sábado, 13 de novembro de 2021

Pensamentos... Memórias... Liberdade


Pensamentos... Memórias... Liberdade

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Única espécie dotada de capacidade cognitiva e intelectual, o ser humano parece estar perdendo dia a dia a percepção sobre o que isso significa. Na medida em que se manifestam correntes sociais a favor do controle do pensamento e, sobretudo, da construção do conhecimento, a criatividade e a criticidade humana tendem a se tornar enviesadas e profundamente limitadas.

Afinal, o ser humano quando perde a sua autonomia e a sua autoralidade nos campos da inteligência passa a ser guiado e orientado pela perspectiva de terceiros. Acontece que cada indivíduo é um, não só do ponto de vista biológico; mas, social. Cada um tem sua história. Tem um núcleo de convivência e coexistência. Tem experiências próprias. Tem lembranças próprias.

E todas essas situações influenciam no processo de construção cognitiva e intelectual, fazendo emergir as preferências, os interesses, as habilidades e as competências, as quais irão posicionar tanto o indivíduo socialmente quanto na sua busca pessoal pela ampliação das fronteiras do conhecimento.

De modo que há um prejuízo real, quando o ser humano é cerceado nas suas liberdades de aprendizagem e de escolha. É como se ele só enxergasse o céu pela lente limitada de um binóculo, ao invés de olhar para cima e enxergar toda aquela amplidão disponível.

Mesmo porque, pela perspectiva do outro também são arrastadas crenças e valores muito particulares, capazes de exercer algum tipo de manipulação tendenciosa, que tende a se propagar quase como uma verdade absoluta e incontestável.

Ora, em pleno século XXI, a humanidade já alcançou a consciência de que a vida tem bem mais do que dois lados. Que é possível se lançar sobre infinitas possibilidades de experimentá-la, de descobri-la, de ressignificá-la, de reconstruí-la; mas, para isso é preciso se desapegar de velhos hábitos e convenções, o que inclui não se deixar levar pelos outros. 

A contemporaneidade trouxe à tona uma questão muito relevante nesse processo que é a filtragem. Filtrar é dispor de barreiras para separar o que é mais importante daquilo que é menos importante. No campo das ideias e dos conhecimentos isso significa fazer uma depuração, uma reanálise das informações para construir novos pontos de vista e extrair das entrelinhas algo que possa ser mais dissecado e desenvolvido.

Pesquisas, nas mais diversas áreas da Ciência e da Tecnologia, fazem exatamente isso, porque é justamente esse movimento o que permite a excelência dos resultados. O objetivo é que cada pesquisador ao se debruçar sobre os trabalhos já executados por outros possa trazer novas considerações e resultados concretos que consolidem um conhecimento ainda maior sobre determinado assunto.

Não é à toa que existem os comitês de pesquisa, nacionais e estrangeiros, para ler e referendar essas contribuições, atribuindo-lhes o status de relevância e inovação, a partir de análises metodológicas profundas de como foram conduzidos os experimentos e alcançados tais resultados.

Portanto, a realidade que está bem diante do nariz pode ser considerada temerária. De certo modo, o processo que estamos vendo se desenhar no horizonte faz lembrar aquele do romance distópico “O Doador de Memórias” (The Giver), de 1993 1, escrito pela norte-americana Lois Lowry, e posteriormente adaptado para o cinema, em 2014 2.

Nessa história, com o objetivo de preservar a ordem, a estrutura e a igualdade coletiva, a sociedade eliminou toda a realidade capaz de oferecer dor, desordem e instabilidade, elegendo pessoas que fossem guardiãs dessa memória específica, os “Receptores”; para, no caso de uma eventualidade extrema, poderem recorrer a esse tipo de sabedoria na tomada de decisões.  

Impactante, não? Afinal, são muitos os questionamentos que emergem desse assunto. Não se sabe, por exemplo, a base de construção dos critérios que possibilita a escolha para que alguns tenham acesso e outros não, em relação ao pensamento, a construção do conhecimento, a criatividade e a criticidade humana.

Além disso, quem tem acesso tem o poder, ou seja, controla, manipula, influencia, determina os parâmetros de convivência e coexistência, aquilo que pode (ou não pode) ser aprendido, analisado, discutido, manifestado, ... Então, porque razões isso acontece, quais os interesses imersos nesse controle social, só faz abrir espaço para conjecturas e divagações.  

De modo que vai se consolidando uma forma mental, um padrão, um protocolo a ser seguido pelas pessoas. Um tipo de obediência velada, em que passa a inexistir o questionamento, o confronto de ideias, o contraditório.

Como escreveu Lois Lowry, “Entre o que as coisas aparentam ser e o que realmente são há uma grande diferença” (O Doador de Memórias). Daí ser tão curioso que em tempos nos quais se discute tanto e fervorosamente em torno da “liberdade de expressão”, a humanidade caminhe para o extremo oposto.

Afinal, “As memórias não são apenas sobre o passado, elas determinam o nosso futuro”; o que significa que “Quando não existem memórias, a liberdade é apenas uma ilusão” (O Doador de Memórias).

É preciso admitir que “Se a liberdade significa alguma coisa, será sobretudo o direito de dizer às outras pessoas o que elas não querem ouvir” (George Orwell – escritor inglês), ou seja, o direito de se manifestar, de se expressar, de decidir segundo sua própria autonomia.

Desse modo, “A liberdade nunca pode ser tomada por garantida. Cada geração tem de salvaguardá-la e ampliá-la. Os vossos pais e antepassados sacrificaram muito para que pudésseis ter liberdade sem sofrer o que eles sofreram. Usai este direito precioso para assegurar que as trevas do passado nunca voltem” (Nelson Mandela -  estadista e Nobel da Paz). Jamais se esqueça de que “A liberdade só existe quando todos os nossos atos concordam com todo o nosso pensamento” (Agostinho Silva – filósofo português).