando o futuro parece tão incerto...” (Miguel Falabella – ator, escritor e cineasta brasileiro), porque o ser humano, talvez, não tenha compreendido que “O futuro não é mais incerto que o presente” (Walt Whitman – poeta e jornalista norte-americano).  



1 Décadence Avec Élégance – Lobão - https://www.letras.mus.br/lobao/446178/