O
silencioso grito das desigualdades
Por
Alessandra Leles Rocha
Para acabar com todas as
dúvidas, especulações e casuísmos espalhados por aí, a variante ômicron do
vírus Sars-Cov-2 veio jogar luz sobre a questão da desigualdade no mundo. Esta não
é uma discussão geográfica ou territorial; mas, uma discussão ética e moral,
que não dá a mínima importância para fronteiras, exceto, aquelas criadas a
partir dela mesma. É algo que acontece
há milênios e se arrasta na esteira do comodismo, da alienação, da negação e da
irresponsabilidade, por gerações e gerações.
A má distribuição de
vacinas para prevenção da COVID-19 no planeta é só um exemplo do que já
acontece há muito tempo. A baixa imunização só não é pior em diversos países em
desenvolvimento ou em países subdesenvolvidos, em razão do trabalho humanitário
realizado incansavelmente por entidades e organizações não-governamentais, tais
como os Médicos Sem Fronteiras. Através de doações, elas conseguem recursos
para aquisição de medicamentos, imunobiológicos e outros suprimentos capazes de
atender as demandas mais básicas de saúde, em lugares desassistidos econômica e
politicamente. O que significa, geralmente, países com Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) abaixo de 0,5.
Para quem ainda não sabe,
“o objetivo da criação do Índice de
Desenvolvimento Humano foi o de oferecer um contraponto a outro indicador muito
utilizado, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita, que considera apenas a
dimensão econômica do desenvolvimento”1.
De modo que, atualmente, são três os pilares que constituem o IDH (saúde,
educação e renda); mas, são observados também outros aspectos, tais como, Democracia,
participação, equidade e sustentabilidade.
Entretanto, apesar dos
esforços da Organização das Nações Unidas (ONU), em suas diversas áreas de
atuação, os estudos realizados, e que sustentam relatórios emitidos anualmente
a respeito do IDH no mundo, fomentam o debate; mas, não conseguem resultados práticos
de transformação, tão consistentes como se deseja. Infelizmente, a desigualdade
mundial resiste e persiste. Não é à toa que isso acabou levando ao surgimento
de outros indicadores complementares de desenvolvimento humano, ou seja, o Índice
de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade (IDHAD)2,
o Índice de Desigualdade de Gênero (IDG)3,
o Índice de Pobreza Multidimensional (IPM)3
e o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M)4.
Vejam só, mesmo com
tantos instrumentos de análise, o mundo se mantém fragmentado por linhas
divisórias etereamente visíveis que apartam os seres humanos entre si. No fundo,
a barbárie ainda domina o homem, o que significa que o planeta está sempre em iminência
de guerra, de conflito. Portanto, a distância que existe entre pilhas e pilhas
de acordos, tratados, manifestos em nome da cooperação e da união de esforços
conjuntos, e a ausência de ações efetivas e contundentes, que sejam capazes de
transformar palavras e ideias em algo concreto e materializado, é imensa.
O que se vê são grãos de
areia dispersos daqui e dali, numa exibição cruel e derrotista da insuficiência,
da ineficiência, da negligência deliberada. Enquanto isso, pessoas morrem de
doenças tratáveis e não tratáveis. Morrem de fome, pela escassez e má
distribuição de alimentos. Morrem de sede, por falta de água potável e
saneamento básico. Morrem por violências diversas. Morrem ... Mas, talvez, o
pior seja saber que elas estão morrendo em vida, por simples esquecimento, por desassistência,
por geopolítica, por abuso de poderes.
É isso o que melhor
explica as palavras de Martin Luther King Jr, quando ele disse que “A verdadeira medida de um homem não se vê
na forma como se comporta em momentos de conforto e conveniência, mas em como
se mantém em tempos de controvérsia e desafio”. Pois é, basta o ser humano galgar
um degrauzinho sequer da escada do poder para ele se esquecer, sublimar, abster
da sua condição humana, da sua empatia natural, do seu instinto de preservação.
A ganância, o poder, a avareza, a indiferença, individual e coletivamente, leva
os indivíduos em posições de autoridade, de comando, de influência, a fazerem
da desigualdade uma trivialidade do cotidiano mundial.
Não, não é por ignorância.
Nem por desconhecimento. Nem por desinformação. O instinto dominador,
colonialista, imperialista ainda paira sobre o mundo e repercute os seus
absurdos. Pois é, a humanidade anda esquecida de que “Nossas vidas começam a acabar no dia em que nos calamos sobre as
coisas que importam”, porque “A
injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo o lugar” (Martin
Luther King Jr. – pastor e ativista dos direitos civis nos EUA). E o
Sars-Cov-2, com todas as suas variantes, tem nos mostrado isso, ou seja, que as
injustiças impostas pelas desigualdades já faziam do morticínio um espetáculo da
humanidade, antes mesmo que ele entrasse em cena.
Até o momento, estimam-se
mais de 5,2 milhões de mortos apenas pela COVID-19. Portanto, há outros milhões
decorrendo de inúmeras outras causas. Outras doenças. Outras mazelas sociais. Outras
... Outras ... Que de tantas escapam a nossa percepção, a nossa imaginação. Afinal,
“Na pressa de ver preconceitos somente
nos outros, não somos capazes de ver nossos próprios racismos e xenofobias”;
o que faz com que “muitas vezes, o
chamado progresso pode ser uma violência. Pode agir como uma agressão
silenciosa contra sociedades inteiras e, sobretudo, contra os mais pobres dessa
sociedade” (Mia Couto – Biólogo e escritor moçambicano).
O professor e geógrafo Milton
Santos dizia que “Nunca na história da
humanidade houve condições técnicas e cientificas tão adequadas a construir o
mundo da dignidade humana, apenas essas condições foram expropriadas por um
punhado de empresas que decidiram construir um mundo perverso”. Concordo;
mas, tomo à liberdade de incluir governos e instituições nesse rol de “poderosos”.
Por isso, não há dúvidas de que a questão da equidade de vacinas é fundamental nesse momento. É uma questão de saúde global, de sobrevivência coletiva. Mas, se a equidade não for ampliada, estendida, de maneira qualitativa e quantitativa, continuará existindo espaços e possibilidades paras as investidas do imponderável, do imprevisível, do insólito, em cada diminuto lugar do planeta. Então, estamos sim, sob ameaça. Ou fazemos algo para mudar esse panorama ou continuaremos a mercê do perigo, entregues à casualidade oportunista da morte.