Pensamentos...
Memórias... Liberdade
Por
Alessandra Leles Rocha
Única espécie dotada de
capacidade cognitiva e intelectual, o ser humano parece estar perdendo dia a
dia a percepção sobre o que isso significa. Na medida em que se manifestam
correntes sociais a favor do controle do pensamento e, sobretudo, da construção
do conhecimento, a criatividade e a criticidade humana tendem a se tornar
enviesadas e profundamente limitadas.
Afinal, o ser humano quando perde
a sua autonomia e a sua autoralidade nos campos da inteligência passa a ser
guiado e orientado pela perspectiva de terceiros. Acontece que cada indivíduo é
um, não só do ponto de vista biológico; mas, social. Cada um tem sua história. Tem
um núcleo de convivência e coexistência. Tem experiências próprias. Tem lembranças
próprias.
E todas essas situações
influenciam no processo de construção cognitiva e intelectual, fazendo emergir
as preferências, os interesses, as habilidades e as competências, as quais irão
posicionar tanto o indivíduo socialmente quanto na sua busca pessoal pela
ampliação das fronteiras do conhecimento.
De modo que há um prejuízo real,
quando o ser humano é cerceado nas suas liberdades de aprendizagem e de escolha.
É como se ele só enxergasse o céu pela lente limitada de um binóculo, ao invés de
olhar para cima e enxergar toda aquela amplidão disponível.
Mesmo porque, pela perspectiva do
outro também são arrastadas crenças e valores muito particulares, capazes de
exercer algum tipo de manipulação tendenciosa, que tende a se propagar quase
como uma verdade absoluta e incontestável.
Ora, em pleno século XXI, a humanidade
já alcançou a consciência de que a vida tem bem mais do que dois lados. Que é possível
se lançar sobre infinitas possibilidades de experimentá-la, de descobri-la, de ressignificá-la,
de reconstruí-la; mas, para isso é preciso se desapegar de velhos hábitos e
convenções, o que inclui não se deixar levar pelos outros.
A contemporaneidade trouxe à tona
uma questão muito relevante nesse processo que é a filtragem. Filtrar é dispor
de barreiras para separar o que é mais importante daquilo que é menos
importante. No campo das ideias e dos conhecimentos isso significa fazer uma
depuração, uma reanálise das informações para construir novos pontos de vista e
extrair das entrelinhas algo que possa ser mais dissecado e desenvolvido.
Pesquisas, nas mais diversas
áreas da Ciência e da Tecnologia, fazem exatamente isso, porque é justamente
esse movimento o que permite a excelência dos resultados. O objetivo é que cada
pesquisador ao se debruçar sobre os trabalhos já executados por outros possa
trazer novas considerações e resultados concretos que consolidem um
conhecimento ainda maior sobre determinado assunto.
Não é à toa que existem os comitês
de pesquisa, nacionais e estrangeiros, para ler e referendar essas
contribuições, atribuindo-lhes o status de relevância e inovação, a partir de
análises metodológicas profundas de como foram conduzidos os experimentos e
alcançados tais resultados.
Portanto, a realidade que está
bem diante do nariz pode ser considerada temerária. De certo modo, o processo
que estamos vendo se desenhar no horizonte faz lembrar aquele do romance distópico
“O Doador de Memórias” (The Giver), de 1993 1,
escrito pela norte-americana Lois Lowry, e posteriormente adaptado para o
cinema, em 2014 2.
Nessa história, com o objetivo de
preservar a ordem, a estrutura e a igualdade coletiva, a sociedade eliminou
toda a realidade capaz de oferecer dor, desordem e instabilidade, elegendo
pessoas que fossem guardiãs dessa memória específica, os “Receptores”; para, no caso de uma eventualidade extrema, poderem
recorrer a esse tipo de sabedoria na tomada de decisões.
Impactante, não? Afinal, são
muitos os questionamentos que emergem desse assunto. Não se sabe, por exemplo,
a base de construção dos critérios que possibilita a escolha para que alguns tenham
acesso e outros não, em relação ao pensamento, a construção do conhecimento, a
criatividade e a criticidade humana.
Além disso, quem tem acesso tem o
poder, ou seja, controla, manipula, influencia, determina os parâmetros de convivência
e coexistência, aquilo que pode (ou não pode) ser aprendido, analisado,
discutido, manifestado, ... Então, porque razões isso acontece, quais os
interesses imersos nesse controle social, só faz abrir espaço para conjecturas
e divagações.
De modo que vai se consolidando
uma forma mental, um padrão, um protocolo a ser seguido pelas pessoas. Um tipo
de obediência velada, em que passa a inexistir o questionamento, o confronto de
ideias, o contraditório.
Como escreveu Lois Lowry, “Entre o que as coisas aparentam ser e o que
realmente são há uma grande diferença” (O Doador de Memórias). Daí ser tão curioso
que em tempos nos quais se discute tanto e fervorosamente em torno da “liberdade de expressão”, a humanidade
caminhe para o extremo oposto.
Afinal, “As memórias não são apenas sobre o passado, elas determinam o nosso
futuro”; o que significa que “Quando não existem memórias, a liberdade é apenas
uma ilusão” (O Doador de Memórias).
É preciso admitir que “Se a liberdade significa alguma coisa, será
sobretudo o direito de dizer às outras pessoas o que elas não querem ouvir”
(George Orwell – escritor inglês), ou seja, o direito de se manifestar, de
se expressar, de decidir segundo sua própria autonomia.
Desse modo, “A liberdade nunca pode ser tomada por garantida. Cada geração tem de
salvaguardá-la e ampliá-la. Os vossos pais e antepassados sacrificaram muito
para que pudésseis ter liberdade sem sofrer o que eles sofreram. Usai este
direito precioso para assegurar que as trevas do passado nunca voltem” (Nelson
Mandela - estadista e Nobel da Paz). Jamais
se esqueça de que “A liberdade só existe
quando todos os nossos atos concordam com todo o nosso pensamento” (Agostinho
Silva – filósofo português).